sábado, 4 de junho de 2022

MEU ENCONTRO COM A QUESTÃO AMBIENTAL

Arthur Soffiati

1971- Vim do Rio de Janeiro em 1970 para passar um ano em Campos e acabei ficando. Produzi uma série de poemas-processo sobre a questão ambiental um ano antes da Conferência de Estocolmo. O poema processo usa desenhos e esquemas como forma de expressão no lugar da palavra. Eu já havia lido alguns livros sobre o tema, manifestando sensibilidade em relação à emergente questão ambiental.

1972- Acompanhei os debates travados na Conferência de Estocolmo, que inaugura oficialmente a grande questão do nosso tempo. Não era mais a Guerra Fria, que estava demonstrando cansaço. Não era apenas a questão social. Como escreveu o historiador britânico Arnold Toynbee em “A humanidade e a mãe Terra”, a humanidade sempre dependeu da natureza. Com a economia ocidental e a globalização, ela julgou ter se emancipado da natureza. A tecnosfera avançou perigosamente sobre a biosfera, que agora dava sinais de esgotamento. A biosfera mostrava seus limites. A participação do Brasil, orientada pelo diplomata Araújo Castro, foi sofrível. A delegação brasileira defendeu a poluição como símbolo do desenvolvimento.

1973- Apesar de tudo, o Brasil acabou criando a Secretaria Especial de Meio Ambiente, germe do Ministério do Meio Ambiente, e nomeou o biólogo e advogado Paulo Nogueira Neto como seu titular.

1977- Dois alunos do Liceu de Humanidades de Campos me convidaram a fundar uma organização não governamental de meio ambiente para combater a destruição da natureza em Campos e no norte fluminense, que, na época, englobava o noroeste fluminense. Recusei a princípio por entender que a organização era apenas um modismo. Mas acabei participando da fundação do Centro Norte Fluminense para a Conservação da Natureza (CNFCN), em 13 de dezembro de 1977. Relacionamos os problemas que deveríamos combater: defesa do Parque Estadual do Desengano, combate às queimadas de canavial e poluição do ar; poluição das águas e defesa do patrimônio cultural. Mas fomos colhidos por um movimento popular de pescadores em defesa das lagoas Feia, do Campelo e de Cima, assim como contra as alterações em Barra do Furado. O grande inimigo era o Departamento Nacional de Obras e Saneamento. A luta em defesa das lagoas e rios teve um momento mais intenso entre 1978 e 1981. Surgiu no horizonte, posteriormente, a luta contra herbicidas.

Manifestação no movimento dos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos, às margens da lagoa Feia. O autor está assinalado com um traço vrmelho

Década de 1980: devorei com avidez livros escritos por autores que se reuniam sem vínculos fortes sob a denominação de ecologismo. Eu já havia lido “Limites do crescimento”, do Clube de Roma. Agora, eu entrava em contato com socialistas, anarquistas e progressistas que alertavam para o choque da civilização ocidental e ocidentalizada sobre a natureza. Os principais nomes eram Rudolf Bahro, Murray Bookchin, Michel Bosquet, Jean-Pierre Dupuy, Laura Conti, Nicholas Georgescu-Roegen, René Dubos e René Dumont.

No início da década de 1980, o CNFCN foi convidado a opinar sobre o anteprojeto de lei da Política Nacional de Meio Ambiente. O governo militar estertorava, apesar de ter posturas não condizentes com um regime autoritário, pendendo para o que vai se chamar de desenvolvimento sustentável. Inúmeras entidades foram chamadas a opinar sobre o anteprojeto de lei. Debrucei-me sobre ele e dei minha contribuição em nome do CNFCN. 

Autor na detonação de diques ilegais na lagoa Feia, em 2009

Ainda na década de 1980, como presidente do CNFCN, participei de uma das duas audiências públicas da comissão da ONU presidida pela primeira-ministra da Noruega Gro Harlem Brundtland. Uma audiência ocorreu em Brasília e a outra em São Paulo. Estive na segunda, ocasião em que passei para a comissão minhas propostas por escrito. Eram derivadas de um artigo que eu havia publicado no informativo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) em 1981.Creio que o artigo de 1981 foi a primeira manifestação de história ambiental no Brasil.

Até o princípio da década de 1990, fui membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e apresentei proposta para o capítulo de meio ambiente da Constituição Brasileira de 1988. A proposta foi publicada em opúsculo. Ainda formulei propostas para a Constituição do Estado do Rio de Janeiro e para as Leis Orgânicas de Campos e São João da Barra.

Década de 1990. Deixei a presidência do CNFCN em 1991, depois de 12 anos à frente da ONG por falta de quem desejasse assumi-la. A Federação das Associações Fluminenses de Meio Ambiente (FAMA) começava a se dispersar. O CNFCN fez parte dela. Pude conhecer nomes que muito me marcaram, como José Lutzenberger, Marcello de Ipanema, Elmo da Silva Amador, Breno Marcondes, Ruth Christie. Ingressei no mestrado em História Social da UFRJ e enfrentei dificuldades ao me propor a estudar as relações da sociedade com terras, águas, florestas, fauna nativa e espécies introduzidas no norte-noroeste fluminense. História Ambiental ainda era uma novidade. Participei ativamente da Conferência Rio-92, na Cúpula dos Povos. 

Encontro com o economista ecologista Ignacy Sachs na Conferência Rio 92

Mesmo muito atarefado, aceitei o convite para integrar o Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Nos muitos encontros pelo Brasil, tive oportunidade de conhecer outras pessoas, como o Almirante Ibsen de Gusmão Câmara. Já no Doutorado, participei da criação do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba e do movimento embrionário para a criação do Comitê de Bacia do Baixo Paraíba do Sul.   

Década de 2000: terminados mestrado e doutorado em história ambiental durante dez anos ininterruptos, estendi meus interesses para a Região dos Lagos. Eu estudara no doutorado as relações das sociedades com o manguezais entre os rios Itapemirim e São João. Esse interesse me levou, ainda na década de 1990, a me aproximar e participar da Associação Brasileira para Educação Ambiental em Áreas de Manguezal (Edumangue). Foram muitos encontros em todo o Brasil. Eles me permitiram conhecer ainda mais pesquisadores em questões ambientais, notadamente em manguezais. Na primeira década do século XXI, eu continuava muito ativo em conhecimento teórico e ativismo. Ao mesmo tempo, escrevia artigos jornalísticos e acadêmicos, igualmente publicando livros. 

No Mangue de Pedra, em Búzios

Década de 2011. Após minha aposentadoria, em 2011, a atividade intelectual aumentou. Sofri um AVC, mas me recuperei e intensifiquei ainda mais minhas pesquisas e produção literária. Houve três momentos distintos no meu ativismo. No primeiro, meu entusiasmo era grande. Eu acreditava que a mudança em direção a um contexto social que mantivesse equilíbrio com a natureza seria rápido. Mas fui percebendo que as poucas conquistas em direção a um novo mundo eram pequenas e frágeis. Além do mais, as derrotas pareciam definitivas. No segundo momento, mergulhei em profundo desencanto. Passei a achar que meus escritos e minhas ações tinham sido inúteis. Foi um momento depressivo. Tive vontade de abandonar tudo. O ecologismo era uma utopia inviável, concluí.Mas no terceiro momento, lembrei-me de que sou historiador. As estruturas e as conjunturas não são maleáveis. Não mudam com facilidade. Otimismo e pessimismo enquanto estado de espírito não produzem transformações no mundo. Otimismo e pessimismo devem decorrer de análises da realidade. Entendo, atualmente, que as forças de mudança estão aquém das necessidades para se alcançar um mundo em que humanidade e natureza se equilibrem, enquanto que as forças de destruição pouco desaceleraram. O nível de consciência aumentou, principalmente entre as novas gerações. No plano empresarial e governamental, o discurso ambiental foi incorporado em grande parte, mas, também em grande parte, ele não é verdadeiro. O futuro ainda é uma incógnita. 

Com Edgar Morin em Búzios - 2014

Década de 2021. Estou vivo e atento no ano de 2022. Muitos companheiros meus morreram ou se desinteressaram da questão ambiental. Continuo morando em Campos e acompanhando o que acontece no mundo. Acompanho as ações dos governos municipais e de empresários da região norte-noroeste fluminense e noto uma grande defasagem em seus pronunciamentos e ações em relação à nova e grande questão: a ambiental. Parece mesmo muito difícil sair minimamente das questões da humanidade no seu sentido estrito. Noto o mesmo nos meios de comunicação. Pouco se avançou em relação às exigências do novo tempo. Basta acompanhar uma das manifestações da crise ambiental: os fenômenos climáticos extremos. A imprensa quase que se limita a noticiar o que chama de fatos. Há pouca análise das causar mais profundas deles.

Por outro lado, o número de estudiosos da crise ambiental aumentou significativamente. São poucos aqueles dentro da academia indiferentes a ela ou aqueles que a negam. Os negacionistas assumem essa atitude mais por razões religiosas e políticas. As igrejas, sobretudo as evangélicas, continuam considerando a Bíblia como o livro que contém todas as “verdades”. O governo de Jair Bolsonaro não apenas é insensível às questões ambientais, como não se envergonha de acentuá-las. Existem outros governos no mundo com a mesma orientação do atual governo do Brasil. Eles vivem como em tempos passados, em que se acreditava que destruição da natureza é sinônimo de progresso.

Parece que minha solidão aumentou com o envelhecimento. Aos 75 anos, continuo inquieto intelectualmente. Não me alinho com os novos pensadores da academia que estão buscando conceitos mais que entendimento da questão ambiental. Considero-os confusos, vaidosos, oportunistas, buscando mais se sobressair junto a seus pares do que compreender e explicar o mundo. Também vejo que os trabalhos acadêmicos sobre questões ambientais são fragmentários. Parecem visar mais o currículo dos seus autores. Da minha parte, busco compreender e explicar, segundo o ensinamento de Lucien Febvre, reconhecendo sempre meus limites. Sempre consciente de que é extremamente difícil compreender o mundo que criamos. Mas continuo a escrever artigos e livros.

Da Conferência de Estocolmo aos dias de hoje, passaram-se 70 anos. Eu tinha 25, quando ela foi promovida. De longe, acompanhei muitas outras que se seguiram a ela e à Conferência Rio-92.  

quarta-feira, 1 de junho de 2022

BREVE HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO OCIDENTAL

 AMBIENTES. Volume 2, Número 1, 2020, pp. 144-173. ISSN: 2674-6816

 

Breve história da globalização ocidental

Brief history of western globalization

 

Resumo: Neste artigo, pretendemos efetuar uma reflexão sobre o processo de globalização da atualidade. Reconhecemos globalizações promovidas por estilos de vida que se alastraram pelo mundo sem dominação política, econômica e cultural, como o das sociedades paleolíticas e neolíticas, que se diversificavam à medida em que se disseminavam pelo mundo. Várias civilizações também se globalizaram parcialmente. A maior e mais duradoura de todas antes do mundo ocidental foi a da civilização helênica, expressa no Império Romano. Todas elas causaram impactos sociais, culturais e ambientais. Nenhuma, porém, tem sido tão prolongada em tão impactante como a globalização da civilização ocidental, tanto no espaço como no tempo. Como nenhuma, seus impactos socioambientais têm sido causados pelo sistema econômico capitalista. No presente artigo, procuramos examinar as transformações do ambiente natural em todo o planeta sob a pressão do modo de produção capitalista, assim como a constituição de uma nova ciência, que só pode ser tratada, pela complexidade de seu objeto, de forma transdisciplinar; no mínimo de forma multidisciplinar.

Palavras-chave: Ocidente, capitalismo, globalização, ambiente natural

Abstract: In this article, we intend to reflect on the current globalization process. We recognize globalizations promoted by lifestyles that spread throughout the world without political, economic and cultural domination, such as that of Paleolithic and Neolithic societies, which diversified as they spread throughout the world. Several civilizations have also partially globalized. The largest and most enduring of all before the Western world was that of the Hellenic civilization, expressed in the Roman Empire. All of them had social, cultural and environmental impacts. None, however, has been as prolonged as impactful as the globalization of Western civilization, both in space and in time. Like none, its socio-environmental impacts have been caused by the capitalist economic system. In this article, we seek to examine the transformations of the natural environment across the planet under the pressure of the capitalist mode of production, as well as the constitution of a new science, which can only be treated, by the complexity of its object, in a transdisciplinary way; at least in a multidisciplinary way.

Keywords: West, capitalism, globalization, natural environment

 

Resumen: En este artículo, tenemos la intención de reflexionar sobre el proceso de globalización actual. Reconocemos las globalizaciones promovidas por los estilos de vida que se extienden por todo el mundo sin dominación política, económica y cultural, como la de las sociedades paleolíticas y neolíticas, que se diversificaron a medida que se extendieron por todo el mundo. Varias civilizaciones también se han globalizado parcialmente. La más grande y duradera de todas antes del mundo occidental fue la de la civilización helénica, expresada en el Imperio Romano. Todos ellos tuvieron impactos sociales, culturales y ambientales. Sin embargo, ninguno ha sido tan prolongado e impactante como la globalización de la civilización occidental, tanto en el espacio como en el tiempo. Como ninguno, sus impactos socioambientales han sido causados ​​por el sistema económico capitalista. En este artículo, buscamos examinar las transformaciones del entorno natural en todo el planeta bajo la presión del modo de producción capitalista, así como la constitución de una nueva ciencia, que solo puede ser tratada, por la complejidad de su objeto, de manera transdisciplinaria; al menos de forma multidisciplinaria.

Palabras clave: Occidente, capitalismo, globalización, ambiente natural

 

Introdução

Sempre e nunca são duas palavras que o historiador deve evitar ou usar com extremo cuidado. É muito comum falar-se ou escrever-se que o homem sempre foi individualista e egoísta. Não é raro falar ou escrever que nunca houve uma sociedade humana que não agredisse a natureza como a ocidental na atualidade. Sempre e nunca anulam a história e as diferenças culturais. Sempre e nunca podem fazer tábula rasa dos diversos contextos. Pode-se dizer que os hominídeos desenvolveram um cérebro hipercomplexo do qual emergiu a consciência, que, por sua vez, gerou a sensação de solidão e de incompletude. Tal sensação leva à crença no sobrenatural, mas as crenças diferem de sociedade para sociedade.

O presente texto pretende, em poucas páginas para assunto tão complexo, mostrar que já se pode falar em processos de globalização promovidos pela própria natureza, como o envolvimento do planeta pelo oxigênio, e pelas sociedades hominídeas, como o desenvolvimento independente de economias paleolíticas e neolíticas. Pode-se reconhecer processos de globalização em diversas civilizações, mas cada um tem sua especificidade, por mais que apresentem similaridades. Pode-se reconhecer também crises ambientais decorrentes das relações de tais civilizações com a natureza.

A civilização ocidental cristã, cujo berço é a Europa ocidental, expandiu-se num processo de globalização semelhante ao mongol ou ao islâmico. É único, todavia, por ter sido impulsionado pelo modo de produção capitalista e por ter envolvido o mundo todo em extensão e profundidade. Eis por que as palavras sempre e nunca devem ser evitadas ou empregadas com muita cautela.

No empenho de mostrar as similaridades e as diferenças, examinamos, em linhas gerais, o processo de globalização promovido pela Europa ocidental inserido na história da humanidade. Aproveitamos também para discutir certas concepções que parecem assentadas entre historiadores por comodidade.    

 

2- As formas de organização socioeconômicas da humanidade em perspectiva temporal

Paleolítico

Antes mesmo que, entre a família dos hominídeos, o Homo sapiens se constituísse enquanto espécie, espécies anteriores a ele e na sua linha de desenvolvimento já viviam em grupos e fabricavam instrumentos. Não se trata especificamente de se apropriar de objetos existentes na natureza para usá-los como ferramentas. Já foi demonstrado que grandes macacos, como orangotangos, gorilas, chimpanzés e bonobos sabem se utilizas de pedras e de paus como instrumentos. Até mesmo o macaco-prego recorre a objetos encontrados, sem os trabalhar, como ferramentas.

Com o Homo erectus, em torno de 800 mil anos antes do presente, o fogo passou a ser produzido. Não mais apenas recolhido na natureza. Esse domínio implicou numa verdadeira revolução, pois permitiu conquistar lugares escuros, como cavernas, aumentar o tempo de trabalho iluminando a noite e cozer alimentos.

Por mais de um milhão de anos, os hominídeos, representados pelo gênero Homo viveram em grupos nômades, coletando, pescando e caçando. Eles viviam em grupos nômades que já praticavam o sepultamento e dominavam técnicas de produzir o fogo. Entre 40 e 35 mil anos passados, ainda na última glaciação, tais grupos passaram a praticar a arte. Não se tratava de arte como nós a conhecemos. Os desenhos, pinturas e esculturas então produzidos tinham caráter religioso e utilitário e não apenas estético.  

O Homo sapiens não foi o primeiro a sair da África, onde se constituiu como espécie. Outras espécies do seu gênero o antecederam e chegaram a alcançar a Austrália. É certo que eram negros. Assim, os asiáticos e os brancos descendem de negros, um forte argumento contra o racismo.

Como tais grupos eram nômades por necessidade de encontrar alimentos, as doenças contagiosas e degenerativas eram mais raras. A mobilidade permanente em busca de alimentos e as curtas temporadas em certos sítios exigiam exercícios físicos e não permitiam o acúmulo de resíduos que hoje chamaríamos de lixo.

Essa longa fase é denominada de paleolítico pelos especialistas. Ainda nela, grupos humanos alcançaram a América, podendo-se falar na primeira globalização humana. Embora todos os grupos paleolíticos produzissem cultura adequada a uma vida nômade, a globalização da humanidade não implicou numa cultura padrão imposta a outros grupos. Cada sociedade, a partir de um fundo comum, desenvolvia culturas apropriadas a cada ambiente.  

 

Neolítico

Há cerca de 12 mil anos antes do presente, ocorreu uma mudança ambiental planetária não inédita na história da Terra: as temperaturas globais se elevaram naturalmente, provocando o derretimento de geleiras e a elevação do nível dos oceanos. As áreas continentais foram reduzidas. As novas condições climáticas representaram um desafio para a flora, a fauna e as sociedades humanas adaptadas ao clima frio do período anterior. A primeira resposta a esse desafio foi a extinção. Várias espécies de plantas e animais se extinguiram. A segunda resposta foi o deslocamento de plantas, animais e sociedades para o norte, acompanhando o frio, que se reduzia aos círculos polares. A terceira resposta foi a mais criativa: adaptar-se às novas condições climáticas inventando a agricultura e o pastoreio. Ou seja, a domesticação de plantas e animais.

É de se perguntar por que os grupos humanos não deram tais respostas em tempos anteriores de aquecimento. Primeiramente, tanto o Homo sapiens como espécies anteriores do gênero Homo não haviam desenvolvido o cérebro hipercomplexo daqueles atingidos pelo aquecimento de 12 mil anos passados. Segundo, suas culturas ainda não haviam alcançado o nível que alcançaram há 12 mil anos. Mesmo assim, vale lembrar que apenas um grupo restrito de sociedades respondeu ao desafio do aquecimento com a domesticação de plantas e animais e com a sedentarização.

O processo ocorreu isoladamente em todos os continentes. Constituiu-se, assim, o Neolítico, cujas caraterísticas principais, além da agricultura e do pastoreio, foram o desenvolvimento de técnicas para o polimento da pedra, a tecelagem, a cestaria, a cerâmica, a metalurgia e a invenção da roda. Marcel Mazoyer e Laurence Roudart empreenderam uma ampla investigação sobre a história da agricultura (MAZOYER e ROUDART, 2010). Há cientistas que afirmam não se poder falar em Neolítico na América porque a cerâmica não está necessariamente associada à agricultura (NEVES, 2016). Cabe observar que não se pode tomar as sociedades neolíticas da Ásia e da Europa como modelo para a América e a Oceania. Na América, por exemplo, houve casos de paleolítico sem nomadismo pelo excesso de recursos naturais em torno da sociedade, como na ilha maior do arquipélago de Santana, em Macaé (LIMA e SILVA, 1984). Houve também sociedades que já dominavam as técnicas de produção de cerâmica e de polimento de pedra ao lado de uma atividade agrícola insignificante, também pelo excesso de recursos naturais em seu meio (DIAS e NETO, 2014).

O sedentarismo acentuou a divisão sexual e técnica do trabalho, já existente no paleolítico. Criou também a divisão social do trabalho, pois uma sociedade sedentária se torna alvo de sociedades nômades. A necessidade organizar a produção e a defesa estimula o desenvolvimento de lideranças e de grupos militares.

Em grande parte das sociedades neolíticas, a arte se torna sintética, abandonando as representações analíticas da natureza. As doenças contagiosas e degenerativas aumentam em função do sedentarismo, que acumula resíduos junto aos núcleos humanos e reduz as atividades físicas.

 

Civilizações

O delta dos rios Tigre e Eufrates, que formam a Mesopotâmia, é, à primeira vista, hostil à instalação de uma sociedade humana sofisticada, por se tratar de uma área pantanosa. Já o rio Nilo, em grande parte do seu curso, corta um deserto também hostil por estar em posição contrária à da Mesopotâmia. No entanto, ambos os ambientes funcionaram como desafio ao desenvolvimento das duas primeiras civilizações. Na Mesopotâmia, se o pântano fosse domesticado com obras de drenagem, um solo fertilíssimo estaria à disposição da agricultura e do pastoreio. No Egito, se do Nilo partissem canais de irrigação para o deserto, o húmus transportado por ele se espalharia e fertilizaria as areias escaldantes.

Nasceram, assim, as duas primeiras civilizações. Entendamos que uma civilização resulta de uma sociedade neolítica em que, ao lado da divisão sexual e técnica do trabalho, acrescentam-se a divisão territorial e social do trabalho. Nas civilizações, começa a se delinear a distinção entre campo, onde se realiza a produção agrícola e pastoril, e cidade, onde se situam a nobreza e o clero dirigentes, os militares, os artesãos e os comerciantes.

Com o comércio, desenvolve-se o capitalismo como o entende Celso Furtado (FURTADO, 1974). Notadamente, os comerciantes acumulam capital com a compra e venda de excedentes da produção rural e urbana, mas não fundam o modo de produção capitalista. A acumulação de capital está limitada pela geração de excedentes. O acúmulo de capital não interfere na produção de modo a determinar que a produção de bens de uso se transforme em bens de troca. Ela se limita à esfera da circulação de bens.

As primeiras civilizações nasceram de forma independente. Logo em seguida, relações culturais ocorreram entre Mesopotâmia e Egito. Nos vales dos rios Indo e Amarelo, desenvolveram-se independentemente as civilizações Índica e Chinesa. Também de forma independente, desenvolveram-se as civilizações Andina e Mexicana, esta envolvendo dois ramos: a Maia e a Mexicana propriamente dita. Toda civilização tem um núcleo duro, onde suas características culturais são bem definidas, e as regiões periféricas, onde os contatos culturais são mais difundidos.

As grandes civilizações formaram impérios englobando distintas culturas. Pode-se considerar esse tipo de expansão como globalizações parciais. Acrescente-se, nesse sentido, que as influências culturais de uma civilização sobre outra(s) podem ser diretas e indiretas. Tomemos o caso da civilização helênica na sua fase grega. Alexandre formou um grande império. Dentro dele, ocorreram diversas trocas culturais, mais da cultura grega para outras culturas, de forma impositiva, como trocas externas, sem imposição. O budismo mahaiana recebeu influências helênicas, mas não o domínio militar do império de Alexandre das áreas em que se desenvolveu (China, península coreana, Japão e Sudeste Asiático).

A dominação helênica alcançou seu ápice com o Império Romano. Todo Oriente Médio, o Egito e a Europa ocidental (inclusive a Europa nórdica) sofreram influência do mundo helênico de forma impositiva e de forma espontânea. O cristianismo e o islamismo são expressões do encontro das civilizações siríaca (Oriente Médio) e helênica (Europa). O cristianismo apresenta a marca mais forte da civilização helênica. Por exemplo, a crença num deus uno e trino ao mesmo tempo e o culto aos santos, com a permissão de representações pictóricas e escultóricas, enquanto o islamismo foi mais profundamente marcado pela civilização siríaca, com a crença num deus uno e absoluto, assim como a proibição de representações figurativas na pintura e na escultura.

O aumento de complexidade de culturas que atingiram o grau de civilização trouxe melhores condições vida para os dirigentes, mas criou condições sociais profundamente desiguais, na medida em que o excedente passa a ser apropriado pelos que não o produzem. A situação dos camponeses era ingente. As cidades, embora diminutas quando comparadas às cidades atuais, tornaram-se focos de propagação de doenças contagiosas pela densidade populacional e pela proliferação de vetores, como ratos, por exemplo. Por outro lado, o organismo humano desenvolveu defesas naturais contra os micro-organismos patogênicos. Mesmo assim, a mortalidade alcançava altos índices. A expectativa de vida era também bastante baixa.

Com o olhar voltado para as relações sociedade-natureza, vários estudiosos têm registrado indicadores de crises ambientais provocados por civilizações pré-ocidentais ou não ocidentais.

Na famosa Epopeia de Gilgámesh (SIN-LÉQUI-UNNÍNINI, 2017), primeira obra literária da humanidade a ganhar projeção mundial na atualidade, o rei Gilgámesh, de Uruk, mata Humbaba, o guardião de uma grande floresta, e a derruba sob os protestos dos deuses da velha ordem. Por mais que se trate de uma obra de ficção, a epopeia parece referir-se a ações típicas de uma sociedade cujo crescimento depende da dominação e da destruição dos obstáculos impostos pela natureza.

O sinólogo Jacques Gernet acredita que o confucionismo e o taoísmo são, em boa medida, respostas filosófico-religiosas às agressões perpetradas pela aristocracia das duas primeiras dinastias chinesas contra florestas e animais (GERNET, 1991). A civilização do sudeste asiático, batizada de khmeriana e formada independentemente com elementos da civilização chinesa e da civilização indiana, desenvolveu uma rizicultura em grande escala dependente de vastos lagos que deveriam ser meticulosamente regulados para atender aos fins da agricultura. Pequenos problemas cumulativos geraram um grande: a salinização do solo (DORST, 1981).

Estudos relativamente recentes revelam que o manejo incorreto dos solos constituiu-se num dos fatores responsáveis pelo declínio da civilização índica, que floresceu no vale do rio Indo entre 2.500 e 1.500 a.C. e produziu centros urbanos suntuosos, como Mohenjo Daro e Harappa (WHEELER, s/d).

Em Crítias, um dos Diálogos de Platão, lê-se:

Quanto à excelência do solo, nossa terra superava todas, sendo, por isso, capaz de sustentar um grande exército que não precisasse preocupar-se com os trabalhos do campo. A melhor prova de sua fecundidade é que a porção remanescente pode competir com qualquer outra região do mundo, no que entende com a variedade e excelência de seus frutos e a riqueza de pastagens para animais de toda espécie. Mas, além da superioridade dos frutos, a terra, então, se distinguia por produzi-los em abundância. De que modo fundamentar semelhante assertiva, e que faixa de nossa terra pode ser tida como resto do solo primitivo? Toda esta porção de terra avança do continente para o mar à maneira de um promontório, acontecendo que a bacia marítima que o circunda é de grande profundidade. Muitas e grandes inundações se fizeram sentir no espaço de nove mil anos – pois tantos foram os anos decorridos entre aquele tempo e o nosso – sem que durante todo esse período e com tamanhas revulsões da natureza se depositasse a terra deslocada das alturas, como sói acontecer noutros lugares; arrastada pelas águas das imediações, desaparece no mar fundo. Em comparação com as pequenas ilhas, o que resta do passado é como os ossos de um corpo devastado por doenças: a terra pingue e mole desapareceu, só ficando a carcaça do terreno. Naquele tempo, antes de haver sido devastada a região, as montanhas consistiam em elevações de terra, e as planícies pedregosas conhecidas atualmente pelo nome de Faleu eram cobertas de humo, estando as montanhas ornadas de matas, das quais ainda restam vestígios eloquentes. Algumas dessas montanhas, que hoje só conseguem alimentar abelhas, até bem pouco tempo ostentavam árvores que forneciam madeira para cobrir grandes edifícios e cujas vigas ainda podem ser vistas. Abundavam também as árvores frutíferas, fornecendo a terra pastagem infinita para o gado. O solo absorvia as chuvas anuais de Zeus, não acontecendo como agora, em que a água passa da terra nua para o mar; como a terra era espessa, recebia a água em seu seio e a conservava na camada de argila impermeável, soltando por suas concavidades a água recebida das alturas, com o que alimentava por toda a parte um vasto sistema de irrigação, com seus rios e fontes. A prova da veracidade do que afirmo são os santuários que até hoje subsistem em locais outrora assinalados por aquelas fontes. (PLATÃO, 1986)

Platão trata de fenômenos ocorridos na península Ática, um dos centros de origem da civilização helênica. Esses fenômenos decorrem da ação humana coletiva na derrubada de florestas nas encostas e de sua resultante: um caso clássico de erosão e assoreamento.

Que baste ainda o exemplo amplamente discutido da civilização maia, que teve seu centro na península de Iucatã. Sobre sua crise final, concluiu-se que

A população aumentou com o passar do tempo, a ponto de atingir, segundo parece, três milhões de pessoas. Por conseguinte, tornou-se necessário estender as superfícies cultivadas, passando-se das planícies férteis, enriquecidas por aluviões, às encostas. O arroteamento das florestas protetoras dispostas em degraus sobre as colinas desencadeou uma erosão acelerada e atulhou progressivamente os sistemas fluviais e lacustres. Os solos perderam a fertilidade segundo um processo clássico: a rocha nua estava exposta sobre os relevos, enquanto nas planícies os solos se achavam cobertos por camadas improdutivas. Pouco a pouco, as terras tornaram-se incapazes de prover ao sustento da população. Em seu estado atual, o Petén já não pode fornecer os recursos necessários a uma população de densidade igual à do período de fastígio Maia (DORST, 1981).

A discussão sobre o fim da civilização maia prossegue. Não podemos descartar as guerras entre as cidades-Estado e os conflitos sociais. Mas não podemos também ignorar a exploração da natureza. Especula-se atualmente que a debacle dos maias decorreria de mudanças climáticas globais naturais (FAGAN, 2009).

Incluindo a civilização ocidental, cuja trajetória é sintetizada a seguir, a conclusão a que se pode chegar é a de que ocorreram crises planetárias não-antrópicas na história da Terra e crises antrópicas não-planetárias na história da humanidade; entretanto, é a primeira vez, nos 4.500.000 de anos de existência do planeta, que se constitui uma crise ambiental oriunda das atividades exercidas por uma só espécie -no caso, a nossa- que assume um caráter global. As crises ambientais antrópicas anteriores ao ocidente foram locais e geralmente reversíveis. A crise atual é global, como é a própria economia capitalista, e, em certos aspectos, irreversível, como no caso da extinção de espécies.

 

2- A civilização ocidental 

Cristalizou-se, no núcleo do mundo ocidental (Europa ocidental) e na sua primeira ramificação (América), uma periodização da história bastante etnocêntrica que continua vigorando ainda hoje nos livros didáticos, no ensino escolar e mesmo nos cursos de história. Ela divide o tempo em quatro fatias: Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Na Antiguidade, joga-se uma grande diversidade cultural que abrange o paleolítico, o neolítico, as civilizações delimitadas a ocidente do rio Indo (como a civilização índica, mesopotâmica, egípcia, persa, siríaca, cretense e helênica. Suas ramificações também são jogadas nesse saco. É assim que procede Mario Liverani, para só citar exemplo recente de uma reedição antiga, mas que, atualizada nos detalhes, continua a valer no geral (LIVERANI, 2016). O que é separado, acaba reunido num só recipiente intitulado Oriente antigo ou Antiguidade. E esse recipiente é fragmentado em fatias, tornando irreconhecíveis as unidades, as continuidades e as descontinuidades.

Grécia e Roma são separadas como duas civilizações distintas, embora conectadas. A civilização grega teve no império de Alexandre sua fase de globalização, enquanto Roma construiu o mais duradouro império da antiguidade. Não se percebe, como Toynbee, que Grécia e Roma formaram uma só civilização com duas fases de globalização parcial (TOYNBEE, 1969). O mundo chinês, com suas ramificações coreana, japonesa e vietnamita, assim como os mundos hinduísta, maia, asteca e inca são excluídos desse saco de gatos até que a globalização ocidental os capture a partir do século XV.

Grécia e Roma são reunidos no que seria a primeira fase da história ocidental com o nome de História Antiga, em si denominação equivocada, pois a história seria da antiguidade, e não uma história antiga. Embora, Grécia e Roma tenham a Europa como sua base territorial primeira, a civilização que eles constituem não pode ser tomada como primeira fase do ocidente, na medida em que seus valores eram distintos dos valores cristãos. Por mais que o ocidente tenha herdado a filosofia, a literatura e a arte helênicas, vale observar que a civilização oriental cristã e a civilização islâmica também são herdeiras do helenismo.

Assim, a primeira fase da civilização ocidental é a chamada Idade Média, que deveria ser entendida como fase de formação do ocidente, e não como o triunfo do cristianismo sobre as civilizações anteriores, todas elas jogadas num saco com a designação de Antiguidade. Essa distinção perdura nos meios acadêmicos mais questionadores e críticos do Ocidente. Além de se tratar de postura etnocêntrica, é também uma concepção teleológica: a história começa com culturas diversas que são suplantadas pela cultura ocidental, que, por sua vez, promoverá a unificação do mundo. Basta consultar os grandes medievalistas, como Marc Bloch (BLOCH , 1982) e Jacques Le Goff (LE GOFF, 2015) para constatar o zelo em considerar a chamada Idade Média como a superação da Antiguidade, por mais críticos que eles sejam em termos de história e historiografia.

A periodização adotada neste artigo separa o que está junto, por exemplo, as civilizações da Ásia ocidental, e junta o que está separado, como é o caso da história fatiada do ocidente. A primeira fase da civilização ocidental, entendida como fase de formação, é a Idade Média, sem usar essa denominação considerada pejorativa no Renascimento. Ela se estende do século VI d.C. ao século XIV. No século XV, começa a segunda fase, que se estende ao final do século XVIII, com a revolução industrial. A terceira fase abrange os séculos XIX e XX, até a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A quarta, já denominada de “Grande aceleração”, alcança os dias atuais.

No século XI depois de Cristo, existiam os seguintes polos de civilização no mundo: 1- China (que se irradiava para a Coreia, Japão e Sudeste Asiático), 2- Islâmica (que se estendia da Indonésia à Europa oriental e à Península Ibérica, passando pelo norte da África), 3- Hinduísta (no subcontinente indiano), 4- Oriental Cristã (na Rússia), 5- Ocidental Cristã (na Europa ocidental), 6- Andina (na América do Sul) e 7- Mexicana (na meseta mexicana).

Em todas, existia o processo de acumulação de capitais pela atividade comercial, que se apropriava do excedente de bens de uso para transformá-los em bens de troca. Tal acumulação, porém, estava limitada. Se Celso Furtado poderia identificar um capitalismo incipiente em todas elas, não seria possível identificar um modo de produção capitalista em nenhuma delas. A diferença entre capitalismo e modo de produção capitalista, ainda segundo Celso Furtado, é que, no capitalismo, os excedentes gerados por modos de produção não capitalistas são apropriados pelo comércio, permitindo uma atividade capitalista de superfície que só se apropria do excedente dos modos de produção sobre os quais opera. A acumulação de capitais no mundo islâmico pelo comércio era descomunal, mas não se identifica nele um modo de produção voltado para a produção de bens de troca.

De todas as civilizações existentes no século XI d. C, a que apresentava mais aptidão para uma expansão global era a islâmica. A que ostentava a maior economia do mundo era a chinesa. Supõe-se que 80% do PIB mundial (indicador que ainda não existia) estava na economia chinesa. A maior cidade do mundo era a do México. Nenhuma em todo o mundo se lhe equiparava como entreposto entre ocidente e oriente.

No entanto, o mais extenso e intenso processo de globalização foi promovido pela pequena e pobre civilização ocidental cristã. Nela, existia uma atividade comercial que acumulava capital. Essa atividade se apropriava dos excedentes do modo de produção feudal, mas encontrava nele limitações. O comércio ocidental tentou se expandir em direção ao oriente médio sob pretexto de conquistar o sepulcro de Jesus, que estava sob domínio muçulmano. O pequeno império comercial veneziano era o mais interessado em se apoderar do monopólio comercial islâmico para associar a ele seu próprio monopólio na Europa.

Para tanto, Veneza incentivou e manipulou o espírito religioso cristão nas oito cruzadas. A massa de europeus cristãos foi muito densa nas cruzadas, mas a população islâmica no Oriente Médio era ainda maior. As armas de fogo ainda não haviam ainda sido inventadas e as doenças contagiosas para as quais os europeus haviam desenvolvido imunidades não faziam efeito sobre a população muçulmana, também imune a tais enfermidades por conviverem com elas havia muito tempo. O Oriente Médio não era um campo virgem de doenças, como a América e a Oceania. As cruzadas fracassaram. Os muçulmanos não arredaram pé de suas posições.

Antes das cruzadas, um ramo da civilização ocidental cristã, em forma impura por conter fortes traços culturais dos escandinavos, expandiu-se no limiar do círculo polar ártico e atingiu a América. Os escandinavos chegaram a instalar colônias na Groenlândia (que foi definitivamente incorporada a seus domínios) e na costa da América do Norte. Essa dominação se estendeu do século X ao XV, mas não se sustentou. Seu objetivo era mais a conquista de terras do que o de mercados potenciais. Ele se distingue da conquista iniciada por Cristóvão Colombo, em 1492, ano em que a experiência escandinava-cristã chegava ao fim.

 

Modo de produção capitalista e início da globalização ocidental

Podemos situar no século XI o início da constituição do modo de produção capitalista na civilização ocidental cristã. Cercada por muçulmanos a sul e a sudeste, pelos cristãos orientais a leste (Rússia), pelo gelo polar a norte e pelo oceano Atlântico a oeste, os Europeus cresceram para dentro, construindo um modo de produção ímpar no interior do modo de produção feudal. Foram as barreiras naturais e humanas que estimularam a criação do modo de produção capitalista. A esse respeito, Karl Marx escreveu uma passagem que os marxistas culturalistas querem ignorar:

Admitida a produção capitalista, não se alterando as demais condições e dada a duração da jornada de trabalho, a magnitude do trabalho excedente variará com as condições naturais do trabalho, especialmente com a fertilidade do solo. Mas, não segue daí que o solo mais fértil seja o mais adequado para o desenvolvimento do modo de produção capitalista. Esse modo pressupõe o domínio do homem sobre a natureza. Uma natureza excessivamente pródiga ‘mantem o homem preso a ela como uma criança sustentada por andadeiras’. Ela não lhe impõe a necessidade de desenvolver-se. A pátria do capital não é o clima tropical com sua vegetação exuberante, mas a zona temperada. Não é a fertilidade absoluta do solo, mas sua diferenciação e a variedade de seus produtos naturais que constituem a base física da divisão social do trabalho e que incitam o homem, com a diversidade das condições naturais em que vive, a multiplicar suas necessidades, aptidões, instrumentos e métodos de trabalho. A necessidade de controlar socialmente uma força natural, de utilizá-la, de apropria-se dela ou domá-la por meio de obras em grande escala feitas pelo homem, desempenha o papel mais decisivo na história da indústria.

Citando Thomas Munn em nota de rodapé, ele explicita o que deseja defender:

Não poderia imaginar maior desgraça para um povo do que habitar uma região em que a produção dos meios de subsistência e de alimentação seja em grande parte espontânea e onde o clima exija ou admita poucos cuidados com relação a vestuário e teto... O mesmo inconveniente pode decorrer do extremo oposto. Um solo que apesar do trabalho nada produz, é tão ruim como um solo que sem trabalho produza abundantemente (MARX, s/d).

Perry Anderson, também marxista, endossa as palavras de Marx:

 

A população continuava a aumentar enquanto era cada vez menor a rentabilidade nas terras marginais ainda suscetíveis de conversão em função do nível técnico existente, e os solos deterioravam-se devido aos erros de exploração e o caráter febril dessas atividades. As terras arroteadas há mais tempo, por outro lado, achavam-se envelhecidas e esgotadas pela própria antiguidade do seu cultivo. O desbravamento de florestas e terras incultas não fora acompanhado por um correspondente trabalho de conservação nos casos mais favoráveis, os fertilizantes quase não eram aplicados e por isso o solo da superfície empobrecia rapidamente; as inundações e as tempestades de poeiras tornaram-se mais frequentes. Tal como na agricultura, também na extração mineira se atingiu uma barreira técnica em que a exploração se tornara inviável ou fisicamente perigosa. Neste panorama de equilíbrio ecológico cada vez mais instável, a expansão demográfica poderia converter-se em sobrepopulação aos primeiros golpes de uma má colheita (ANDERSON, s/d).

 

O modo de produção capitalista consiste não na produção de bens de uso, mas na produção de bens de troca.  Certo que um bem de troca, como alimento e tecido, é basicamente bem de uso. A diferença entre outros modos de produção é transformar o bem de uso, essencial ao ser humano, em bem de troca, que visa, primordialmente, à acumulação de capital.

No século XV da era cristã, restava ao ocidente romper as limitações da economia capitalista crescente pelo oceano Atlântico. Além de visar o lucro com bens de uso, a economia capitalista necessita de matérias primas, mão de obra barata, mercados e expansão contínua. Assim, a saída pelo oceano Atlântico não foi motivada pelo espírito de aventura nem pelo desejo de converter outros povos ao cristianismo, embora ela tenha propiciado o desenvolvimento de aventureiros (em todos os sentidos) e a cristianização tenha sido utilizada como forma cultural que facilitasse o contato e o domínio com e de povos não cristãos.

Na Europa ocidental do século XV, o país que já havia resolvido seus problemas internos (lutas entre senhores feudais e relativa centralização política em torno de um monarca) era Portugal. Com capitais italianos, holandeses e alemães, a expansão marítima foi liderada por Portugal durante quase todo o século XV. O passo inicial foi a conquista da cidade de Ceuta, no norte da África, aos muçulmanos, no ano de 1415.

Em 85 anos, as naus portuguesas conquistaram as ilhas do Atlântico centro-sul (menos o arquipélago das Canárias), a costa oeste e leste da África e a costa atlântica da América do Sul. Lançando-se ao mar apenas em 1492 por enfrentar problemas internos, a Espanha conseguiu alcançar a costa atlântica da América do Norte. O mundo foi dividido entre Portugal e Espanha pelo Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494. Ele excluiu os demais países da conquista e da colonização do mundo.

É preciso ler os escritos de navegadores como Luís de Cadamosto e Pedro de Sintra (CADAMOSTO e SINTRA, 1948), tanto quanto os de Duarte Pacheco Pereira (PEREIRA, 1905) para perceber o sentido da expansão marítima europeia. O que se busca são metais preciosos, especiarias, marfim e escravos. O diário de bordo de Vasco da Gama mostra a cobiça dos europeus em relação à África e à Ásia (GAMA, 1998). O desejo de catequese ocupa posição secundária nesses registros. Ela aparece como substrato para a exploração de povos com visão muito diferente da visão ocidental.

Os relatos sobre costas africanas deixam explícito o interesse de exploração predatória dos europeus (ALMADA, 1841; DONELHA, 1977; COELHO, 1953; COELHO, 1953; FELICIANO e NICOLAU, 1998).

Constitui-se, então, progressivamente, a síndrome de inesgotabilidade dos europeus sobre a natureza, síndrome que será legada aos povos nascidos da colonização europeia. Podemos, pois, situar no século XV o início da crise ambiental da atualidade. Basta que se veja, nos escritos mencionados, a caça ao elefante para obtenção do marfim.

Portugal fundou colônias na América do Sul (Brasil), África (Guiné, Angola, Moçambique) e na Ásia (Timor, Macau, Malaca, Goa, Diu, Damão) sem contar com os contatos comerciais, geralmente efetuados de forma impositiva. No século XVI, o império colonial português se estendia por quase todo o mundo intertropical. Por sua vez, a Espanha colonizou o grande México, Peru, América do Sul, Filipinas e outros pontos da terra. A força de trabalho para a exploração mineral e agrícola provinha de escravos transportados da África e dos índios americanos, o que ensejou um comércio altamente lucrativo, e de povos nativos. O primeiro grande império representativo da globalização ocidental foi fundado em 1580, quando o rei da Espanha se tornou também o rei de Portugal. As monarquias ibéricas passaram a dominar um império “onde o sol nunca se punha”, como era conhecido.

O historiador Alfred Crosby mostra como os germes, as plantas e os animais do velho mundo (Europa, Ásia e África) contribuíram para a dominação e a colonização de terras na América e na Oceania. Segundo ele, mais do que as armas de fogo, as doenças contagiosas foram armas poderosas. Os povos que habitavam esses dois continentes não conheciam as doenças que grassavam no velho mundo e não tinham imunidade contra elas. Assim, a varíola, o sarampo, a catapora, a gripe e tantas outras doenças dizimavam as populações com tais epidemias disseminadas em campo virgem. Também as plantas e os animais permitiram a colonização europeia. Basta ver o cultivo de cana, café, cítricos, assim como os rebanhos bovinos, caprinos, ovinos, cavalares etc, para avaliar o papel desempenhado por espécies exóticas (CROSBY, 1993).

Na verdade, a partir do século XVI, assiste-se a uma grande circulação de doenças, plantas e animais pelo mundo. Assim como a manga, a carambola, a jaca, cítricos são levados para a América, o tomate, o tabaco, a batata inglesa saem da América para os outros continentes.

 

Revolução industrial

Entre os séculos XV e XVIII, a Europa sofreu mudanças profundas na economia, na sociedade, na política e na cultura. Nos séculos XVI e XVII, embora o centro nervoso da vida econômica se localizasse na Europa ocidental, o grande entreposto mundial era a cidade do México, por permitir mais facilmente os contatos entre ocidente e oriente (GRUZINSKI, 2014). A produção feudal que restou na Europa oriental, o trabalho coletivo nas terras cercadas e privatizadas, o trabalho nas manufaturas, o trabalho dos escravos e dos nativos nas colônias europeias e até mesmo o trabalho de artesãos individuais subordinaram-se aos interesses do capitalismo comercial, que promoveu o que o marxismo considera acumulação primitiva. Immanuel Wallerstein denominou o sistema mundial integrado de “economia mundo”, com uma área central, onde a acumulação de capitais era intensa, uma área intermediária, que concorria para a acumulação, e uma área periférica, explorada de maneira brutal para o enriquecimento de Estados, companhias e empresas europeias (WALLERSTEIN, s/d).

Dentro de cada colônia, efetuava-se também uma acumulação que permitiu a construção de grandes fortunas, conforme mostram alguns historiadores (CASTRO FARIA, 1998; FRAGOSO, 1992; FRAGOSO e FLORENTINO, 1993).

O comércio alcançou os seus limites no processo de acumulação. Os bens de troca eram produzidos de forma mais lenta do que colocados em circulação e consumidos. Impôs-se uma revolução na economia que deveria aumentar a produção de bens para a venda. Se Portugal foi o pioneiro no capitalismo comercial, a Inglaterra toma a dianteira da economia mundial ao revolucionar a indústria no final do século XVIII. As fábricas substituem o trabalho manual das manufaturas pela energia gerada pelo vapor e pelo carvão. As novas fábricas provocaram êxodo rural que inchou as cidades, mas não absorveram toda a força de trabalho. Sem qualquer proteção estatal ao trabalhados, os empresários manipulavam a mão de obra, explorando-a livremente. As jornadas de trabalho eram muito longas, as condições sanitárias nas fábricas eram deploráveis. Se um trabalhador não desse conta de suas atividades, havia um exército de reserva do lado de fora das fábricas aguardando a oportunidade de um emprego.

As cidades industrializadas se degradaram com a poluição gerada pelas fábricas. Alguns romances de Charles Dickens são ambientados nas cidades poluídas da Inglaterra. Além dos gases, o saneamento básico era deplorável. A água não era tratada e o esgoto corria a céu aberto pelas ruas. Além do trabalho extenuante, as doenças contagiosas e as péssimas condições do ar provocavam altíssimas taxas de mortalidade.

A exploração das colônias se intensificou para a obtenção de matérias primas e constituição de mercados consumidores. O mundo industrial era dominado por pequenas empresas que travavam intensa concorrência. As mais fortes triunfavam e englobavam as mais fracas, formando conglomerados na forma de trustes e carteis. Por um lado, os grandes complexos arrefeciam a concorrência, mas, por outro lado, criavam monopólios que exploravam a mão de obra e manipulavam os preços dos produtos.

A revolução industrial alastrou-se por outros países, como França, Bélgica, Confederação Alemã, norte da Itália, Estados Unidos e até mesmo Japão. A concorrência não se processava apenas no plano interno de cada país, mas entre as potências industriais do mundo. A revolução industrial ganhou um novo impulso no final do século XIX, com o petróleo e a eletricidade como fontes de energia. Por um lado, os governos perceberam a necessidade de controlar e organizar a economia de mercado. Formaram-se ideologias as mais diversas para resolver a questão social. Marx propôs uma revolução proletária seguida de uma ditadura popular, proposta que deflagrou uma revolução na Rússia. Mussolini e Hitler lideraram golpes de estado para instalar ditaduras nacionalistas e expansionistas. O economista John Maynard Keynes propôs a regulamentação da economia capitalista pelo Estado para corrigir distorções. Nasceu, assim, o Estado de bem-estar social. As três experiências, contudo, continuaram considerando a natureza como entidade inesgotável: na entrada, ela poderia fornecer recursos indefinidamente; na saída, ela seria capaz de absorver todos os dejetos da produção.

 

A grande aceleração

Terminada a Segunda Guerra Mundial, em 1945, uma nova ordem mundial se constituiu. A Europa perdeu sua posição de centro da globalização, embora mantivesse ainda suas colônias. Os Estados Unidos e a União Soviética transformam-se em grandes potências econômicas, bélicas e políticas. Não se tratava mais de uma polarização entre países capitalistas como na Primeira Guerra Mundial (para configurar uma polarização, os países capitalistas avançados propagaram que lutavam contra países capitalistas atrasados, não exatamente com estes termos). Tratava-se agora de uma polarização entre potências de ideologias não apenas diferentes, mas opostas. Os Estados Unidos tornaram-se o guardião das democracias, como os liberais mesmos entenderam. A União Soviética exerceu grande poderio sobre a Europa Oriental, formada então por países socialistas, até a Alemanha Oriental.

O dólar passou a ser a moeda universal e os Estados Unidos criaram o Plano Marshall para ajudar os países capitalistas europeus a se erguerem da destruição causada pela guerra e continuarem no mundo capitalista. Uma política de alianças foi estimulada e liderada pelos Estados Unidos. Entre 1945 e 1991, a polarização entre as duas potências foi chamada de Guerra Fria, ou seja, uma guerra baseada em ameaças e numa corrida armamentista.

   A competição econômica entre ambas, levou o mundo capitalista a promover a aceleração da tecnologia e da economia. É o que vem sendo chamado, atualmente, de Grande Aceleração. Os estudiosos da globalização ocidental definem marcos os mais diversos para seu início, nem sempre de forma convincente. Há quem defina o seu começo no século XVI, com a constituição de uma economia mundo. Há quem entenda como mais apropriada a Revolução Industrial do século XVIII como seu marco inicial. Outros ainda assinalam seu começo com a Grande Aceleração, iniciada com o fim da Segunda Guerra, e há, por fim, os defensores do seu início com a queda da União Soviética, em 1991, como, por exemplo, Edgar Morin. Segundo este autor,

A globalização do mundo começou em 1989, com a generalização do liberalismo econômico em todos os continentes. Esse processo coincidiu com a constituição de um sistema de comunicação planetária imediata por meio de fax, telefone, smatphone, internet (MORIN, 2019).

Continuamos a defender os primórdios da globalização situam-se no século XV, com a expansão marítima da Europa. Essa globalização se caracteriza pelo capitalismo como motor. Se os defensores de data, como quer Jacques Le Goff (LE GOFF, 2015), insistem em que se defina uma, definimos o ano de 1415 como inícios da globalização ocidental, com a conquista da cidade de Ceuta no norte da África, muito embora entendamos que um ano e uma década são tempo exíguo demais para definir tendências.  

 

3- A crise ambiental da atualidade

Crises ambientais provocadas pela ação humana não são novidade. Houve algumas crises no passado pré-ocidental. Contudo, essas crises foram localizadas e reversíveis. Tais crises, resultavam de uma exploração da natureza além do seu limite. Mas, cessada a ação exploradora, a natureza se recompunha lentamente, como já examinado.

A crise atual difere de todas as outras por seu caráter global, já que decorre de uma concepção de natureza ocidental globalizada. É cedo para considerá-la irreversível porque, cessadas as atividades destruidoras, a natureza conta com muito tempo para se recompor. No caso de extinção de espécies, pode-se afirmar com certeza que é irreversível.

A crise ambiental da atualidade passou a ser notada com nitidez a partir dos anos de 1970, tanto assim que a ONU promoveu uma Conferência para discutir a questão ambiental na cidade de Estocolmo, em 1972. A partir dela, definiram-se cinco posições: o exponencialismo (continuação do crescimento capitalista e socialista por não se reconhecer a existência de uma crise nem de limites naturais), o zerismo (defendendo o modelo de desenvolvimento vigente, mas propondo o congelamento dele no nível em que estavam os países), o compatibilismo (crescimento combinado com medidas de proteção do ambiente), o ecologismo (criação de um desenvolvimento para além do capitalismo e do socialismo) e o preservacionismo (negação de qualquer forma de desenvolvimento).

A mais promissora foi, sem dúvida, a do compatibilismo, estimulada pela ONU com o nome de desenvolvimento sustentável. O relatório Nosso Futuro Comum e a Conferência Rio-92 consagraram o desenvolvimento sustentável como caminho a ser trilhado por todas as nações. Trata-se, na verdade, de uma proposta formulada por capitalistas esclarecidos para capitalistas atrasados.

Mas os países são vítimas do Produto Interno Bruto e se veem compelidos a competir de forma acelerada. Por mais que se multipliquem os estudos sobre o estado do meio ambiente e as conferências internacionais, os componentes da crise se agravam.

 

O poder transformador da crise ambiental global

É difícil pensar atualmente numa revolução social que promova mudanças radicais. O filósofo Slavoj Žižek, de formação marxista, sustenta que não há mais clima para uma revolução socialista num só país. Ela seria neutralizada pelo sistema mundial. Num mundo globalizado, pondera ele, existe um grande contingente populacional vivendo abaixo da linha de pobreza. O filósofo entende que uma revolução global poderia ser promovida por esses miseráveis, mas a tendência é que uma parte deles caminhe para o crime e que a outra para as novas religiões que prometem salvação rápida (ŽIZEK, 2011).

Há uma segunda força transformadora não analisada pelo autor: a crise ambiental. A natureza não tem consciência nem projeto revolucionário. A crise ambiental é um fenômeno derivado da ultrapassagem dos limites de resiliência, o que provoca reações da natureza. A economia capitalista globalizada supera os limites de resiliência e a tendência natural do ambiente terrestre em restabelecer a resiliência, ou mesmo a incapacidade de restabelecimento, inviabilizando a economia capitalista. Este é o aspecto transformador da crise ambiental a impor novos rumos.

 

O sistema Terra

  Os cientistas muito aprenderam com a crise ambiental na medida em que ela se aprofundou. Nos anos de 1960, James Lovelock começou a desenvolver a hipótese que um amigo seu denominou de Gaia. Segunda ela, a Terra não é apenas um corpo celeste sobre o qual a vida se desenvolveu, mas ele próprio é vivo em sentido figurado. Com a cientista Lynn Margulies, ele aperfeiçoou a hipótese, demonstrando que a Terra, enquanto organismo complexo, foi construído pela vida e que é um sistema autorregulado e resiliente (LOVELOCK, s/d; 1991). Gaia é uma deusa grega que representa a Terra como mãe protetora. Embora tenha conquistado o status de teoria no meio acadêmico, Gaia se tornou objeto de culto religioso.

Em 1992, o ecólogo Wiliam Ress criou a expressão pegada ecológica para medir o impacto dos sistemas econômicos e até mesmo de cada um individualmente sobre o ambiente. Examinando a história da Terra em 2009, o paleontólogo Peter Ward concebeu a hipótese de Medéia como o oposto de Gaia. Segundo a hipótese, as crises naturais vividas pelo planeta ilustram mais a destruição em massa do que a conservação.

Ultimamente, tende-se a denominar a crise ambiental atual de Antropoceno, termo criado por Paul Crutzen para um novo período, que sucederia o Holoceno. Não se nega a crise, mas entende-se que, em paleontologia, não se costuma nomear as crises. Assim, o verdadeiro Antropoceno é o Holoceno, ou seja, a época dominada pela Homo sapiens. A crise atual é a crise do Antropoceno e não deve ter nome. O Centro Resiliência, de Estocolmo, foge às denominações e procura definir quais são os componentes da crise ambiental atual. Assim, consolida-se cada vez mais a ideia da Terra como sistema. Dez elementos principais são apontados pelo grupo como os mais indicadores da crise: 1- aquecimento global, 2- esgarçamento da camada de ozônio, 3- uso inadequado do solo, 4- extinção de espécies, 5- Aceleração dos ciclos de fósforo e nitrogênio; 6- produção de aerossóis, 7- acidificação dos oceanos, 8- comprometimento da água doce, 9- poluição química e 10- poluição do ar.

A constituição de uma ciência do sistema Terra exige a integração da cosmologia, da geologia, da biologia e das ciências sociais. Mas nosso conhecimento extremamente especializado não conta com generalistas. O economista José Eli da Veiga se mostra propenso a entender que o método da complexidade construído por Edgar Morin seria apropriado para a construção da nova ciência (VEIGA, 2019). A economista Kate Raworth se esforça para ultrapassar o abismo entre os conhecimentos científicos criado pela hiper-especialização, aproximando os conhecimentos desenvolvidos pelo Centro Resiliência e as ciências sociais. Num de seus livros, ela trabalha com os dez limiares do Centro Resiliência, definindo o espaço seguro para a humanidade, desde que se incremente uma economia regenerativa e distributiva em nível mundial, além de conceber uma base social aquém da qual vive-se abaixo do nível de pobreza (RAWORTH, 2019). 

Não apenas o sistema Terra está doente. A humanidade está sujeita a enfermidades derivadas da desigualdade na distribuição de renda. A humanidade como um todo está sempre vulnerável a pandemias. Os pobres em todo o mundo vivem como que na ponta dos pés num suplício de Tântalo. A expectativa de vida aumentou graças a medidas básicas, como saneamento básico, medicamentos e atendimento mínimos. Os pobres e remediados vivem mais. Contudo, vivem mal. Vivem na ponta dos pés sempre em busca de qualidade de vida, como Tântalo desejando alcançar água e alimento.

Ainda assim, a falta de saneamento básico afeta dois terços da humanidade, acarretando doenças da pobreza. As doenças transmissíveis estão globalizadas. Uma epidemia eclodida num rincão do planeta pode rapidamente alcançar o mundo inteiro, notadamente os países pobres. Apesar das vacinas, as doenças contagiosas retornam. O sedentarismo propiciado pelas cidades e a má alimentação levam à obesidade e às doenças degenerativas, como hipertensão, diabetes, colesterol, câncer etc.

A reversão da tendência de crise social e ambiental parece distante num mundo dominado pela economia capitalista e pelos Estados nacionais. A humanidade tem, diante de si, os oitenta anos que restam do século XXI para resolver seus problemas.

 

Referências

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TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...