domingo, 29 de outubro de 2023

A QUESTÃO PALESTINA: UMA INTERPRETAÇÃO LAICA

 Arthur Soffiati

            O texto abaixo corresponde a uma palestra que proferi no Sesc/Campos em 19 de setembro de 1975, há cinquenta anos. Comecei minha contribuição à imprensa diária naquele ano, escrevendo para o jornal campista “A Notícia”, que hoje não mais circula. Meu tema favorito nos artigos, entre 1975-77 foi política internacional. Posteriormente, fui professor de história contemporânea da Faculdade de Filosofia de Campos. A partir de 1978, fui absorvido pela questão ambiental, mas nunca deixei de me posicionar em relação a questões internacionais sempre que julguei necessário. No texto a seguir, tento empreender uma interpretação laica, sem assumir claramente posição contra ou favor. Entendo que os acontecimentos ajudam a compreender a questão palestina desde seus primórdios. O texto não passa de 1975. Pretendo atualizá-lo posteriormente. Espero contribuir para a compreensão de um conflito que começou há mais de um século, embora saiba que é bem mais fácil assumir posturas rasas com as informações fornecidas pela imprensa e pelas redes sociais. Os mapas foram incluídos posteriormente. 

 

Os judeus antes do sionismo

1- A Palestina – cujo nome deriva de “Filistina”, terra dos filisteus – é uma região do Oriente Médio habitada historicamente por vários povos, entre os quais estão amoritas, canaanitas, hititas, edomitas, moabitas, fenícios, filisteus e hebreus. A região, banhado pelo rio Jordão, que deságua no mar Morto a 400 m. abaixo do nível do mar, é a maior depressão natural do mundo.

2- Ao emigrar de Ur, na baixa Mesopotâmia, como narra o livro do “Gênesis”, Abraão e sua família dirigiram-se para Herã e depois para a Palestina (naquela época Canaã). Foi posteriormente para o Egito e voltou para Canaã, onde morreu. Pressionado por uma crise de alimentos, seu filho Isaac refugiou-se em Gerar. O mesmo aconteceu com Jacó, filho de Isaac, obrigado a fugir para o Egito em virtude de uma grande fome. Lá, contou com a proteção do seu filho José, que se tornara Primeiro Ministro do faraó no tempo em que o Egito estava sob domínio dos hicsos (1775-1575 a. C.).

3- Após a expulsão dos hicsos por um movimente restaurador egípcio, os hebreus passaram a ser oprimidos pelo novo governo e, sob a direção de Moisés (cerca de 1250 a. C.), partiram à procura da Palestina, a Terra Prometida (Canaã) aos hebreus por Iavé. Liderados por Josué após a morte de Moisés, os hebreus conquistaram uma parte da Palestina na condição de horda nômade que assalta uma comunidade sedentária.

4- A fixação das doze tribos hebreias na Palestina foi seguida pela expansão. Dois estímulos contribuíram para isso: internamente, a ameaça dos pequenos povos vizinhos e, externamente, a ausência de grandes impérios no fim do segundo milênio a. C. (os egípcios estavam em recuo, os creto-micênicos e os hititas haviam sido destruídos pelos “Povos do Mar” e a Assíria não entrara ainda em expansão). Orientados pelos Juízes, os hebreus tornaram-se um dos povos mais poderosos da “Terra do Meio” (Oriente Médio) e fundaram um reino integrando as doze tribos, cujo primeiro rei foi Saul. Jerusalém foi conquistada por Davi, o segundo rei, no governo do qual o reino hebreu alcançou o apogeu do seu prestígio militar. No período de Salomão, o terceiro rei, as relações comerciais com as cidades fenícias foram muito intensas e a prosperidade econômica do reino foi muito grande. 

 

As doze tribos de Israel

5- Após a morte de Salomão, divergências internas levaram a um cisma: ao norte, formou-se o reino de Israel com as dez tribos nortistas, onde predominavam a vida urbana e a atividade comercial. Ao sul, formou-se o reino de Judá, com capital em Jerusalém, reunindo duas tribos mais conservadoras que as do norte, com predomínio das atividades agrícolas e pastoris. O reino de Israel foi integrado ao Império Assírio em 722 a. C. Sua população foi dispersada pela Mesopotâmia, onde se perdeu e de onde nunca mais voltou, sendo, por isso, chamada “As Dez Tribos Perdidas”. O reino de Judá foi conquistado por Nabucodonosor, do segundo Império Babilônico, em 586 a. C. Seus habitantes foram levados cativos para a Babilônia (“Cativeiro da Babilônia”). Em 539 a. C., Ciro, rei do império Persa, conquistou a Babilônia e libertou os judeus. Estes retornaram à Palestina e reconstruíram o templo, mas transformaram-se em vassalos dos persas.

6- Com a vitória de Alexandre sobre os persas, a Palestina foi anexada ao Império Macedônico (Alexandre entrou em Jerusalém em 334 a. C.). Após a morte do grande conquistador, seu império foi dividido entre seus generais e a Palestina ficou integrada ao reino Selêucida. Um dos reis da nova dinastia, Antíoco IV, pretendendo helenizar o país, destruiu parte de Jerusalém e instalou Zeus no seu templo, gerando uma revolta dos judeus liderada pelos macabeus.

7- Em 63 a. C, o romano Pompeu conquistou Jerusalém e a Palestina passou a ser controlada por Roma. No início da era cristã, a Palestina estava dividida em quatro partes: a tetrarquia de Herodes Antipas, a Tetrarquia de Filipe, a Tetrarquia de Lísias e a Província ou Proconsulado da Judeia. Em 70 d. C, Tito, filho do imperador romano Vespasiano, sufocou violentamente uma revolta deflagrada na Palestina, tomou Jerusalém e destruiu o templo, cujas ruínas constituem hoje o “Muro das Lamentações”. Em 135 d. C., o imperador Adriano jugulou uma revolta encabeçada por Simão Bar Kochba e destruiu totalmente Jerusalém, construindo outra cidade no local chamada Aelia Capitolina. Os judeus foram expulsos e se espalharam por terras hoje do Iraque, Iêmen, Egito, África setentrional e Europa. Este episódio constituiu a “Diáspora”, que continua, em grande parte, existindo até hoje.

8- Com a divisão do Império Romano, em 395 d. C., a Palestina ficou integrada ao Império Romano do Oriente, que veio a se denominar Império Bizantino. No século VII (637 d. C.), a região caiu em poder dos árabes muçulmanos, que estavam em expansão. Daí em diante, a Palestina foi conquistada sucessivamente pelos Cruzados, que lá fundaram o Reino Latino de Jerusalém (1099) e pelos mamelucos do Egito (entre os quais Saladino, em 1178) e, finalmente, pelos turcos otomanos, em 1516, que a dominaram até o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-18), quando a Palestina foi entregue à administração britânica.

 

Movimento sionista

9- No final do século XIX, foi fundado, pelo jornalista judeu-austríaco Theodor Herzl (autor do livro O Estado judeu), um movimento que tinha por objetivo a criação de um lar nacional para reunir os judeus da “Diáspora”. O movimento foi denominado sionismo por Nathan Bernbaum (em alusão a Sião, nome de uma das colinas de Jerusalém, que frequentemente serve para designar a própria cidade) e logo adquiriu grande impulso. Em 1897, o movimento realizou seu primeiro congresso, em Basileia, na Suíça. Várias regiões do mundo foram sugeridas para a instalação dos judeus. A Inglaterra, inclusive, ofereceu uma fértil área desabitada em Uganda, que não foi rejeitada por Herzl. Entretanto, no sexto congresso sionista, realizado em 1903, ficou estabelecido que o Lar Nacional Judeu só poderia se estabelecer na Palestina, terra intimamente ligada às tradições judaicas. Guiados pelo slogan de Israel Zangwill “Uma terra sem povo para um povo sem terra”, os judeus começaram a emigrar para a Palestina, cuja população, na época, era de 700.000 habitantes, sendo 574.000 de muçulmanos, 70.000 de cristãos e 56.000 de judeus.

10- Em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, França e Inglaterra dividiram terras do Império Otomano (turco) entre si, no Oriente Médio. Considerado o homem doente da Europa, o Império Otomano lutava ao lado da Alemanha e do Império Austro-Húngaro. Antes mesmo da derrota desse bloco, Inglaterra e França já ambicionavam terras do Império Otomano. Terminada a guerra, o princípio de Estado Nacional, nascido na Europa ocidental, entraria no Oriente Médio. Pode-se situar em 1916 o início concreto do conflito entre palestinos e judeus. 

Divisão do Oriente Médio entre França e Grã-Bretanha depois da Primeira Guerra Mundial

 

11- Em 1917, o Ministro do Exterior da Grã-Bretanha, Arthur Balfour, enviou uma carta ao banqueiro judeu Rotchild informando que o Gabinete Britânico havia aprovado a seguinte declaração: “O Governo de Sua Majestade encara com fervor o estabelecimento na Palestina de um Lar Nacional Judeu, e empregará seus maiores esforços para a consecução deste objetivo, ficando claramente entendido que nada será feito que prejudique os direitos religiosos e civis das comunidades não-judias existentes na Palestina, ou os direitos e estatuto político de que gozam os judeus em qualquer outro país.” Este documento passou a ser denominado “Declaração Balfour” e foi uma resposta, segundo declaração pública do Primeiro Ministro Inglês Lloyd George, à concretização da promessa que os líderes sionistas fizeram de conseguir apoio dos judeus de diversos países na luta contra as potências da Tríplice Aliança, caso a Inglaterra os ajudasse a se estabelecerem na Palestina. A respeito da “Declaração Balfour”, Arthur Koestler assim se pronunciou: “Trata-se de uma promessa pela qual uma primeira nação dava a uma segunda o território de uma terceira nação”. Depois de 1917, a emigração de judeus para a Palestina aumentou maciçamente e foi intensificada mais ainda após as perseguições movidas contra os judeus pela Alemanha Nazista.

12- Terminada a Primeira Guerra Mundial com a derrota da Alemanha, Áustria-Hungria e Império Otomano, o Conselho Supremo dos Aliados, reunido em San Remo, em 1920, decidiu entregar à Grã-Bretanha o mandato, conferido pela Liga das Nações, sobre a Transjordânia e a Palestina. Durante o mandato britânico, a população judia na Palestina aumentou consideravelmente. Em 1944, dos 1.764.000 habitantes da região, 1.179.000 eram árabes e 554.000 judeus. Em 1948, a população total era de 2.065.000 habitantes, sendo 1.415.000 árabes e 650.000 judeus. Diante de um aluxo tão avassalador, a Inglaterra proibiu a fixação de refugiados judeus na Palestina. No entanto, para introduzir judeus clandestinamente na região, a Agência Judaica criou uma força militar – a Haganah –, que, em 1945, tornou-se o Exército Nacional Judeu.

 

O Estado de Israel e a Questão Palestina

13- Na sessão de 29 de novembro de 1947, a Organização das Nações Unidas decidiu dividir a Palestina em duas partes: 56% do território couberam aos judeus (14.000 km² e 700 mil habitantes) e 44% aos palestinos (árabes muçulmanos, cristãos ou laicos = 11.500 km² e 1.300 habitantes). Jerusalém tornou-se uma zona internacional sob administração da ONU.  

14- Terminado o mandato britânico na Palestina, em 14 de maio de 1948, o Conselho Nacional Judeu e o Conselho Sionista proclamaram a criação do Estado de Israel no dia seguinte, tendo David Ben Gurion como primeiro-ministro. Neste mesmo ano, eclodiu a primeira guerra entre árabes e judeus. Forças do Egito, da Transjordânia, da Síria, do Líbano e do Iraque, apoiados por forças da Arábia Saudita, chocaram-se com as forças israelenses. Depois de sete meses, Israel saiu vitorioso, ampliando seu território de 56% para 77% do território da Palestina. O armistício firmado em 1949 estabeleceu que a Transjordânia anexaria a Cisjordânia (margem ocidental do Jordão), incluindo a cidade velha de Jerusalém, e passaria a se chamar Jordânia. O Egito ocuparia a Faixa de Gaza e Israel tomaria posse da planície de Neguev, além de Haifa e do porto de Jaffa. Houve cerca de 500 mil a 750 mil refugiados palestinos.

15- Em 1952, o rei Faruk, do Egito, foi deposto. Proclamada a república, Gamal Abdel Nasser tornou-se o homem forte do novo regime e, em1956, nacionalizou o canal de Suez, explorado por uma companhia de capitais franceses e ingleses. Em consequência, o Egito sofreu intervenção franco-britânica, com a ocupação de Port-Said por paraquedistas e fuzileiros. Aproveitando-se da situação, Israel lançou um ataque de surpresa (segunda guerra árabe-israelense) e dominou a península do Sinai. Sob pressão da Rússia e dos Estados Unidos, Israel voltou às linhas do armistício de 1949. A ONU criou, então, uma força internacional para a manutenção da paz, instalada nas fronteiras egípcio-israelenses.

16-  No dia 5 de junho de 1967, começou a terceira guerra árabe-israelense, a “Guerra dos Seis Dias”. Os egípcios bloquearam o estreito de Tirã, fechando o golfo de Akaba, única saída de Israel para a Ásia, e exigiram a retirada de forças da ONU de seu território. Em contrapartida, a ação dos judeus foi fulminante. Seus aviões “Mirage” e “Mystère”, de fabricação francesa, destruíram quase todos os aviões egípcios antes que levantassem voo. A guerra terminou com a vitória de Israel e com a conquista, por este país, de toda a península do Sinai ao Egito, das colinas de Golan à Síria, e da Cisjordânia à Jordânia. A superfície de Israel quadriplicou, passando de 20.700 km², adquiridos com o armistício de 1949, para 89.600 km².

17- A 22 de novembro de 1967, o Conselho de Segurança da ONU promulgou a Resolução n° 242, com o seguinte teor:

            “O Conselho de Segurança, expressando sua contínua preocupação com a grave situação no Oriente Médio;

            Enfatizando a inadmissibilidade da aquisição de território pela guerra e a necessidade de trabalhar para uma paz justa e duradoura em que cada Estado da região possa viver em segurança;

            Enfatizando ainda mais que todos os Estados membros em sua aceitação da Carta das Nações Unidas, tomaram o compromisso de agir de acordo com o Artigo 2° da Carta.

1.      Afirma que o cumprimento dos princípios da Carta exige o estabelecimento de uma paz justa e duradoura no Oriente Médio, que inclua a aplicação de ambos os princípios seguintes:

I-                   Retirada das forças armadas israelenses dos territórios ocupados no recente conflito;

II-                 Terminação de todas as reclamações de beligerância, e respeito pelo reconhecimento da soberania, integridade, territorial e independência política de todo Estado da região e seu direito de viver em paz dentro de fronteiras seguras reconhecidas, livre de ameaças ou atos de força;

2.      Afirma ainda mais a necessidade:

I-       De garantir a liberdade de navegação pelas hidrovias internacionais da região;

II-     De alcançar-se uma solução justa para o problema dos refugiados;

III-   De garantir a inviolabilidade territorial e a independência política de todo Estado da região, através de medidas que incluam o estabelecimento de zonas desmilitarizadas.

3- Requer ao Secretário Geral que designe um Representante Especial para ir ao Oriente Médio estabelecer e manter contatos com os Estados interessados a fim de promover acordo e assistir a esforços para alcançar uma solução pacífica e aceita, de acordo com as disposições e princípios desta Resolução;

4-Requer ao Secretário Geral que informe o Conselho de Segurança do progresso dos esforços do Representante Oficial tão cedo quanto possível.”

18- O conflito árabe-israelense prosseguiu depois de 1967 por meio de escaramuças e atos de terrorismo de ambas as partes. No dia 5 de outubro de 1973, quando os judeus festejavam o Yon Kippur, tropas sírias e egípcias irromperam de surpresa em território de Israel, penetrando a península de Sinai, numa frente, e noutra, as colinas de Golan. Os israelenses reagiram e avançaram sobre o território sírio e atravessaram o canal de Suez, sitiando a cidade de Suez. A guerra durou 18 dias e terminou com um cessar fogo que entrou em vigor em 22 de outubro de 1973. As negociações entre egípcios e israelenses, no quilômetro 101 da rodovia Cairo-Suez, em janeiro de 1974, culminaram num acordo, estabelecendo que o Egito conservaria a faixa de terra conquistada na margem oriental do canal de Suez, e que Israel recuaria para leste dessa linha. Tanto entre Israel e Egito quanto entre Israel e Síria foram criadas zonas desmilitarizadas, ocupadas por forças de emergência da ONU. Estabeleceu-se também que, junto a essas duas áreas desmilitarizadas, de ambos os lados, seriam criadas faixas em que as forças dos países beligerantes seriam limitadas.

19- Entre 26 e 28 de novembro de 1973, promoveu-se em Argel uma conferência de cúpula dos países árabes que decidiu o reconhecimento da Organização para Libertação da Palestina (OLP), liderada por Yasser Arafat, como única representante do povo palestino, aceitando mesmo a sua participação na Conferência de Genebra, que deveria negociar a paz entre os beligerantes. Bourguiba, presidente da Tunísia e talvez o mais realista dirigente árabe, afirmou que “A Resolução das Nações Unidas de 1947 foi uma injustiça flagrante. Mas tornou-se uma realidade e não temos mais condições de contestá-la. Israel existe e todos os países estão de acordo que deve ser preservado. A resolução foi aceita pelo próprio Presidente Nasser”. Mesmo assim, o documento oficial da conferência impôs, como condições para um acordo de paz permanente, a evacuação por Israel dos territórios árabes ocupados, vindo Jerusalém em primeiro lugar, e o restabelecimento integral dos direitos nacionais do povo palestino.

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...