sexta-feira, 26 de agosto de 2022

VALÃO DOS VEADOS

Arthur Soffiati

Quando os europeus chegaram a terras que futuramente se transformariam no território do Brasil, o valão dos Veados já existia. Não foi conhecido pelos estrangeiros por estar distante da costa e por ser um curso d’água insignificante perto dos colossais rios que desembocavam no mar das terras desconhecidas. Os povos nativos da região, pertencentes ao grupo linguístico macro-jê, já o conheciam e deviam chamá-lo por outro nome, pois  qualquer rio, planta e animal tinham nomes específicos para todos os povos nativos da América. Mas desconhecemos tal nome. Ele foi batizado de Veados muito provavelmente por essa espécie animal buscar água em suas margens, assim como porcos selvagens no Valão dos Porcos, onças no Valão das Onças e antas no Valão D’Antas.

Nos municípios do norte não costeiros e noroeste fluminense, riacho, córrego recebem o nome de valão. Não se trata de canal aberto por mão humana, mas de pequenos cursos d’água naturais. Daí valão Catarina, valão do Barro e outros valões. Parece que os nomes veado e porco, por adquirirem conotação pejorativa, acabaram sendo esquecidos ou substituídos. Hoje, Valão dos Porcos é Valão dos Milagres e Valão dos Veados é Colônia, 4° distrito de São Fidélis.

O valão demorou a figurar nos mapas. Entre 1783 e 1785, Manoel Martins do Couto Reis subiu o rio Paraíba do Sul até a foz do rio Pomba e registrou o rio do Gentio, depois Grande e Dois Rios. Pelas convenções usadas pelo autor, a região era toda coberta pela Mata Atlântica. Hoje, pelos fragmentos que restaram, tratava-se de uma grande floresta estacional, ou seja, que sofre influência das estações e não fica verde o ano todo. O valão corria protegido por ela. Contava com variada fauna silvestre e estava ainda longe da colonização do tipo ocidental.

A aldeia de São Fidélis já está assinalada no mapa de Couto Reis, com data de 1785. Embora essa parte da Capitania do Rio de Janeiro estivesse coberta de matas, a presença do homem branco já se fazia sentir, embora ainda não ostensiva. Os missionários iam na frente. O valão dos Veados, afluente do rio do Gentio, não figura em toda a cartografia do século XVIII. No século XIX, ele só aparecerá em carta de 1846 com os acréscimos de 1854, entre eles, principalmente a Colônia de Valão dos Veados. Essa colônia foi fundada em 1847 na fazenda de Eugenio Aprigio da Veiga, com portugueses, franceses, belgas, alemães, espanhóis e italianos.

Planta da direção do canal de Campos a Macaé de 1846 com atualização em 1854 por ordem do Presidente de Província Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho 

No Relatório dos presidentes da província do Rio de Janeiro, correspondente aos anos de 1835 a 1871, lê-se que a colônia situava-se em terreno: “Montanhoso em seu aspecto, os vales contudo são pouco profundos, e o Valão que lhe dá nome, segue em direção O. O terrenos é seco, sente-se mesmo a falta d’água, tendo apenas a necessária para o uso colhida no rio que corre pela frente. Ao passo que a vegetação é constante, os pastos verdes. E a mata abundante em madeiras de construção, como jacarandá, apriú, roxinho, e pés de vinhático, cedro etc.” (Apud. CHRYSOTOMO, Maria Isabel de Jesus. “Os colonos franceses da Colônia Valão dos Veados - 1845-1854. In: VIDAL, Laurent e LUCA, Tania Regina de (orgs). Franceses no Brasil: séculos XIX e XX. São Paulo: UNESP, 2009).

A descrição da topografia está correta. Entre a Serra do Mar e o rio Paraíba do Sul, o relevo da área é serrano baixo, com pequenas elevações e vales moderados. O ambiente é naturalmente seco, permitindo o desenvolvimento de florestas estacionais. A aparência delas no inverno pode causar a impressão de que estiolam, mas o verde pujante se recupera na estação chuvosa. Reparar que o espírito utilitarista reinante na época do texto não fala em biodiversidade arbórea, mas em madeira boa para construção. Das árvores citadas, o apriú e o roxinho não figuram na lista elaborada por José de Saldanha da Gama (MELLO, José Alexandre Teixeira de. Campos dos Goitacases em 1881. Rio de Janeiro: Laemmert, 1886).

Sem dúvida, o valão dos Veados era bem mais caudaloso do que atualmente. Mas havia um rio bem mais volumoso que ele. Trata-se do rio Dois Rios, mencionado no texto como “rio que corre pela frente”. Nele, desemboca ainda o valão.

No mapa de 1846-54, o córrego não aparece senão como nome da Colônia. No famoso mapa organizado por Pedro D’Alcantara Bellegarde e Conrado Jacob de Niemeyer, de 1858 a 1861, Valão do Veados ainda figura como no registro de 1854, sem que assinale nenhum acidente geográfico correspondente. 

Carta Chorographica da Província do Rio de Janeiro, Pedro D’Alcantara Bellegarde e Conrado Jacob de Niemeyer entre1858 e1861 

Na carta correspondente à província do Rio de Janeiro, que integra o Atlas do Império, obra de Candido Mendes de Almeida, o nome Valão dos Veados corresponde ao mínimo registro de um córrego que aflui para o rio Dois Rios. 

Atlas do Império do Brasil, de  Candido Mendes de Almeida. Rio de Janeiro: História, 2000

Daí em diante, Valão dos Veados aparece como topônimo de uma localidade de São Fidélis às margens do rio Dois Rios. Passou a ser esse também o nome do distrito a partir de 1911, com sede na vila de Colônia, nome que adquiriu todo o distrito por decreto estadual de 31 de março de 1938. O nome refere-se à antiga colônia de europeus instalada em 1847 em terras da fazenda Valão dos Veados.

Em visita ao local em agosto de 2022, localizou-se um descendente de francês com sobrenome Panisset. Foi também localizado o valão dos Veados, nome significativo para um historiador ambiental. Em suas águas, devem ter se dessedentado outros animais, além de veados. Mas foi esse o nome que ficou e que talvez tenha sido relegado ao esquecimento por ser veado palavra cujo sentido é também homossexual masculino.

Por observações feitas no local, nota-se um terreno levemente ondulado em zona serrana baixa bastante desgastada. Os poucos fragmentos florestais revelam que a vegetação nativa ali dominante é a mata atlântica estacional. O sistemático desmatamento aumentou o efeito de borda e tornou os remanescentes florestais mais secos ainda. O solo está muito erodido e empobrecido. A lavoura parece de subsistência ou quase. As pastagens são ralas. A secura impressiona. A vegetação seca favorece incêndios.

Quanto ao valão, seu curso foi bastante mutilado por construções. Uma delas sugere antiga represa. Em outros pontos, tem-se a impressão de que o leito foi alagado e aprofundado para criar bebedouros para o gado. Em certo ponto, o córrego é interrompido só adquirindo volume novamente junto à foz no rio Dois Rios.

A passagem da colonização deixou profundos rastros de destruição. O tempo agora é de revitalização. As margens do córrego, em toda sua extensão, deveriam ser reflorestadas, criando-se mata ciliar para fixação do solo e infiltração de água de chuva e alimentação do lençol freático. Nenhum obstáculo deve permanecer no leito. Nenhuma barragem deve ser construída.

Toda história é ambiental, mas o ambiente nativo raramente aparece. Quer pela visão do historiador quer pela necessidade de incluir o ambiente. No geral, os historiadores não percebem a natureza. Apenas a obra humana. Trata-se da formação excessivamente humanista do historiador. Fora e além da humanidade, não existe mais nada. Por outro lado, a natureza aparece mais na história econômica e social. Na história política, começa a desaparecer para sumir completamente na história cultural. Mas ela, a natureza, continua sob nossos pés. De uma forma ou de outra, seu registro deve ser feito.   

Aspecto do valão dos Veados em agosto de 2022. Foto do autor

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

FRANCESES NA ECORREGIÃO DE SÃO TOMÉ NO SÉCULO XIX

 Arthur Soffiati

Nos dias 11 e 12 da agosto de 2022, pesquisadores envolvidos no projeto “A presença francesa na ecorregião de São Tomé”, visitaram os distritos de Pureza e Colônia, ambos do município de São Fidélis. No dia 10 de mesmo mês e ano, foram da programação, três deles visitam a zona no entorno de Pedra Lisa. Foram visitas técnicas para iniciar e aprofundar pesquisas já iniciadas.

Embora a França tenha exercido grande influência cultural no Brasil, a presença física de franceses como imigrantes foi pequena quando comparada à migração italiana, suíça, alemã, ucraniana, libanesa, chinesa e japonesa.

Na ecorregião de São Tomé, franceses e belgas vieram atraídos por promessas de melhores condições de vida em colônias agrícolas ou como empresários no setor agroindustrial açucareiro ou ainda no comércio.

Ecorregião de São Tomé é um recorte geográfico, cultural pré-europeus, econômico colonial, político e cultural que o autor desses linhas começou a definir em 1997 para fins de suas pesquisas em história ambiental. O conceito de ecorregião existe em ecologia. Trata-se de um território dentro de um ou mais ecossistemas que apresenta certa unidade. De certa maneira, existe, por parte dos pesquisadores envolvidos no projeto sobre a presença francesa na ecorregião de São Tomé, a percepção dos limites dessa ecorregião, mas ela não fala por si só no título de algum trabalho sem uma explicação prévia. Assim, falar da presença francesa no norte-noroeste do estado do Rio de Janeiro, no sul do estado do Espírito Santo e em parte da Zona da Mata de Minas Gerais torna-se bem mais informativo para o interessado, embora alongue por demais o título de qualquer artigo ou livro.

Nem mesmo o autor arriscou-se a utilizar o conceito de ecorregião de São Tomé no título de um dos seus livros. Entendeu ser mais comunicativo explicitar o recorte geográfico: “Os manguezais do sul do Espírito Santo e do norte do Rio de Janeiro.

Voltando à presença francesa nesse recorte que envolve parte de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro, a iniciativa de criar uma colônia belga na Pedra Lisa, zona serrana baixa de Campos entre os antigos sertões do Nogueira, de Cacimbas e da Onça, partiu do governo provincial do Rio de Janeiro em consórcio com a iniciativa privada. Em 1842, o presidente da província contratou o belga José Nellis com vistas à instalação de uma colônia agrícola no entorno da Pedra Lisa, um das mais belas formações pedregosas da Serra do Mar.

Em 1844, 119 colonos belgas se instalaram no entorno de Pedra Lisa para o desenvolvimento de um projeto agrícola, mas poucos tempo permaneceram na área, provavelmente pelo hiato entre as promessas de uma terra edêmica e a realidade. O primeiro trabalho a ser executado num terreno fortemente ondulado foi a remoção da floresta, que gerava lenha e madeira, mas expunha o solo a intempéries. A colônia situava-se entre as bacias dos rios Guaxindiba e Itabapoana. A erosão provocava o assoreamento dos poucos cursos d’água. Uma das plantas escolhidas para o plantio foi o café.

A colônia existiu durante pouco mais de um ano. Os belgas a abandonaram, permanecendo nela apenas o contratante: Ludgero José Nellis (LAMEGO, Alberto Ribeiro Lamego. A terra goitacá tomo V. Niterói: Diário Oficial, 1942).

Três pesquisadores percorreram os arredores de Pedra Lisa no dia 10 de agosto sem encontrar qualquer vestígios da efêmera colônia.

Foto de Laurent Vidal

 

Outra tentativa de instalar uma colônia agrícola com franceses foi tentada em Valão dos Veados, em São Fidélis. Em mapa de 1854, que atualiza as as alterações feitas a partir da carta de 1846, formulada por ordem de Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, então presidente da Província do Rio de Janeiro, aparece pela primeira vez, junto ao rio Dois Rios, a colônia Valão dos Veados. Não há a informação se se trata de um córrego, de uma fazenda ou de um povoado.

Planta da direção do canal de Campos a Macaé de 1846 com atualização em 1854 por ordem do Presidente de Província Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho 

Maria Isabel informa que cerca de 160 documentos relativos a essa colônia foram descobertos no Fundo Valão dos Veados, depositado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e publicado em relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro para os anos de 1835 a 1871. O empresário Eugênio Aprígio da Veiga assinou, em 1845, um contrato como o governo imperial brasileiro para importar e instalar colonos europeus na fazenda Valão dos Veados, na freguesia de São Fidélis, Termo de Campos. Estudos têm mostrado que a pressão cada vez maior contra o tráfico atlântico de africanos como escravos leva os traficantes ou para o tráfico ilegal ou para a criação de colônias com trabalhadores europeus e orientais, sempre oferecendo condições melhores que aquelas em que viviam os futuros migrantes em suas pátrias. Em relatório da Sociedade da Colônia Agrária Vallão dos Veados, de 1853, informa-se que havia nela 62 brasileiros, 178 portugueses, 33 franceses, 13 belgas, 7 alemães, 5 espanhóis e 2 italianos. A área da colônia é irrigada principalmente pelo rio Dois Rios, outrora denominado rio de Gentio e mais tarde também rio Grande. Era toda recoberta pela Mata Atlântica no seu aspecto estacional semidecidual. Dessa mata, vieram a lenha e a madeira. Produzia-se cana, café, mandioca, milho, feijão, arroz, além da criação de porcos para a subsistência dos colonos.

Franceses de sobrenome Vianney, Poutis, Roussier etc fixaram-se na colônia Valão dos Veados (CHRYSOTOMO, Maria Isabel de Jesus. “Os colonos franceses da Colônia Valão dos Veados - 1845-1854. In: VIDAL, Laurent e LUCA, Tania Regina de (orgs). São Paulo: UNESP, 2009).

O nome Valão dos Veados foi substituído por Colônia, o que é bastante sintomático. Na excursão feita a Colônia, hoje 4° distrito de São Fidélis, pelos pesquisadores no dia 12 de agosto, foi localizado o valão do Veados (ser estudado pela cartografia em outra oportunidade).

Já o caso de Pureza é diferente. Não houve nenhuma iniciativa de fundar no atual 3° distrito de São Fidélis uma colônia agrícola com brasileiros ou estrangeiros. A localidade ergueu-se às margens da estrada Ouro Preto-Campos, aberta, no trecho do Rio de Janeiro, em 1809 (CAPELLA, Maria Joana Neto; CARRARA, Angelo Alves e CASTRO, José Flávio Morais. A estrada geral de Minas a Campos dos Goytacazes. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2021). A estrada corria na margem esquerda do rio Paraíba do Sul entre a atual Aperibé até o pontal formado pelo encontro do rio Muriaé com o Paraíba do Sul. Em Pureza, havia um antigo engenho de açúcar suplantado por engenho central moderno vindo da França. Como se dizia na época, a fábrica foi montada do pé, ou seja, sem aproveitar nenhum construção anterior. A firma vendedora foi a francesa Cail, que enviou para Pureza a estrutura do prédio, o maquinário, os engenheiros e os operários. Essa experiência insere-se, assim, na modernização da agroindústria sucroalcooleira, que começou a partir de 1870 no mundo.

Franceses permaneceram em Pureza findos os trabalhos de montagem do engenho central. Muitos constituíram famílias casando-se com brasileiras, mas mantendo os sobrenomes, com assinala Nelzimar Lacerda. Os nomes franceses permanecem em pessoas que ainda vivem em Pureza ou saíram para outros lugares do norte-noroeste fluminense. Para mais longe até, como Pointis, Panisset, Gaudard, Crellier, Signourel, , Boynard, Eccard, Grosjean, Veichard, Louvain, Falquet, Saint Jean, Lummay, Poget, Jaillerat (LACERDA, Nelzimar. Usina Pureza e Vila de Pureza. São Fidélis: 6 de outubro de 2018). Na visita feita pelo grupo de pesquisadores, no dia 12 de agosto de 2022, registros foram anotados no Engenho Central de Pureza, na vila de Pureza e no seu cemitério. 

Fachada do Engenho Central de Pureza 

Em sua comunicação sobre a presença de franceses na indústria sucroalcooleira do norte-noroeste fluminense, a pesquisadora Larissa Manhães, de maneira documentada, arrolou ainda outros empreendimentos. Em 1900, o engenho central de Tocos foi adquirido pela Sucrerie du Cupim, que, em 1907, passou a denominar-se Societé Sucreries Bresilienne, empresa francesa que possuía também a Usina do Cupim. Victor Sence, também francês, que trabalho numa das usinas da Societé, montando depois sua própria usina em Conceição de Macabu (MANHÃES, Larissa. Industriais franceses. Comunicação oral: 11/08/2022).

Finalmente, Laurent Vidal, em sua comunicação, mostrou a presença francesa no comércio de Campos dos Goytacazes, assim como as relações comerciais entre França e norte fluminense por via diplomática. A França manteve um sub-consulado em Campos. 

Interior da Joalheria Renne, Campos dos Goytacazes

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...