sexta-feira, 17 de março de 2023

MODO DE APANHAR PÁSSAROS À MÃO

Arthur Soffiati

Maria Valéria Rezende é freira da Congregação de Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho. Ela tem uma história política de lutas contra o regime militar que dominou o Brasil entre 1964 e 1985. É formada em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy e em pedagogia pela PUC-SP. Trabalhou com educação popular em diversos lugares do Brasil e do mundo. Publicou vários livros e artigos de não ficção. Hoje, mora na Paraíba.

Começou na literatura em 2001, com o livro “Vasto Mundo”. Seus mais conhecidos livros são “O voo da guará vermelha” (2005), “Quarenta dias” (2014), “Outros cantos” (2016) e “Carta à rainha louca” (2019). Seu primeiro livro de contos é “Modo de apanhar pássaros à mão”, de 2006, que acabo de ler. Hoje, ela é uma escritora consagrada e premiada. É uma das que mais aprecio. Li com atraso “Modo de apanhar pássaros à mão” (Rio de Janeiro: Objetiva, 2006). São contos de uma principiante, mas já demonstrando qualidade. Todos eles têm a marca da autora. Todos muito humanos, muito ternos, muito sensíveis. Anotei, ao fim do conto “Lamento para harpa e tuba” que ele nunca deveria acabar. Creio mesmo que ele daria um bom romance. “O homem invisível” é quase uma crônica sobre o amor. “A princesa de Troia” versa sobre o ódio. “A bicicleta” trata da morte. “Metamorfose” é um conto criativo dedicado a Frei Beto. No final, fica-se sabendo que o personagem central é um vampiro que abandona a Europa e se transfere para a América, substituindo sangue humano por bifes sangrentos.

A leitura dos contos foi como que um ajuste de contas que fiz com a autora e com os livros do passado que não consigo mais ler por falta de tempo.

domingo, 12 de março de 2023

COISAS QUE OS HOMENS NÃO ENTENDEM

Arthur Soffiati

Elvira Vigna morreu com 70 anos em 2017. Carioca de nascimento, viveu em São Paulo. Começou sua vida profissional como jornalista e ilustradora, tornando-se uma das maiores ficcionistas da atualidade. Além de escrever para adultos, ela escreveu para crianças e jovens. Conhecendo o tom amargo e desiludido de seus romances para adultos, fica difícil imaginá-la escrevendo para crianças e adolescentes. A autora foi premiada tanto como escritora quanto como ilustradora.

Seu primeiro romance adulto foi “Sete anos e um dia”, de 1984, só publicado em 1988. Daí em diante, ela nunca mais parou de escrever. Os títulos de seus livros são meio inusitados: “A um passo de Eldorado” (1990), reeditado como “A um passo” em 2004; “O assassinato de Bebê Martê” (1997); “Às seis em ponto”(1998); “Coisas que os homens não entendem” (2002), “Deixei ele lá e vim” (2006); “Nada a dizer” (2010); “O que deu para fazer em matéria de história de amor” (2012), “Por escrito” (2015),  “Como se estivéssemos em Palimpsesto de putas” (2016).

Vigna afirmava que todos os seus romances eram baseados em pessoas, lugares e fatos reais, que aconteceram pessoalmente com ela ou com pessoas próximas, bastando-lhe encontrar o narrador para suas histórias. Quando ela envolvia outras pessoas, a autora mudava algumas características e fatos para que as personagens não pudessem ser reconhecidas. Ela sempre teve o cuidado de pedir permissão aos envolvidos para a publicação de seus livros. Seus escritos não são explicitamente políticos, mas possuem camadas narrativas que podem trazer um olhar político implícito, uma maneira muito única de ler as relações interpessoais.

Li “Coisas que os homens não entendem”, romance de 2002. Ele narra um caso de assassinato que misteriosamente não foi desvendado pela polícia ou arquivado como caso insolúvel. Uma das pessoas que estavam na cena do crime era uma mulher jovem e bonita que começou a trabalhar como jornalista na redação de um jornal em que só havia homens. Ela se torna amante de um jornalista em cuja família acontece o crime. Foi num apartamento de Santa Tereza. A jovem se transfere para Nova Iorque. Anos depois, ela retorna ao Rio de Janeiro e luta consigo mesma para não voltar a Santa Tereza. “Amanhã decido se vou a Santa Tereza. E na verdade falo Santa Tereza, mas ir lá é a mesma coisa que ir para bem longe de lá, porque lá não haverá mais nada, eu mais uma vez fingindo que volto a um lugar quando na verdade estou indo para longe dele.” Mas não resiste. A capacidade da autora de descrever espaços é notável. Ruas, bares, prédios, detalhes do apartamento em que ocorreu o assassinato, a movimentação quase maquinal das pessoas. “A música acontece nos botequins, são sambas antigos, tocados em pandeiro, cavaquinho e tamborim e que são instrumentos de homens (...) Mulher não toca, mulher canta e dança”.

Afinal, quem teria cometido o crime? É a pergunta que perpassa o livro do princípio ao fim. O título do livro é tomado de Camões. Parece, contudo, que não só os homens, mas também as mulheres não entendem certas coisas. Dentro de si, a moça está pacificada e retorna para Nova Iorque, passando no Norte e no Nordeste do Brasil. Tendo sido amante do pai, ela se torna amante do filho. Não é dos melhores romances de Vigna, mas sua marca inconfundível está nele.

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...