sábado, 21 de janeiro de 2023

O QUE ELA SUSSURRA

Arthur Soffiati

Noemi Jaffe lançou “O que ela sussurra” (São Paulo: Companhia das Letras, 2020), seu oitavo romance. Na verdade, é a triste história real do casal russo Óssip Maldelstam e Nadejda. Ele é considerado um dos maiores poetas russos. Por razões políticas, ele foi perseguido e preso, morrendo na prisão. Como marido, ele deixou muito a desejar, mas como poeta foi genial. Seus poemas não puderam ser publicados enquanto vivia. Então, a viúva memorizou todos eles com um esforço sobre-humano para que os poemas de seu injustiçado e perseguido marido um dia fossem conhecidos e reconhecidos.

Noemi escreve bem, mas não surpreende.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A TENSÃO SUPERFICIAL DO TEMPO

Arthur Soffiati

Um casal adota uma criança. O pai adotivo morre antes que o menino desenvolva memória. Ele cresce com a mãe adotiva e se apega muito a ela. A mulher gosta de filmes, e o filho aprende com mestria lidar com os recursos da informática. Ele pirateia filmes para ela e para os amigos. Ele cresce e se forma em química, tornando-se um professor bastante admirado num cursinho pré-vestibular. Casa-se e se separa. Conversa com um amigo sobre suas intimidades. No cursinho, tem colegas pró e anti-Bolsonaro. Aproxima-se de uma aluna que o apresenta a seu pai e a sua madrasta. O pai é Procurador Federal. Ele fica fascinado pela madrasta. Parece que ela também sente atração por ele. No final, ambos vivem um amor tórrido por dois dias na ausência do marido. Ela termina logo com ele, que fica completamente desnorteado. Do jeito que eu narrei, a história é simples e linear. Não nas mãos de Cristóvão Tezza, um dos grandes ficcionistas da atualidade. Ele corta a linha dessa história em fatias e faz uma montagem em que o passado se intromete no presente e um recorte espacial se liga a outro. Sua narrativa prima pelo simultaneísmo. Até mesmo algo que vai acontecer, na verdade, já aconteceu.

Tezza se tornou conhecido pelo livro “O filho eterno”, de 2007. A partir de então, sua escrita foi se tornando complexa, com a superposição de tempo e espaço, de realidade e imaginação, de sonho e vigília. O marco inicial dessa fase, embora ela já se anunciasse em livros anteriores, é o romance “O professor”, de 2014. Sucederam-se “A tradutora” (2016), “A tirania do amor” (2018) e, em 2020, “A tensão superficial do tempo” (São Paulo: Todavia, 2020). Em seus romances, entram personagens de outros que ele escreveu, como é o caso de Beatriz, quase onipresente. E eles sempre riem. Não gargalhadas, que só ocorrem ocasionalmente, mas sorrisos discretos que, muitas vezes, não requerem a abertura da boca, e risos perceptíveis ou interiores. O riso é sempre uma forma de achar graça de si mesmo, dos outros e do mundo. O universo de Tezza é interior, embora exteriorizado. Sua ficção sempre exige pesquisa, como nos primeiros livros de Rubem Fonseca.

E a narrativa complexa exige uma verdadeira ginástica. Trata-se de recorrer a travessões, itálicos, parênteses. Passa-se do narrador onisciente, para a fala explícita de um personagem e para o pensamento. A vida de uma pessoa não é linear como se pensa. Ao acordar, lavar-se, tomar café, trabalhar, voltar para casa, amar, conversar, a fala interior, o inconsciente, a imaginação estão presentes. E elas não estão exteriorizadas, como calçar sapatos, por exemplo. Tezza se afirma como um grande escritor. Depois de “O filho eterno”, em que relata sua relação com o filho down, o público parece não mais conseguir acompanhá-lo em sua prosa complexa.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

QUANTO CUSTA UM ELEFANTE

Arthur Soffiati

Desde sua estreia com o livro de contos “Fátima fez os pés para mostrar na choperia” (1998), Marcelo Mirisola vem ocupando, na literatura, um lugar bastante próprio. Ele é sempre o personagem principal dos seus romances, vivendo papeis os mais diversos, mas sempre na periferia. No mundo da marginalidade, entre bandidos, mulheres desclassificadas, gays do submundo. Em “Quanto custa um elefante” (São Paulo: Editora 34), não é diferente. Sua relação com uma ex-namorada que ele não quer tirar de sua vida é uma mulher bastante bandida. Ela o explora, mas é embebedada e estuprada por ele. Seu nome – Ruína – é bem apropriado para um romance em que se discute política nacional, mas em que também o povo rico e pobre pratica a corrupção como overdose ou como homeopatia.

Ele negocia com Deus e o Diabo e consegue desagradar a ambos ou é castigado por ambos. “... o diabo não me atendeu porque Deus não quis; então, na verdade, eu estaria sendo protegido e deveria agradecer a Deus pelo fato de o diabo não ter dado minha prenda.” Mirisola ocupa um lugar em que se sente confortável e não ameaçado.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

APÁTRIDAS


Arthur Soffiati 

Leio ficção desde os 12 anos, mas ainda não consegui definir o caminho a seguir. Não sei se leio os clássicos ou os livros lançados a cada ano como primeira edição. Sempre que posso, leio um clássico. Sei, contudo, que é insuficiente. Pelo menos, sigo o conselho dos professores, sobretudo os de português e de literatura: leiam. Para saber escrever é preciso ler. Não tenho certeza de que os professores que davam esse conselho liam. Por conta própria, descobri que, para saber escrever, não basta ler. Outra ousadia minha é comentar as leituras que faço. Por mais que os professores de literatura insistam na importância da leitura, eles olham de través para o leigo que se atreve a escrever como se fosse críticos literário. Por isso, deixo sempre bem claro meu caráter de curioso e de leigo.

Em 2020, li nove romances entre brasileiros e estrangeiros, todos publicados nesse ano, embora pelo menos um – “Quéreas e Calírroe” – date do século I d. C. Claro que livros lançados em primeira edição num ano nem sempre são escritos no ano de sua publicação. Começo com o primeiro: “Apátridas”, de Alejandro Chacoff (São Paulo: Companhia das Letras). Trata-se de uma narrativa sobre o desconforto causado por uma pessoa não se sentir identificada com um país. Um casal em que homem e mulher têm interesses diversos vive nos Estados Unidos, no Chile e finalmente no interior da Região Centro-Oeste. Existem casos como este na minha família, o que me ajudou a compreender melhor a sensação de desterro do narrador. Adulto, ele passa a viver na Inglaterra.

As línguas parecem estranhas. O desterrado cria a sua própria língua. Trata-se de um dos frutos da globalização. No romance, o narrador acaba bastante impressionado com sua família brasileira e com a personalidade forte do avô. Seus pais se separaram, mas seu pai continuou a manter contatos frequentes com o ex-sogro. Existe um segredo do passado que só será revelado mais tarde. O avô não tem nada de especial, mas seu pragmatismo marca a vida do neto.

“O passaporte de Cauê causou certo frisson, e por um tempo todos na sala pareceram tomar consciência de que tinham vindo de um outro lugar. Sobrenomes na lista de chamada que antes não significavam nada para ninguém, ganharam força. Marina Humpfer – cujo sobrenome eu voltaria a ler na ‘Folha de São Paulo’ anos depois, quando a empresa agrícola do seu pai apareceu numa lista de acusadas de prática de trabalho escravo – disse que tinha nascido em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, mas que sua família viera de Graz, na Áustria. Fábio Richetti falou que comer lasanha com arroz, como se servia no Marcello’s, o restaurante do Shopping Tamoios, era de uma cafonice absurda. ‘As pizzas de Napoli são grossas’, dizia, esfregando o dedo indicador e o polegar, com um sorriso bobo, como se evocasse alguma memória longínqua.”

Essa passagem ilustra a globalização atual. Não é preciso andar pelo mundo para percebê-la porque, hoje, o mundo pode ser encontrado num pequeno lugar. É o primeiro livro de Chacoff. O autor estreia bem e é uma promessa na ficção.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

CERCADA DE CARNE E SANGUE POR TODOS OS LADOS

Arthur Soffiati

Ieda Magri publicou “Uma exposição” (Belo Horizonte: Relicário, 2021), livro de ficção intermediária. Não é um romance, onde a realidade é recriada de forma fictícia, por mais que exista um fundo de verdade. Não é também autobiografia em que, por mais fiel que a autora seja com relação a uma realidade vivida, uma vida é narrada em sua trajetória. É mais um acontecimento autobiográfico. Melhor, é mais um relato do contexto real em que a autora se movimentou quando criança e adolescente e que impregnou sua vida.

Não direi que o livro é dos melhores publicados em 2021, ano em que poucos títulos sustentáveis vieram à lume. O contexto é a pequena cidade catarinense de Águas Frias, onde ela nasceu a viveu parte de sua vida antes de se transferir para o Rio de Janeiro. O lugar parece uma ilha cercada de carne e sangue. Seus moradores são carnívoros sem qualquer sentimento de culpa.

Os animais frequentam vários livros publicados em 2021 no Brasil, embora vários já tivessem sido lançados em anos anteriores no passado. Os animais ganham cada vez mais espaço na literatura, geralmente defendidos pelos autores e até mesmo como personagens. De Donna Haraway, foi publicado “O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa” (Rio de Janeiro; Bazar do Tempo). Originalmente, o livro data de 2016. De John Berger, saiu “Por que olhar para os animais?” (São Paulo: Fósforo), coletânea de ensaios do pensador e fotógrafo. “A extinção das abelhas”, de Natalia Borges Polesso (São Paulo: Companhia das Letras), insere, numa distopia atual, a morte de abelhas como indicador da crise ambiental. “Contos morais”, de J. M. Coetzee (São Paulo: Companhia das Letras) não é de hoje. Foi lançado a mais tempo e traz de volta Elizabeth Costello, a defensora dos animais, agora velha. Adriana Lisboa publicou “O vivo” (Belo Horizonte: Relicário), coletânea de poemas inspirados na diversidade biológica. Por fim, mas não por último, foi publicado o famoso relato “Escute as feras”, de Nastassja Martin (São Paulo: Editora 34).

Em “Uma exposição”, Ieda Magri destoa de todos os autores mencionados acima. Ela nasceu, viveu sua infância e parte da juventude em Águas Frias, pequena cidade em que havia uma guerra real declarada aos animais. A bem dizer, a região sul do Brasil é mais carnívora que as demais do Brasil. Assim parece. O pai de Ieda chorava com o sofrimento dos animais. Contudo, não deixava de matá-los de forma violenta para transformá-los em comida. A mãe, os filhos e os parentes também encaravam a morte dos animais com naturalidade. Era e é um mundo cercado de sangue e carne. A autora sofre mais pela morte de um pé de alface que pela morte cruel de um boi.

Mas ela reflete sobre uma possível consciência da morte nos animais: “O mais terrível era não saber se os animais sabiam ou não que iriam morrer, se eles sentiam ou não com antecedência. Na hora em que estavam sendo mortos, eles sabiam, eles sentiam não só a dor, mas também a angústia. Porque, do contrário, por que se recusavam à corda e à faca? Por que tentavam fugir? Mesmo as galinhas, quando íamos buscá-las no galinheiro - era nossa tarefa -, por que fugiam? E por que cacarejavam desesperadas quando nossa mãe estava prestes a torcer-lhes o pescoço?” Mas, depois de morta, observa a autora, “Nenhum de nós se solidariza com uma galinha.”

Havia, da parte dela, a desconfiança de que os bois pensavam e interagiam com os humanos. “Eles chegavam muito perto de nós e era como se entendessem o que estávamos falando. O que nunca nos impediu de comer o coração deles.” Ela percebia o sofrimento dos peixes: “Nunca pensei nos sentimentos de um peixe, se bem que sempre tive certeza de que sofriam quando os via se debaterem ao serem lançados na grama presos pelo anzol.”

Já adulta, voltando a sua cidade natal, ela foi a uma fazenda em que os bois eram escolhidos e mortos friamente, como se fossem uma fruta escolhida no balcão de um supermercado. O matador perguntava, em seguida, se o comprador queria as vísceras. Não era apenas um por dia, mas quantos os fregueses desejassem. Tudo com bastante naturalidade, revelando a cultura reinante na cidade quanto à relação com os animais. Quem assiste a “Sangue das bestas”, curta-metragem de Georges Franju (1948), precisa ter frieza. O diretor mostra que os abatedores preferidos eram criminosos violentos que já haviam cumprido suas penas. Embora em preto-e-branco, o filme abala pessoas sensíveis. Algo parecido talvez ainda aconteça em Águas Frias e outras cidades do sul.

Por outro lado, o abate asséptico dos frigoríficos industriais é hipócrita. Matar sem dor, com toda a higiene, como se se tratasse de máquinas e não de seres vivos. “Nossos animais são abatidos de forma humana”, é mais ou menos o que propala a indústria da morte animal, desde o nascimento criado para o sacrifício e para o consumo.

É comum crianças gostarem de animais domésticos ou silvestres e se compadecerem deles se sofrem maus tratos. Não, porém, com Ieda Magri e sua família. Por sua descrição, a mãe era bastante fria com animais e filhos. Era cruel com seus filhos e impiedosa com animais, notadamente com galinhas. Presenciei a degolação de uma galinha quando criança e fiquei chocado para sempre. No entanto, escreve Magri: “Quando eu era criança, o dia de matar porco era dos mais felizes. Lembro de acordar cedo, acompanhar meus pais ao chiqueiro -o porco já estava escolhido no dia anterior e estava separado dos outros. Com o nascer do sol, ele era levado pra fora, no piquete, e ganhava um belo banho de mangueira. Era tocado apenas com gritos e gestos para o porão da casa velha, lugar limpo pra matança, com mesa, fogo, tanque, água corrente, chão de concreto. Meu pai se aproximava do porco, de cócoras, pra ficar na sua altura, o abraçava com o braço esquerdo e dava a facada com a direita. Meu irmão e eu olhávamos de fora, pelas janelas baixas. Era triste, mas era rápido. O porco gritava, o porco chorava, meu pai repetia as facadas quantas vezes fossem necessárias, nunca muitas. O porco morto no chão e a água forte da mangueira empurrava o sangue pra vala na entrada do porão. Toda vez que quero escrever porco escrevo corpo e, antes de corrigir, dá tempo de imaginar seu corpo no chão da sala de modo que o porco e o corpo ficam confundidos e me dói pensar que tantas vezes comi seu coração. Lembro bem do cheiro da merda, do cheiro da lama, do cheiro dos torresmos e da banha e do maravilhoso e duradouro cheiro do salame. Não lembro do cheiro do sangue. Nem de nenhuma dor. A morte do porco era a alegria, a festa, os pés molhados, a suspensão das regras, dos horários, das boas maneiras.” Há apenas uma ponta de compaixão, compensada com os prazeres da carne.

Mais uma vez, a piedade com as plantas: “Minha mãe colhia um pé de alface na horta e eu sofria muito mais aquela vida arrancada do que a do porco.” A matança de animais era generalizada. Passarinhos abatidos para tornar a polenta mais saborosa era algo corriqueiro. “Depois que intuímos que era errado matar passarinhos pra comer - ou depois que proibiram essa prática? - nunca mais teve polenta consa na nossa casa. Meu irmão e eu caçávamos rãs no poço.” Lembro que, na minha infância, a criançada pescava rã nos terrenos baldios depois de chuvas fortes. Eu também fazia isso, mas apenas usando isca. Nunca anzol. E soltava a rã em seguida.

Matava-se para comer ou simplesmente matava-se. “Meu pai pegou a espingarda de pressão e disse: - Venham, meninos, vamos matar gatos. Só uma espingarda, três assassinos convencidos de que eram eles ou nós. Nunca sofri por termos matado aqueles gatos.” A ojeriza a gatos acompanhou Ieda Magri depois de adulta. Ela declara que tratava gatos de estimação dos outros com certa repulsa: “Deixo ela lamber a minha mão, mesmo que isso produza um arrepio quase insuportável nos meus pés e me lembre o prazer que sinto quando você morde as pontas dos meus dedos.”

E a autora declara: “Eu não era uma criança louca! Só sensível demais. Uma sensibilidade curiosa, em todo caso, uma sensibilidade que me permitia cortar a orelha de um gato, matar um, sentir raiva da vaca que mijava enquanto eu tirava o leite, matar ratos com ratoeira ou pedra, torcer o pescoço de uma galinha, caçar rã, odiar o cachorro que latia quando eu queria dormir, o maldito galo de manhã e amar um pé de alface.” Estranha sensibilidade. E nenhum remorso ficou nela depois de adulta: “... Não senti saudades de nenhum dos animais da minha infância, nem mesmo da vaquinha que seria minha quando casasse - a Bonita - e que acabou virando carne pra um ano quando me recusei a casar, quando minha vida não comportava mais uma vaca, mas senti falta (e ainda sinto, inconformada) da amoreira de tronco largo onde eu deitava, ouvia a água do riacho correr devagar, sentia o cheiro dos beijos - a planta que cresce na água - e comia amoras maduras e doces; assim como sinto falta do pessegueiro de pêssegos brancos que procuro todo ano no supermercado e nunca têm aquele sabor, ou do pé de figo bem em frente à janela da cozinha. Sinto falta dos pés de alface, claro.”  

A relação dos habitantes de Águas Frias, da família de Ieda e dela própria é de guerra contra a natureza animal: “Talvez nossa relação com os animais maiores fosse esta mesma: antes eles do que nós. Pouca compaixão, muita disputa. Pela vida.”

domingo, 15 de janeiro de 2023

A PRIMEIRA FASE DO MODERNISMO E A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA (FINAL)

     


                                                                         Arthur Soffiati

Flávia Camargo Toni, estudiosa da dimensão musical de Mário de Andrade, debruçou-se sobre o acervo discográfico do intelectual. Sua coleção de discos parecerá pequena perto de um acervo particular atual, mas era grande em sua época. O total da discoteca atinge 544 unidades, sendo que 161 referem-se à música popular urbana. 184  contêm música folclórica da Argentina, Cuba, Portugal, Estados Unidos, Haiti, Espanha, Alemanha, Grécia e Paraguai. A coleção começa em 1927, quando se iniciou no Brasil a gravação elétrica, e se estende até 1945, ano da sua morte.

Flávia reuniu de forma crítica as anotações que Mário de Andrade fez quanto aos discos de música popular brasileira no livro “A música popular brasileira na vitrola de Mário de Andrade” (São Paulo: Senac, 2004). O livro remete a “Os cocos”, “Compêndio de história da música”, “Dicionário musical brasileiro”, “Ensaio sobre a música  brasileira”, “Música de feitiçaria no Brasil”, “Música, doce música”, “Aspectos da música brasileira”, “Taxi e crônicas no Diário Nacional: 1928-1932” e “Música final”, todos eles de Mário, seja publicados em vida quanto organizados por pesquisadores postumamente. José Ramos Tinhorão, conhecido crítico de música popular brasileira, redige a apresentação.

O musicólogo Mário de Andrade, sempre muito organizado, tinha o hábito de substituir a capa original do disco, ainda muito pobre em termos gráficos, por capas de cartolina. Ao fazer a barba pela manhã, ele colocava os discos para girar na sua vitrola a corda e registrava suas impressões na capa de cartolina. Camargo Toni observa que, quando Mário abria um tema de pesquisa em sua vida, alimentava-o constantemente com novas descobertas. Era um pesquisador de tempo integral. Contudo, não são muitas as notas que ele redigiu nas capas de cartolina. A organizadora e comentadora do livro mapeou as referências distribuídas em vários livros, adicionando-as às notas. Para Mário, a distinção entre rural e urbano era fundamental. O rural era o espaço da música folclórica e o urbano o domínio da música popular.

O não estudioso pensa que Mário de Andrade valorizava apenas a música erudita e folclórica, desinteressando-se da música popular urbana por considerá-la produto da industrial cultural e por ser contaminada pela indústria fonográfica. Está certo que ele não tenha dedicado nenhum livro seu a esse gênero nascente em sua época, mas ouviu e admirou muitos compositores e intérpretes, consagrados uns e esquecidos outros. Ele ouviu Almir Sampaio, Almirante, Antônio da Silva Calado, Araci de Almeida, Ari Barroso, Assis Valente, Ataulfo Alves, Augusto Calheiros, Baiano, Bando da Lua, Benedito Lacerda, Carmem Miranda, Cartola, Catulo da Paixão Cearense, Cornélio Pires, Dalva de Oliveira, Donga, Dorival Caymmi, Elsie Houston, Ernesto Nazareth, Francisco Alves, Garoto, Gastão Formenti, Grande Otelo, Haroldo Lobo, Heitor dos Prazeres, Hekel Tavares, J. Caramuru, Jararaca, João de Barro, João Felipe da Costa, Joraci Camargo, Josué de Barros, Joubert de Carvalho, Lamartine Babo, Lirio Panicali, Luperce (Miranda), Manezinho Araujo, Marcelo Tupinambá, Mário Reis, Moreira da Silva, Noel Rosa, Oduvaldo Vianna, Olegário de Godói, Pixinguinha, Príncipe Pretinho, Radamés Gnatalli, Silvio Caldas, Sinhô, Stefana Macedo, Tute, Turunas da Mauriceia, Valdemar Henrique, Wilson Batista, Zequinha de Abreu etc.

Mário externa grande admiração por alguns compositores e intérpretes. Um deles é Marcelo Tupinambá, ainda não tipicamente popular, mas um semierudito: “Nós temos hoje inegavelmente uma música nacional. Mas esta ainda se conserva no domínio do povo, anônima. Dois homens porém, de grande valor músico, tornaram-se notáveis na construção dela: Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá. São, com efeito, os músicos brasileiros por excelência (...) O que faz notável Tupinambá é a riqueza de invenção melódica brasileira, que nem mesmo Nazaré possui tão bela e tão patrícia. Aquela dolência caprichosa, lânguida; aquela sensualidade trescalante, opressiva, quase angustiosa; aquela melancolia das vastas paragens; desertas; aquele deserto, digamos assim, da linha melódica brasileira; e de quando em quando o arabesco inesperado; alerta, a vivacidade espiritual do caipira, a inteligência aguda, o burlesco repentino herdado dos negros, que tudo isso na cantiga nacional se revela; desapareceram das canções de Tupinambá. Deram lugar a uma melodia incolor. (Música, doce música).

Mário estava atento à dicção e à nasalação dos intérpretes. Ela detectava sotaque e o nasal português nos cantores e cantoras. Um comentário seu sobre Moreira da Silva: “O solista, sr. Moreira da Silva, apresenta uma voz de timbração deliciosa, profundamente nossa, carioca, um nasal quente, sensual, bem ‘de morro’. A dicção está cheia de defeitos ortográficos e na própria entonação, embora uma vez só, fere-nos um tãins (tens) aportuguesado, insuportável no meio de uma brasileirice de música e de timbre.” No seu entendimento, a dicção de Mário Reis é tipicamente brasileira, mais que a de Francisco Alves. Essas considerações sobre canções gravadas merecerão dois estudos que ele apresentará no Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada. Um deles é “Os compositores e a língua nacional”. O outro é “A pronúncia cantada e o problema do nasal pelos discos”. Ambos foram publicados nos anais do Congresso e ganharam separatas. Mais tarde, foram incluídos em “Aspectos da música brasileira”, o XI volume de suas obras completas (São Paulo: Martins, 1965).

Ele nota também que a música popular estava mudando para atender ao mercado fonográfico. Nascia, assim, uma música para discos e emissoras de rádio que desafiaria um crítico nacionalista como José Ramos Tinhorão. Músicas destinadas à dança estavam ganhando autonomia e adquiriam ritmo próprio: “Peças há, choronas, em que o movimento já não se coaduna mais com a dança, pelo menos com as danças brasileiras. A rapidez é cada vez maior, se percebendo que a peça é concebida exclusivamente para execução instrumental (até virtuosística...) sem que sirva para mais coisa nenhuma, nem pra se cantar nem pra se dançar.”

O chorinho, parece que nascido para ou estimulado pelo disco, encanta Mário, que o compara ao jazz elaborado: “Outro disco a citar é o Urubu, maravilhosamente executado por Pixinguinha, uma das excelências da discoteca brasileira (...) tais choros são a equivalência brasileira do hot-jazz, que também tantas vezes já é puro gozo instrumental, mesmo quando unido à voz, é duma violência de movimento, verdadeiramente dionisíaca, como é o caso do final do ‘Chinatown, my Chinatown’ e ‘I got rhytm’, foxtrots, o segundo de Gershwin, executados pelo hot-jazz e admirável Luis Armstrong.”

O interesse pela música popular urbana ou música popular brasileira ganhará estudiosos específicos a partir do fim da década de 1930, como Lúcio Rangel, José Ramos Tinhorão, Hermínio Belo de Carvalho e outros, todos admiradores de Mário de Andrade.  

A PRIMEIRA FASE DO MODERNISMO E A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA (I)

Arthur Soffiati

Costuma-se dividir o modernismo brasileiro em três fases. A primeira se estende de 1922, com a eclosão da Semana de Arte Moderna, a 1930, quando uma nova geração de escritores despontou. A segunda situa-se entre 1930 e 1945. A terceira fase ocorre depois de 1945. É claro que marcos temporais com datas precisas têm efeito didático. A rigor, o modernismo começa antes de 1922 (talvez em 1917) e estende-se aos nossos dias. Mesmo aqueles que declaram não ter recebido influência da primeira fase do modernismo, têm uma dívida com ele.

Na primeira fase, deu-se pouca importância à música popular, que já vinha modernizando sua linguagem musical e linguística. Que bastem os exemplos de Pixinguinha e Noel Rosa. Por mais elitistas que fossem os modernistas da primeira fase, o descuido com a música popular ocorreu porque os intelectuais estavam empenhados na luta contra os passadistas na literatura, e esta luta consumia-lhes a energia.

Havia um outro impedimento: a maior parte dos escritores não tinha formação musical. Vale dizer, não conhecia a linguagem da música. Não sabia ler uma partitura. Assim, a questão acabava restrita a músicos como Francisco Mignone e Villa-Lobos, por exemplo. Havia, contudo, um intelectual que lidava muito bem com interpretação, estética e história da música, sabendo ler partituras como se dominasse mais uma língua falada. Trata-se de Mário de Andrade, professor de história da música no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.

Com relação à música, a preocupação central de Mário era o conhecimento e o registro da música folclórica brasileira, que ele chamava também de música popular, às vezes de música popular rural. Ele também buscava na música folclórica temas que inspirassem a música erudita. Daí o impressionante registro gráfico que empreendeu em sua viagem ao Nordeste, em fins da década de 1920. Daí também a expedição que promoveu ao Nordeste quando dirigia o Departamento de Cultura do município de São Paulo com o fim de efetuar registros fonográficos da música e de suas manifestações coreográficas, que Mário ainda considerava mais ou menos preservadas de influências da “civilização”.

O disco gravado por meio elétrico representou um marco para Mário. Num artigo, ele lamenta o destino das gravações feitas por Roquete Pinto em Rondônia. Elas ainda não eram elétricas e estavam abandonadas no Museu Nacional do Rio de Janeiro (O fonógrafo: Diário Nacional, 24/2/1928, microfilme IEB/USP). As gravações por meio elétrico começam no Brasil em 1927, não com a mesma qualidade apresentada nos Estados Unidos.

Mário de Andrade faz logo uma primeira observação curiosa e apropriada sobre o disco: “O grande valor do fonógrafo e da sua vasta parentela contemporânea é ser um instrumento com caráter próprio (...) O fonógrafo realiza sonoridades especiais (...) O fonógrafo tem pois uma sonoridade toda especial, que pode produzir timbres diferentíssimos. (...) Portanto, o fonógrafo possuindo técnica própria e que, no caso, é mecânica, e possuindo timbre especial que lhe pertence particularmente, o fonógrafo é um instrumento como qualquer outro, passível portanto de adquirir especialização. Música pra fonógrafo, como existe música para pianola (...) desde Monteverdi pelo menos, os instrumentos principiaram adquirindo uma espécie de psicologia pessoal, psicologia que lhes determina o ambiente pra funcionar e que, por associação de imagens, provoca em nós a revivescência desse ambiente (...) Um piano ao ar livre perde incontestavelmente cinquenta por cento da sua personalidade e da sua função (...) ao ar livre, de noite, a flauta ganha um poder formidável de comoção e possibilidades acústicas (...) Um órgão dentro duma casa de família é berrante e aberrante(...) O fonógrafo é essencialmente um instrumento de lar. A função especial dele é transportar pra dentro de casa toda a representação (não reprodução) da música universal.” (Cinema sincronizado e fonografia, Diário Nacional,  20/1/1930 - IEB/USP).

Assim, o disco pode ser usado como instrumento, sendo ele em si um instrumento. Em 1924, o compositor italiano Ottorino Respighi usou a gravação em disco do canto do rouxinol no terceiro movimento do poema sinfônico “Pinheiros de Roma”. Contudo, Mário de Andrade iria mais longe do ponto de vista teórico: o disco não apenas pode funcionar como novo instrumento. Ele transforma os sons de instrumentos gravados e passa a ser instrumento distinto. Em 1928, o russo  Léon Theremin inventou um instrumento totalmente eletrônico que Mário registrará em sua “Pequena história da Música”. O instrumento recebeu o nome do seu inventor: teremin.

O disco marcou profundamente a visão de Mário de Andrade sobre a música. Ele viu na inovação a perspectiva de registrar a música folclórica brasileira de forma fiel: “Nossa música popular é um tesouro prodigioso, condenado à morte. A fonografia se impõe como remédio de salvação. A registração manuscrita é insuficiente porque dada a rapidez do canto é muito difícil escrevê-lo e as palavras que o acompanham (...) Tanto mais que a dicção e a entoação dos cantadores é extremamente difícil de ser verificada imediatamente com nitidez (...) Usam uma nasalação e um portamento constante tão sutil, ao mesmo tempo que o rubato rítmico de imprevistos tão surpreendentes e livres que o músico fica quase na impossibilidade de traduzir imediatamente na escrita o que está escutando. Por tudo isso o fonógrafo se impõe.” (O fonógrafo: Diário Nacional, 24/2/1928 - microfilme IEB/USP).

Já escrevendo para jornal e crítico de música conhecido e respeitado, era natural que Mário de Andrade merecesse a atenção das gravadoras estrangeiras que se instalaram no Brasil, principalmente a Victor e a Odeon, e recebesse gratuitamente discos para comentar. Ele ficou deslumbrado com as possibilidades do disco. Até então, o crítico lia partituras e assistia a concertos. A partitura não permite acesso a toda a dimensão de uma música orquestral, por exemplo. Os concertos eram públicos e só permitiam a audição de músicas quando ocorriam.  No artigo “Discos e fonógrafos”, publicado no Diário Nacional, de 11 de março de 1928  (IEB/USP), ele comenta: “Nada mais legítimo do que a gente se deliciar escutando, por exemplo, a interessante transcrição para orquestra da ‘Tocata e fuga’ em ré menor de Bach, executada pela Orquestra da Filadélfia, ou as interpretações prodigiosamente interessantes de Cortot, em Liszt ou Chopin. Cortot só faz turnês de concerto na chamada ‘América’. Para o Brasil jamais virá. Só mesmo em discos, e de uma exatidão magnífica, podemos gozá-lo.” E ele ficava maravilhado com discos de 78 rotações em gravações ainda precárias diante das que foram sendo aperfeiçoadas posteriormente. Que diria ele dos CDs?

A importância do disco como instrumento pedagógico foi logo percebido por Mário: “Minha convicção é que as casas de ensino musical deviam possuir um bom aparelho fonográfico e uma Discoteca. Só mesmo com isso um professor de História da Música, de Estética, ou mesmo um professor de instrumento podia dar para os alunos um conhecimento verdadeiramente prático e útil. Quanto à História então, acho que a utilização das vitrolas modernas está se tornando uma precisão imperiosa.” (Discos e fonógrafos, Diário Nacional, 11 de março de 1928, IEB/USP).

Mas ele reclama da subutilização do disco no artigo  “Gravação nacional” (Diário Nacional, 10 de agosto de1930 In: “Taxi e crônicas no Diário Nacional”. São Paulo: Duas Cidades, 1976): “A discação brasileira é quase que exclusivamente do domínio da música popular urbana, quero dizer, a depreciada, banalizada pelos males da cidadania.” Aqui, nota-se o uso do termo popular para indicar tanto música folclórica, que é produzida de forma anônima sem visar a gravação fonográfica, e a música popular urbana, hoje conhecida como música popular brasileira. Esta é produzida tendo por finalidade a gravação. Pode-se até afirmar que ela depende do disco, algo que não ocorria com a música erudita e com a música folclórica.



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