segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

BAÍA DE PARANAGUA: ANTONINA

 Arthur Soffiati

Meu avô paterno era um homem de poucas palavras. Não que fosse antipático ou taciturno. Simplesmente falava pouco, em contraste com minha avó. Era preciso puxar assunto e lhe dar atenção para que abrisse a tampa da sua vida. E ele teve uma vida aventurosa, embora não considerasse seu passado importante. Lembro dele numa poltrona, a sala escura do apartamento em que morava, sua fala mansa e pausada narrando sua vida. Ele foi sequestrado pela Marinha quando adolescente. Era comum esse rapto. Saiu de lá creio que com 19 anos. Tentou a vida como técnico de futebol, talvez o primeiro nesse ramo ingrato, no Paraná. Alistou-se no Exército como soldado, perseguiu a Coluna Prestes e chegou a subtenente. Muito mais há ainda para falar dele. Lembro que ele me contou ter morado em Antonina, perto de Paranaguá.

Nunca visitei Antonina. Apenas ouvi muito sobre o lugar. Aliás, ouvi meus avós falarem de Guaratuba, Matinhos, Guaraqueçaba, Morretes... Morretes eu visitei algumas vezes. Os outros lugares não. A memória dos meus antepassados transferiu-se para mim como se transferem os traços genéticos. Devo a eles visitar ou revisitar esses lugares com nomes sonoros. Resolvi conhecer Antonina. Que Guaratuba, Matinhos e Guaraqueçaba me aguardem ou me perdoem.

Da Ilha do Mel, fomos a Pontal do Sul e, de lá, de táxi, a Antonina, no fundo da Baía de Paranaguá. Afastada das rotas mais movimentadas, Antonina se parece um pouco com Santa Maria Madalena (RJ) na beira do mar. A localização ajudou a sua preservação. Lá viveu Wilson Rio Apa, escritor que conheci quando criança. Era amigo de meu pai.

Mas, Antonina, em que local morou meu avô? As informações se chocam. Se ele foi raptado pela Marinha adolescente e ingressou no Exército logo depois, como morou em Antonina? Com quem morou lá? Com seus pais? Teria servido às Forças Armadas lá? Estarei eu enganado? Terá mesmo meu avô dito que morou naquela cidade? Não importa. Antonina está entranhada no meu corpo. As memórias que tenho do meu passado são reelaboradas com o tempo. As lacunas são inventadas, e eu nem percebo que estou mentindo para mim mesmo. A mentira passa a ser verdade.

Sim, meu avô morou em Antonina, não importa quando e onde. Se criei essa parte do passado, fiz bem, pois Antonina ainda é maravilhosa. Digo “ainda” porque a ação humana e mesmo a ausência dela condenam a cidade à destruição progressiva. Paranaguá deve ter sido lindo como Antonina, mas a perversidade do nosso tempo já chegou lá. Deverá chegar a Antonina um dia. Cheguei a tempo de usufruir o prazer de andar por duas praças enormes, que superam todas as praças de minha cidade em tamanho e encanto. E o silêncio? Não há mais silêncio por aqui. Antonina ainda guarda um odor, um sabor, uma visão e uma audição de província, de passado. 

Praça de Antonina

Andei por suas ruas antigas fotografando tudo. Os vetustos casarões, a sede da prefeitura, visitada por D. Pedro II, Olavo Bilac e Santos Dumont, a Câmara Municipal, o teatro, as igrejas, as ruínas, a Pharmacia Internacional, que existe desde 1911, com seus belos armários de madeira a tomar as paredes e sua atmosfera de passado. Senti necessidade de viver mais Antonina. Conversei com moradores. Eles me disseram que Antonina é um bom lugar para morar. O que a estraga são os políticos. Em todos os lugares, ouço sempre essa reclamação. Provavelmente, mergulhando no dia a dia da cidade, ela se torne insuportável. 

Prédio da Prefeitura Municipal de Antonina

Quero continuar um estranho à cidade. Apenas um turista que admira a Baía de Paranaguá, respira o seu ar, contempla a paisagem serena, admira seus prédios conservados ou em diferentes graus de degradação, suas praças interioranas. E a memória da memória de meu avô, sempre com seus relatos fantásticos. A memória da memória dele morrerá comigo. Ficará nesta crônica, que também deverá ser esquecida. 

Farmácia de Antonina com atividade iniciada em 1911

De lá, trouxe dois livros sobre a cidade em que viveu o consagrado escritor paranaense Cristóvão Tezza. Ele não ficou em Antonina. Foi morar em Curitiba. Tezza apresenta “Crônicas da Capela”, do seu amigo Eduardo Nascimento. O outro livro tem como título “A voz de Antonina”, de Adriano Vilar. Ambos falam da beleza do lugar, sua demolição progressiva, seu famoso carnaval, seus maus políticos... Pretendo ainda ler os dois livros para me tornar mais íntimo de Antonina.


Rua de Antonina

 

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