sábado, 20 de abril de 2024

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati

            Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da “Guerra do Golfo”, travada em 1991 por uma coalização de países liderada pelos Estados Unidos contra Saddam Hussein no Golfo Pérsico. Refiro-me a outro tipo de guerra: da humanidade contra a natureza. A economia ataca de forma difusa e a natureza responde de forma pontual ou global.

             Estou me reportando às chuvas que se abateram no dia 16 de abril de 2024 sobre os Emirados Árabes e sobre Omã, países que se constituíram no deserto da Arábia, um dos mais secos do mundo. A média de chuva por lá gira em torno dos 200 mm por ano. É quase a quinta parte do que chove anualmente no norte fluminense. Mas, em 24 horas, desabou um volume de chuva maior que 250mm. É como se toda a chuva de um ano e um pouco mais caísse num só dia.

            Aventou-se a hipótese de que esse pé d’água tivesse sido provocado por bombardeios de nuvens por aviões, algo muito comum nos Emirados para diminuir a secura. Mas foi chuva de verdade, já prevista pelos institutos meteorologia. As cidades e as rodovias modernas que lá se ergueram com dinheiro do petróleo ficaram alagadas. Dubai ficou embaixo d’água por três dias. Um dos mais movimentados aeroportos do mundo cancelou mais de mil voos. Morreram 22 pessoas. É o mesmo petróleo que, queimado como combustível, produz gases que aquecem a atmosfera do planeta e desregulam o clima. Está certo que abril é um mês menos seco no deserto, mas não com uma chuva descomunal como essa de 16/04.

            Os jornais noticiam com pequenas notas (quando noticiam), de preferência mostrando o fenômeno como algo bastante curioso, como um animal exótico. Um gatinho agarrado à maçaneta de um automóvel, tentando escapar da água, é a atração principal. Nos países desse deserto, as medições climáticas começaram em 1949. Não há registro de fenômeno tão intenso desde então.

            Por outro lado, a temperatura mais alta no Círculo Polar Ártico foi registrada na cidade de Verkhoyansk, Sibéria russa, em junho de 2020. Foram 38°C. Enquanto isso, a gente fica assistindo às moças e moços do tempo falarem nos telejornais sobre temperaturas dentro do Brasil, como se o mundo se reduzisse ao país. Nos Estados Unidos e em qualquer outro país acontece isso. Os jornais impressos dão uma pequena nota, quando muito. Alguns chamam a atenção para os fenômenos climáticos. São os chatos dos ambientalistas. Falam para ninguém. A vida segue como se nada tivesse acontecendo. A maioria agradece a Deus por se salvar de inundações e deslizamentos, lamentando a morte de pessoas. As autoridades agem pontualmente até a próxima catástrofe. 

Inundação de Dubai, abril de 2024 

Piquenique no Paraíba? Não, no Polo Norte

 

segunda-feira, 15 de abril de 2024

NOTÍCIAS DE MACAU

 Arthur Soffiati

            Os portugueses chegaram ao oceano Índico no fim do século XV com Vasco da Gama. Estava aberta uma porta para a conquista de colônias. Mais de forma violenta que pacífica, Portugal abriu caminho para outros países europeus constituírem colônias no mesmo oceano. A mais importante possessão portuguesa foi Goa, na Índia. Durante cinco séculos, ela foi a capital do império português no oriente, constituído por Damão e Diu, também na Índia, Ormuz (por pouco tempo na entrada do golfo Pérsico), Malaca, Macau e Timor. Moçambique, na África oriental, também ficava sob a jurisdição de Goa.

            Aos poucos, Portugal foi perdendo suas colônias na Ásia. Ormuz durou pouco tempo. A Holanda conquistou Malaca já no século XVII. Em 1961, a Índia independente reintegrou Goa, Damão e Diu a seu território. Moçambique conquistou a independência em 1975. Timor se tornou independente em 2002, depois de um processo traumático. Macau voltou a ser da China em 1999 por um acordo pacífico. Trata-se de uma cidade na foz do rio das Pérolas que vive do jogo. Na outra margem do rio, situa-se Hong-Kong, que pertenceu à Inglaterra e também voltou ao domínio chinês.

            Vem ao caso Macau, onde as marcas materiais portuguesas foram muito fortes. O português era também a língua oficial, embora se falasse chinês e um português popular (o patuá de Macau). A literatura produzida em Macau era, em sua maior parte, escrita em português. Após voltar à China como Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), a cidade estimulou mais ainda os jogos de azar e se tornou uma espécie de Las Vegas do oriente. A cidade foi ampliada sobre aterros. Tornou-se um centro urbano extremamente moderno, mas, para conseguir espaço, destruiu o ambiente natural. As ilhas de Coloane e Taipa foram ligadas por um grande aterro, que recebeu o nome de Cotai (iniciais dos nomes das ilhas).

Macau atualmente

Agora, três cientistas chineses publicaram um artigo mostrando como esses aterros foram prejudiciais ao meio ambiente. Especialmente aos golfinhos e aos mangais, palavra usada lá para denominar mangues ou manguezais. Como bons acadêmicos, os três cientistas reconhecem a importância dos aterros para a economia. Uma martelada no prego e outra na ferradura.

Aterros em Macau 

            A cidade avançou sobre o estuário do rio das Pérolas e agora está ameaçada pelo avanço do mar sobre ela como em vários outros pontos costeiros do mundo. Existem quatro fenômenos conjugados a ameaçarem a zona costeira: a elevação progressiva do nível do mar pelas mudanças climática, os aterros, a supressão da vegetação nativa e a urbanização. Macau é exemplo dessa conjugação.

Macau no século XIX: Praia Grande 

            Seja mangue, mangal ou manguezal, a importância desse ecossistema estuarino intertropical está tendo sua importância reconhecida pela ciência para atenuar o aumento das tempestades marinhas e absorver gás carbônico. Contudo, ele está ameaçado pelo avanço da urbanização principalmente.

            Hong-Kong e Macau se situam no sul do país, na província de Guangdong (Cantão). A China é um dos maiores países do mundo em território, população e economia. É um país capitalista envergonhado. Não assume claramente sua condição econômica, embora a expressão “made in China” seja comum no mais simples objeto vendido ao mundo.

            Um levantamento recente mostrou que as temperaturas médias de Macau vêm subindo 0,09 graus Celsius a cada dez anos desde 1952, quando foi criada a Direção dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos, ainda sob controle português. O ano de 2019 foi o mais quente da série, sendo 2020 o segundo. O ano de 2023 superou todos no plano mundial. Pelo menos, reconhece-se na China que a elevação das temperaturas decorre da ação humana coletiva na superfície da Terra.


Planta de Macau no século XVII 

            Como disse David Gonçalves, diretor do Instituto de Ciências e Ambiente, da Universidade São José, Macau não destoa dos índices climáticos da província de Guangdong e da China, embora o consumo médio per capita de energia em Macau seja mais elevado que o de Hong-Kong e da China. No relatório “Implementação da Contribuição Nacionalmente Determinada da China”, encaminhado à ONU em 2021, Macau é uma área severamente ameaçada por fenômenos climáticos extremos. Macau está na rota dos perigosos tufões que ocorrem com frequência no extremo Oriente.

Mangal ameaçado em Macau

            Mas o relatório é apenas uma satisfação formal à ONU. A China tem pés de chumbo e deixa pegadas ecológicas profundas na Terra. Ela se comporta como quase todos os países do mundo: reconhece a crise ambiental e as mudanças climáticas, reconhece que tomará medidas para reduzi-las na parte que lhe cabe, mas acentuará mais ainda o peso da pegada ecológica.

            David Gonçalves ainda conta com liberdade para afirmar que a pegada ecológica de Macau é muito alta por consumir excessivamente energia fóssil importada. 

 

segunda-feira, 1 de abril de 2024

A OCIDENTALIZAÇÃO DA AMAZÔNIA

 Arthur Soffiati

            Não é possível explicar o processo de integração da Amazônia à Europa ocidental sem considerar que o grande bioma do norte transcende as colônias e depois Estados Nacionais instalados no imenso complexo fluvial e florestal. Antes da chegada dos europeus à América, já havia intensa ligação entre o que atualmente se conhece como Caribe e a grande Amazônia. Essa ligação continuará com os europeus. Cristóvão Colombo nunca atingiu terras continentais dos atuais Estados Unidos. Em suas viagens, ele tocou ilhas do Caribe e a costa setentrional da América do Sul. Portugueses, espanhóis e franceses circularam por essa grande região.

            Em 1542, o espanhol Francisco Orellana navegou o grande rio Amazonas em sua extensão longitudinal. Ele deu notícia dos povos nativos que a ocupavam. A colonização europeia foi, ao norte da América do Sul, mais difícil que em outras partes. Ao mesmo tempo em que a rede fluvial facilitava a penetração, a grande floresta representava um ambiente hostil para os europeus. Suas técnicas e tecnologias não eram adequadas para a conquista e colonização de território tão distinto dos da Europa.

            Mesmo assim, os estranhos dizimaram as populações amazônidas com suas doenças e armas entre os séculos XVI e XVIII. Nesses três séculos, inúmeras foram as expedições à Hileia. As mais importantes foram comandadas por Pedro Teixeira (1638-1639), registrada por Gaspar de Carvajal e Cristóbal de Acuña, de La Condamine (1743) e de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783 a 1792).

 
Indígena Muri – Expedição Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792)

 

            Os viajantes passavam pelo grande território. Os missionários católicos se estabeleciam na floresta e empreendiam um paciente trabalho de ocidentalização dos povos indígenas. As transformações foram profundas. As línguas europeias e o cristianismo foram difundidos, embora traduzidos para as diversas culturas locais.

            Aos poucos, a Amazônia foi sendo incorporada ao mundo europeus. No século XIX,  fase das expedições científicas, muitos naturalistas percorrem aquele mundo de água e de floresta. O mais destacado foi Humboldt, que não pôde penetrar em terras brasileiras devido ao monopólio colonial. Mas ele empreendeu uma fabulosa incursão à Amazônia sob domínio espanhol. A transferência da capital do império colonial português de Lisboa para o Rio de Janeiro favoreceu a entrada de naturalistas europeus na Amazônia portuguesa.

            Muitos foram os naturalistas que estudaram a floresta, merecendo destaque os gigantes da ciência Martius e Spix, assim como Langsdorff acompanhado dos artistas Aimé-Adrien Taunay e Hércules Florence.  Numerosos foram os naturalistas que percorreram a região e que ainda a percorrem. A Amazônia e a Mata Atlântica sempre foram os grandes atrativos para cientistas europeus. Mas essas pessoas não vinham apenas com interesses científicos. Havia também interesses econômicos. 

Expedição Langsdorff

 

            Belém se tornou a porta de entrada para a globalização ocidental na Amazônia. A colonização desta vasta área foi distinta da do nordeste, leste e sul do Brasil. No norte, a língua portuguesa se assemelha mais à falada em Portugal. A segunda pessoa do singular é empregada de forma correta. Várias cidades foram batizadas com nomes lusitanos, como a própria Belém, Santarém, Óbidos e Soure.

Núcleos urbanos em moldes europeus na Amazônia parecem fora de lugar. E estão mesmo fora de lugar, como o teatro de Manaus, a estrada de ferro Madeira-Mamoré, a rodovia transamazônica, a Belém-Brasília, a Cuiabá-Porto Velho, a Cuiabá-Santarém, a Porto Velho-Manaus, a Manaus-Boa Vista e outras mais. A rede hídrica é bem mais adequada ao ambiente fluvial que as rodovias e ferrovias. A Madeira-Mamoré foi engolida pela floresta. As rodovias também correm o mesmo risco. 

Teatro de Manaus 

Há barragens e empreendimentos diversos incompatíveis com a Amazônia e ecologicamente insustentáveis. O mais agressivo é o desmatamento, com o avanço da pecuária. Nesse contexto, insere-se o arquipélago de Marajó. Quem visita Camará, Salvaterra e Soure perceberá que estamos agora numa Europa mestiça fora do continente europeu. Ao contrário do que se pensa, o búfalo, tão comum na ilha de Marajó, é indiano. Assim como a mangueira, também muito difundida em Belém. Em Soure, as igrejas evangélicas se multiplicam ao lado das igrejas católicas.

Soure é uma cidade planejada. Ela tem o formato de um tabuleiro. As ruas são numeradas como em Brasília e Nova York. Embora o comércio seja restrito, a economia de mercado domina a ilha. Assim também o turismo. A argila e o couro dominam as vendas. Do búfalo vêm o trabalho físico, sandálias, cintos, chapéus. Da argila, vêm artefatos que imitam a cerâmica marajoara, mas sem o espírito dessa. Inclusive, os comerciantes encenam transes xamanistas para enganar turistas. Está se cometendo um grande equívoco em só considerar o lado da grande economia como globalização. Esta existe também, e principalmente, nos detalhes.

Igreja de São José – Soure, Marajó, Belém do Pará 

            É superficial o entendimento de que a globalização ocidental ou a ocidentalização do mundo limita-se à dimensão da grande economia. Trump se elegeu com a promessa de retirar os Estados Unidos da globalização, pois ela prejudica a economia interna do país, gerando a fuga de empresas e causando desempregos. A Inglaterra, uma das origens da globalização, imagina ter saído dela com o Brexit. Ela pode ter deixado a União Europeia, não a economia capitalista, a coluna dorsal da globalização.

            A ocidentalização não se restringe a propagar pelo mundo o modo de vida europeu. Ela se caracteriza pela adoção desse modo em lugar dos tradicionais. Esta adoção pode ser imposta ou aceita por iniciativa própria do país não ocidental. A atuação ambiental do ocidente no planeta promoveu um desarranjo global. Levou deliberadamente plantas e animais de um continente para outro.

            Mas o controle da economia foi mantido pelos países ocidentais por meio da dominação e colonização de outras terras. Existem historiadores se esforçando para mostrar que a China tinha todos os elementos para promover uma revolução industrial no fim do século XVIII, assim como a Inglaterra. Mas não promoveu. Por que? Faltava uma condição à China: ela não era capitalista. É ocioso construir histórias hipotéticas.

            Nos mínimos detalhes, traços da globalização ocidental podem ser encontrados na China pré-ocidental. A cana e o café no Brasil foram trazidos do oriente pelos europeus. A seringueira, o cacau, o tomate, o tabaco, a batata, nativos da América, foram espalhados pelo mundo por ação europeia. Aquele inocente capim-pé-de-galinha que você encontra entre os paralelepípedos de uma rua veio da Ásia. Muitas espécies de forrageiras vieram da África. A barata e o rato vieram como clandestinos nos porões das caravelas, assim como os germes de doenças vieram ocultos nos organismos de europeus. 

Mangueira da Índia no Brasil 

            Algas, o mexilhão-dourado, o mosquito-da-dengue e o coral-sol vieram incrustados em cascos de navios ou dentro deles, do seu lugar de origem para o mundo todo. Ninguém quis trazê-los, mas eles pegaram carona escondidos. Hoje, podemos usar aquela expressão muito comum para o mundo: tudo junto e misturado. As espécies de uma região invasoras de outras concorrem com as nativas e vencem. Com isso, a biodiversidade se empobrece. A tendência é definir-se uma biodiversidade pobre nas esferas do planeta de acordo com as condições climáticas.

            Mas a globalização se imiscui nos interstícios do mundo. O mais isolado rincão da Terra tem marcas do ocidente e do mundo ocidentalizado. Elas estão nas narinas de uma tartaruga na forma do canudinho que usamos para ingerir refrigerantes e outros líquidos. Elas estão no estômago de peixes, que ingerem plástico confundindo-o com alimento. Aliás, o plástico é onipresente hoje. Entre a costa pacífica dos Estados Unidos e o arquipélago do Havaí, encontra-se uma ilha formada por milhões de objetos plásticos com a dimensão de quatro estados do Rio de Janeiro.

A pequenina ilha Henderson, perdida no meio do oceano Pacífico e completamente desabitada por seres humanos (algo raro no mundo globalizado), apresenta a maior densidade de plástico do planeta. Ela fica no meio de uma corrente oceânica que transporta o lixo da civilização global. Em todas as praias da Terra, o lixo é um componente presente. Mesmo que ninguém o lance fora, ele chega por via marítima.

Tive essa experiência na ilha de Marajó. Aliás, tive duas na fazenda São Jerônimo. Percorremos 1.600 metros em lombo de búfalo. Depois, continuamos o trajeto a pé por entre majestosos manguezais acompanhados de guias. Numa das praias da fazenda, topamos com acúmulos de lixo plástico por mais de uma vez. Os guias se apressaram em dizer que não foram visitantes os responsáveis por aquele lixo, pois eles protegem a “ecologia” na fazenda. Tranquilizei-os dizendo que eu sabia de onde o lixo tinha vindo.

Mas nem tudo são tristezas. Mais adiante, na nossa caminhada rumo a uma canoa que nos levaria de volta à sede da fazenda, encontrei na praia uma sandália de plástico sendo decomposta por algas. O processo é demorado, mas tudo está em movimento. Se um evento catastrófico suprimisse a humanidade da face da Terra, a natureza apagaria lentamente as marcas da globalização. Ela tem todo o tempo do universo para tanto. 

A natureza devorando a cultura

 

domingo, 24 de março de 2024

COMO CIRCULAVAM AS ÁGUAS EM 1500 NO FAROL

Arthur Soffiati

            1500 é o ano em que os portugueses chegaram a uma terra que batizaram de Brasil. Não existiam ainda os atuais Farol, Campos, Norte-Noroeste fluminense, rio de Janeiro e um país chamado Brasil. As águas, porém, já circulavam no Farol de hoje em dia. Só que de maneira diferente. As águas vinham da lagoa de Cima pelos rios Ururaí e Paraíba do Sul até a lagoa Feia. Não só pela superfície, mas também de forma subterrânea. Daí, saíam da lagoa Feia por vários braços e formavam um rio que foi chamado de Iguaçu no século XVII. Esse rio chegava ao mar depois de receber também águas que transbordavam do rio Paraíba. Ele se transformou na atual lagoa do Açu depois de muitas obras de canalização e drenagem efetuadas no século XX.

            Da lagoa Feia, partiam também vários braços que formavam um rio menor que o Iguaçu. Era o lindo rio Bragança. Ele também desembocava no rio Iguaçu e, quando ficava muito cheio, abria uma barra no mar com muito esforço. Em tempos normais, ele engrossava na foz, formando o Lagamar. O sistema funcionava como mostra o mapa abaixo. 

Circulação das águas em 1500

            Em 1688, o capitão José de Barcelos Machado, grande proprietário rural, entendeu que a foz do rio Iguaçu podia se localizar abaixo da lagoa Feia e abriu uma vala que foi chamada de Furado. Ela funcionava quando as águas das chuvas se acumulavam no continente. Então, por meio do trabalho escravo, a vala era aberta para que as águas escoassem mais rapidamente para o mar. O rio Iguaçu, contudo, continuou existindo, só que com menos força. Ele também fechava sua barra quando a água perdia força.          

Circulação das águas em 1688

Entre 1942 e 1949, o Departamento Nacional de Obras e Saneamento, valendo-se de planos anteriores, entendeu que o melhor caminho para escoar as águas que se acumulavam no continente era abrir um comprido canal da lagoa Feia ao mar. Foi o canal da Flecha, que consolidou a barra da vala do Furado, sobretudo com a construção de dois molhes de pedra na década de 1980. O antigo rio Iguaçu transformou-se de vez na lagoa do Açu. Uma parte dele é vista ainda atrás do Farol. Está todo fragmentado e poluído.
Circulação das águas a partir de 1949

O rio Bragança foi tão cortado por obras de drenagem que não mais existe. O Lagamar não tem mais força para abrir sua barra e chegar ao mar. A lagoa do Açu desenvolveu outro equilíbrio. De rio, transformou-se em lagoa. Em toda a extensão do Farol, o nível do lençol freático é alto, sobretudo no Açu.

      Quando chove muito, a água se acumula em todas as lagoas que restaram na costa que vai da lagoa de Gruçaí a Barra do Furado. Levemos em conta que as chuvas estão mais abundantes que no passado porque o aquecimento da Terra está aumentando por conta dos gases do efeito-estufa, liberados por atividades humanas. A evaporação das águas oceânicas é maior. Quando uma massa fria se forma na atmosfera, o vapor d’água se transforma em água líquida e cai em grande profusão sobre os continentes. Esse fenômeno pode acontecer até nos desertos, como ocorreu recentemente no Saara.

Como o canal da Flecha centralizou o escoamento de água continental para o mar, ele tem se mostrado insuficiente para lançar toda chuva que se precipita na região. Então, a principal solução encontrada é abrir a barra das lagoas de Gruçaí, Iquipari e Açu. Trata-se de uma solução emergencial para aliviar a vida dos moradores da zona costeira entre o Paraíba do Sul e Barra do Furado, mas provoca um choque ambiental nessas lagoas que já foram rios no passado. Estamos vivendo essa situação com as volumosas e contínuas chuvas nos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo.

 


quarta-feira, 20 de março de 2024

ABAIXO DO EQUADOR

 Arthur Soffiati

Na Europa do século XVII, firmou-se o ditado segundo o qual não havia pecado abaixo da linha do Equador. Gaspar Barlaeus, historiador do Brasil holandês, confirmava o ditado. Era "Como se a linha que divide o mundo em dois hemisférios também separasse a virtude do vício". Tanto Sérgio Buarque de Holanda quanto seu filho Chico Buarque de Holanda aproveitaram a máxima em livro e música.

O livro Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese, organizado por Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima e Carla Jaimes Betancourt (Belém: IPHAN/Ministério da Cultura, 2016) com o capítulo “Não existe neolítico ao sul do Equador: as primeiras cerâmicas amazônicas e sua falta de relação com a agricultura”, de Eduardo Góes Neves, professor da USP, é provocativo e motiva discussão logo de início. Para começar o debate, examinemos um mapa-múndi. O que conhecemos como neolítico, ou seja, período em que algumas sociedades humanas se sedentarizaram com a domesticação de plantas e de animais, encontra-se ao norte da linha do Equador. A agricultura e o pastoreio permitiram vida sedentária e com ela a fundação de aldeias, a divisão sexual e técnica do trabalho, a invenção da cerâmica, de artefatos de pedra polida, da roda, da cestaria, da tecelagem e da metalurgia. Estavam lançadas as bases para alcançar o que se chama de civilização.

Sucede, porém, que a passagem de uma vida nômade no Paleolítico superior para uma vida sedentária no Neolítico não é fruto do acaso, do voluntarismo e do ócio. Grupos constituídos pelo Homo sapiens existem há pelo menos 200 mil anos. É de se perguntar, então, por que vegetais e animais não foram domesticados antes de 10 mil anos. Minha explicação provisória (sempre provisória) é que o cérebro humano não estava ainda muito desenvolvido e não responderia ao desafio representado pela passagem de um mundo frio para um mundo quente, como aconteceu com o aquecimento planetário a partir de 11.700 anos antes do presente.

O aquecimento natural do planeta foi muito mais acentuado no norte do Equador que no sul. Daí a resposta ao desafio ser mais intensa no hemisfério norte. No norte, as florestas existentes recuaram e foram substituídas por savanas, estepes e desertos. No sul, as mudanças ambientais não foram tão fortes como no hemisfério norte.

Mesmo assim, agricultura e pastoreio foram inventados, abaixo do Equador, na América do Sul, na África, na Austrália e na Polinésia. O que se pode verificar com certeza é que a agricultura desenvolveu-se em toda a América do Sul. A domesticação de animais não tanto. A riqueza de recursos naturais dispensou em grande parte o pastoreio. Na Amazônia, a floresta provia sua grande população, estimada em 10 milhões de pessoas, com recursos naturais. Mesmo assim, a arqueologia vem demonstrando que os povos amazônicos desenvolveram técnicas de manejo florestal e práticas agrícolas protegendo a floresta.

As tradições cerâmicas podem ter focos de criação, mas tudo indica que a difusão colocou em contato técnicas e temas de fabricação cerâmica da costa americana do oceano Pacífico ao Maranhão, passando pelos Andes. Eduardo Góes Neves identifica quatro centros originais de cerâmica: 1- Valdívia, no litoral equatoriano; 2- San Jacinto e Puerto Hormiga, no baixo rio Magdalena, Caribe Colombiano; 3- Mina e talvez Alaka, entre o Suriname e o golfão maranhense; e 4- Taperinha, no sambaqui fluvial homônimo, no rio Amazonas, perto da atual Santarém. De todas, a mais antiga cerâmica é a de Taperinha, com cerca de 7.000 anos. Lembremos que, no velho mundo, a mais antiga cerâmica conhecida é a de Jomon, no Japão, com 9.000 anos. 

Cerâmica Valdívia

O autor seguido informa que Betty Meggers, no final da vida, notava a semelhança entre todas as tradições cerâmicas entre a costa do Pacífico (onde hoje existe o país Equador) e o Maranhão, pressupondo, assim, um centro único de produção de cerâmica, do qual as técnicas e tecnologias de fabrico teriam se difundido por toda a extensão da área delimitada. A cerâmica andina, não seria, portanto, a mais antiga. Ela teria sido criada nas terras baixas do Pacífico e da Amazônia. A falta de pedra, na Amazônia, teria sido compensada com terras plásticas.


 Cerâmica de Puerto Hormiga

Neves aventa a hipótese de que a agricultura na América meridional não foi tão importante como na Eurásia e que “não há uma correlação observada entre a domesticação de plantas e o início da produção cerâmica no novo mundo (...) É plausível supor que no Novo Mundo não houve pressões adaptativas para uma adoção rápida da agricultura, mesmo com um quadro de domesticação antiga de plantas, do mesmo modo que houve pouquíssima pressão para a domesticação de animais”. 

Fragmentos de cerâmica mina

Ele pondera, inclusive, que o milho foi domesticado na Mesoamérica, na região do rio Balsas, em torno de 7000 anos, espalhando-se rapidamente por todo o continente até a costa do atual Uruguai. Quando Colombo esbarrou na América, em 1492, as plantas com maior dispersão no continente eram o milho e o tabaco, cujos usos eram mais ligados à recreação e a práticas religiosas. A conclusão do autor é a de que agricultura e cerâmica não estão tão relacionadas na América como estão na Eurásia. Ele recomenda mais pesquisa.

Fragmentos da cerâmica encontrada no sambaqui de Taperinha, Amazônia 

Resumindo, a agricultura, na América, é mais antiga do que se supunha. Novas descobertas arqueológicas mostram que ela não teve relevância apenas nos polos andino, maia, mexicano e em áreas adjacentes a eles. Ela também foi pujante na Amazônia, num sistema que associava manejo florestal e produção agrícola, sobretudo na confluência da Amazônia com o Cerrado. A diversidade de plantas domesticadas foi maior que o imaginado. Lembremos o milho, o cacau, o tabaco, o tomate, as batatas, as abóboras, o aipim etc. O pastoreio não teve muita relevância talvez por grande parte da fauna nativa ser recalcitrante à domesticação. As que se deixaram domesticar foram poucas, como o lhama, a alpaca e o peru. 

A produção cerâmica foi pujante em quase toda a extensão do Novo Mundo. As áreas mais significativas são a América do Norte, entre o sul dos Estados Unidos, e a América Central e a América andina e amazônica. Mas a cerâmica se estendeu por uma área bem mais ampla do território americano. Deve-se afastar o acaso e o diletantismo estruturais para explicar a origem da agricultura, do pastoreio e da cerâmica na América. Se agricultura e cerâmica americanas não aparentam relações estreitas, como na Eurásia, é temerário pensar que ambas nasceram por diletantismo dos povos americanos. Elas têm relação com o neolítico nas Américas, que apresenta características singulares. Abaixo do Equador, não houve um resfriamento rápido e intenso como acima dessa linha. As florestas e outros ecossistemas compensaram a agricultura com recursos naturais.

Das sociedades neolíticas, nasceram as civilizações, entendidas estas como sociedades com divisão territorial e social do trabalho. Nelas, foram possíveis as especializações. Assim, constituiu-se uma minoria governante e sacerdotal. Os militares cuidavam da segurança interna e da guerra de defesa e de conquista. Os agricultores e pastores estavam incumbidos da produção de alimentos. Os artesãos especializaram-se na fabricação de artefatos de pedra polida, de cerâmica, de cestaria, de tecelagem, de obras arquitetônicas e da contabilidade. A escrita não funda uma civilização. É o contrário. Exige-se grande complexidade social para que a escrita seja desenvolvida. Astecas e maias usaram escritas hieroglíficas. Os incas não a desenvolveram.

Discute-se atualmente se povos da Amazônia alcançaram o nível de civilização. A agricultura e o manejo de florestas foram bastante aprimorados. Algumas tradições cerâmicas alcançaram padrões de excelência, como a marajoara e a de Santarém. O polimento da pedra, a cestaria e a tecelagem eram conhecidos. Contudo, a roda, prédios, núcleos urbanos, estradas e escrita não. Certas tradições amazônicas ultrapassaram o neolítico, mas não alcançaram o nível de civilização. É a conclusão provisória. 

quinta-feira, 14 de março de 2024

CONHECENDO ALGUNS MANGUEZAIS DO BRASIL: BRAGANÇA - PARÁ

 Arthur Soffiati

            Visitei Belém do Pará duas vezes. A primeira foi em 1989, quando participei de um evento nacional de Serviço Social. Convidaram-me para participar de uma mesa redonda. Passei uma semana maravilhosa em Belém, conhecendo o Mercado Ver-o-Peso, o Museu Emílio Goeldi, o Bosque, as casas, as igrejas e a Baía de Guajará. Surpreendi-me também com a facilidade que a comercialização de animais silvestres encontrava na cidade. Estive na Ilha do Mosqueiro. Pensei em visitar a Ilha de Marajó, mas não consegui. A segunda foi em setembro de1998, quando apenas passei por Belém rumo a Bragança para participar do V Encontro Nacional de Educação Ambiental em Áreas de Manguezal.

            Bragança é uma cidade com origem no período colonial. A cidade ergueu-se à margem esquerda do Rio Caeté. Seu casario imponente, em estilo colonial, atesta sua antiguidade. Nunca viajo como turista, buscando entretenimento e consumismo. Minhas viagens são pautadas pela economia financeira, sempre buscando o conhecimento. Nada, ao meu entorno, é desinteressante. Fiquei hospedado numa pousada modesta, participei ativamente do Encontro, caminhei pela cidade com olhos atentos e visitei Ajuruteua no intervalo entre uma atividade e outra. 

Antiga casa de Bragança usada como loja comercial

            Foi nesse encontro que ouvi um depoimento tocante do catador Moisés de Melo Amorim, da Associação dos Pescadores da Vila de Ajuruteua. Ele mostrou que a vida de quem depende do manguezal é árdua. Revelou que quase teve um pé amputado por infecção contraída na captura noturna de caranguejos e que um filho seu perdeu uma perna por razões similares às suas. Nós, acadêmicos, tendemos a transformar o pobre em herói. Por um lado, ele é, de fato, um herói por sobreviver em condições tão adversas. Mas nós, estudiosos, vemos o pobre como Rousseau via os índios: vida harmônica em isolamento ou em comunidade, mantendo relações harmoniosas com o ambiente.

            Harmonia é um conceito cartesiano que nos transmite a ideia de que engrenagens interligadas funcionam com perfeição. Numa economia de subsistência, que dominava as terras do futuro Brasil pré-europeu, certamente as relações entre as sociedades humanas e o ambiente eram pautadas pelo equilíbrio. Contudo, na medida em que a economia de mercado foi ganhando terreno depois de 1500, com a integração progressiva do Brasil ao mundo europeu, o equilíbrio foi se esfacelando. A economia predominante ainda resistiu no contexto dos manguezais do Brasil porque se tratava de um ambiente desprezado. Mas o extrativismo vegetal e animal aumentou. O manguezal acabou capturado pela economia capitalista e, consequentemente, globalizada. Hoje, a vida das pessoas que dependem do manguezal é dura. Mesmo nos imensos manguezais do Norte do Brasil.

            Em meio ao depoimento realista e duro de Moisés, ainda pude encontrar beleza. Nunca havia conhecido manguezais tão extensos e tão desenvolvidos como os de Ajuruteua. Tais extensões e dimensões se explicam pela localização dos manguezais nas cercanias da linha do equador e pela amplitude das marés. Quem estuda manguezais sabe que eles se desenvolvem mais na zona equatorial e que diminuem na medida em que se caminha para os Trópicos de Câncer e de Capricórnio. Sabe-se também que os manguezais medram em água salobra, derivada do encontro da água doce dos rios com a água salgada do mar. Na zona equatorial, as marés penetram fundo no continente, propiciando vastas extensões de manguezais. 

Enorme exemplar de siribeira

            Não visitei a charmosa praia de Ajuruteua, que os governos estadual e municipal pretendem vender como um dos grandes atrativos turísticos do Pará. Pelo que vejo da praia, em fotografias, ela tende a se tornar padronizada como as outras. As matérias promocionais dizem que a praia de Ajuruteua tem tudo para atrair investidores desde que o ambiente seja respeitado. Sabemos muito bem que, no cabo de guerra entre ambiente e empreendedorismo, a corda sempre arrebenta do lado do ambiente. Não visitei as pousadas, os quiosques, os petiscos, os trajes típicos estilizados, as morenas que frequentam a praia.

            Depois de assistir a uma demonstração discreta de carimbó, visitei uma aldeia de pescadores de Ajuruteua, onde os participantes do Encontro foram muito bem recebidos. Lá, pela primeira e única vez até agora, provei o turu, um molusco vermiforme que perfura árvores velhas. Ele estava morto numa caneca com sumo de limão. Nenhum visitante teve coragem de ingeri-lo. Como eu já havia tomado algumas doses de bebida alcoólica, não hesitei em engolir o animal sob aplausos gerais. Os pescadores atribuem propriedades afrodisíacas a este animal.

            Em Ajuruteua, fiquei impressionado com as dimensões das árvores de manguezal. Diante dos exemplares de mangue vermelho, não resisti à tentação de beijar seus enormes rizóforos, ramificações do caule. Também admirei os altos exemplares de siribeira, com suas alongadas raízes respiratórias. Fotografei uma típica casa de pescador, com paredes de taipa e telhado de palha. Em Ajuruteua, eu encontrava o passado.

            Mas esse mundo fascinante para mim foi estuprado por uma estrada, cujas obras iniciadas em 1973 foram concluídas em 1991, aterrando rios, canais naturais (furos) e devastaram imensas áreas de manguezal, afetando a atividade de pescadores e coletores. Como o manguezal do rio Caeté é muito extenso, a abundância de caranguejos proporciona uma economia coletora expressiva. A rodovia compromete essa economia em nome do progresso e de um turismo predatório que oferece uma natureza selvagem na praia de Ajuruteua. Em vários manguezais do Brasil, as populações deles dependentes creem em entidades protetoras, como a Vovó do Mangue, a Moça Bonita, o Vira-Pau. O manguezal do rio Caeté conta com a proteção de Ataíde, personagem lendário com pênis descomunal para ferir homens principalmente. Infelizmente, o manguezal não pôde ser protegido do chamado “progresso”, que dessacraliza o mundo.

Casa de pescador em Ajuruteua

            Em Bragança, apreciei a arquitetura, mas não deixei de notar os sérios problemas de saneamento básico, muito comuns nas cidades brasileiras, notadamente nos bairros pobres. Na cidade em que moro, também existe esse problema. Em Bragança, encontrei Cavalcante e Miguel Lira, pintores ingênuos de quem adquiri telas que estão nas paredes da minha casa. 

Tela de Cavalcante retratando manguezal 

Tela de Miguel Lira retratando manguezal

VISÃO DA ÍNDIA

Arthur Soffiati

            Do sexto andar do prédio onde moro, contemplo uma vasta planície que se estende a meus pés. Estamos em Campos dos Goytacazes, estado do Rio de Janeiro, Brasil. Essa planície foi construída por um rio de porte médio. É o rio Paraíba do Sul, com quase 1.200 km. Na borda dessa planície, o mar formou uma grande restinga. Havia muitas lagoas nela antes da chegada dos europeus. As plantas que desceram das montanhas tiveram de se adaptar à grande umidade. Colonizaram o território as espécies resistentes à água. A fartura de alimentos era grande para os povos nativos que a habitavam.

            Recuando 500 anos, não haveria pontos altos para contemplar a imensa planície. Ao custo de muitas obras de drenagem a partir do século XVII, os núcleos urbanos em estilo europeu foram sendo construídos. Mesmo assim, apenas 150 anos após a chegada de Pedro Álvares Cabral. A primeira tentava de colonização pelos portugueses, entre 1539 e 1547, fracassou. Do outro lado do mundo, a colonização portuguesa prosperava em Goa, Damão, Diu, Malaca, Macau e Timor. Ela se expandiu mais na Ásia onde estavam as riquezas que interessavam aos europeus. Toda a região aonde estou fazia parte da Capitania de São Tomé, doada a Pero de Gois.

            Árvores de grande porte, que cresciam na zona serrana da Capitania, não desciam até a planície em virtude da grande umidade. Era um mundo líquido com poucas áreas ligeiramente mais elevadas em tempos de estiagem. A partir de 1630, o gado europeu e a cana-de-açúcar asiática foram se expandindo pela mão do colono. Árvores da montanha foram sendo trazidas para as partes baixas. Da Ásia, em grande parte a partir de Goa, chegaram das espécies herbáceas às espécies arbóreas. Os capins fura-chão e cidade, vieram da Índia, assim como a mamona (Ricinus communis, da família Euphorbiaceae), a mangueira (Mangifera indica, da família Anacardiaceae), a jaqueira, a amendoeira, a fruta-pão, a lexia, o coqueiro, o jambo e outras mais.

Ilustração de mamona

            Hoje, olho para baixo e vejo à minha frente muitas mangueiras e amendoeiras. Em menor quantidade, encontro jaqueiras, lexia, fruta-pão e jambo. Andando pelas ruas dessa cidade erguida sobre lagoas, é muito comum encontrar mamonas crescendo de forma espontânea nos terrenos baldios.

Ilustração de mangueira por Michael Boym, em Flora Sinensis, 1656

            Um pedaço da Índia está à minha frente, assim como um pedaço do Brasil deve estar em Goa. Mas poucas pessoas sabem disso ou por isso se interessam.   

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

CERÂMICA MARAJOARA

Arthur Soffiati

            Há uns quarenta anos, entendo que a cultura material de uma sociedade reflete sua cultura imaterial. Aos poucos, fui entendendo que existe uma relação dialógica entre cultura imaterial e cultura material. Uma interfere na outra, produzindo transformações em ambas. É algo distinto do que concebia Hegel, para quem o jogo dialético transcorria no mundo das ideais com reflexos na esfera material. É também algo distinto do que pensava Marx, que entendia o mundo das ideias como produto da dialética das forças materiais. Edgar Morin percebeu um jogo dialógico, segundo o qual a cultura imaterial cria a cultura material que cria a cultura imaterial.

            Um exemplo claro é o da cultura do Egito antigo. A arquitetura, a escultura e a pintura não são obras de diletantismo, mas expressam o espírito daquela civilização e suas transformações ao longo do tempo. Pode haver difusão de valores culturais de um povo para outro, mas o que faz empréstimo entende a cultura credora a sua maneira, ressistematizando o empréstimo. O historiador profundo é aquele que parte da cultura material para alcançar e interpretar a cultura imaterial. A cultura material de uma sociedade extinta não chega íntegra ao presente. Sempre há perdas. Então, é preciso partir do que restou para reconstituir o que se perdeu. A partir daí, é necessário alcançar a cultura imaterial.

            O que noto nos arqueólogos é que eles são propensos a tomar a cultura material restante de um povo como objeto e se contentar com ela, examinando padrões de constituição e área de difusão. Por essa razão, os capítulos do livro “Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese” (Belém: IPHAN, 2016) não respondem às minhas perguntas porque a maioria deles se contenta em examinar o material cerâmico (cultura material) em si.

            Na minha excursão a Soure, ilha de Marajó, encontrei pequenos fabricantes de cerâmica marajoara para venda a turistas. Em várias lojas, essa cerâmica é encontrada. Comprei algumas peças por simples deferência. Comprei também um livro do padre Giovanni Gallo (“Motivos ornamentais da cerâmica marajoara”. Cachoeira do Arari, PA: Museu do Marajó, 2005) destinado a ensinar os motivos da arte marajoara para bordado e tapetes. Os imitadores talvez alcancem mais perfeição em reproduzir a arte marajoara que seus próprios criadores, mas falta-lhes o espírito da cultura imaterial que produziu a arte original. Inclusive, mestiços de índios (existem muitos na Amazônia) usam um discurso de misticismo para vender suas peças.

Cristiana Barreto é autora de “O que a cerâmica marajoara nos ensina sobre o fluxo estilístico na Amazônia?”, inserido no livro de arqueologia que mencionei aqui. Do seu texto, fiz apenas dois destaques. Primeiro: “As análises iconográficas que realizamos com peças inteiras de cerâmicas Marajoara (...) confirmam a ênfase na relação humano-animais (...) também aproximam as formas de representação e linguagens estilísticas Marajoara às artes típicas de sociedades ‘contra estado’, com um ethos mais caçador-coletor, onde predominam ontologias perspectivistas e práticas xamânicas de transformação corporal.”

Autêntica cerâmica marajoara

Tentando traduzir, a autora vislumbra nas cerâmicas da ilha representações que nos levam a crer numa atitude perspectivista dos povos que a produziram. O perspectivismo é uma proposta do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que, em síntese, atribui aos povos indígenas da América uma concepção segundo a qual humanos e animais partilham a mesma cultura, mas não a mesma natureza, pois a constituição anatômica das várias espécies percebe a natureza de formas diversas. E só os xamãs podiam fazer contato entre humanos e animais. Vivos e mortos. Em se tratando de sociedades que repeliam o Estado, como defendeu o antropólogo francês Pierre Clastres, cabem algumas reflexões. Pelo que sei, a cerâmica marajoara mais conhecida corresponde à quarta fase cultural desenvolvida na ilha. Ela pressupõe uma organização social e política elaborada para liberar do trabalho braçal os artesãos. Nunca existiu na ilha um Estado como o conhecemos, mas alguma forma de organização política, ainda que em nível neolítico, deve ter existido para sustentar tão grande população, promover tanques para a criação de peixes, planos elevados (tesos), diques, habitações e a famosa cerâmica. 

Segundo: “... sugerimos que a complexidade da cerâmica Marajoara não seja necessariamente resultante de processos de intensificação da complexidade social e hierarquização, mas sim da complexidade, diversidade e extensão das redes de interação social e fluxo estilístico em que estavam inseridas estas sociedades.” O que sugere a autora é que houve mais complexidade nas trocas que na organização social entre 350 e 1400 anos da era cristã na ilha. Não há dúvida de que as trocas culturais foram muitas. No vale do rio Napo, no Equador, foi encontrada uma cerâmica muito semelhante à quarta cerâmica de Marajó, o que nos leva a pensar em trocas de longa distância. Mas os elementos trocados eram ressistematizados por cada sociedade, o que implica em organização social elaborada.

Cerâmica napo

As fases cerâmicas de Ananatuba, Mangueiras, Formigas, que precederam a fase Marajoara, também receberam influências externas e as adaptaram a realidades sociais próprias. Assim, devemos considerar os planos horizontal (difusão) e vertical (ressistematização), dando mais importância ao segundo.


TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...