sábado, 23 de outubro de 2021

CHUVA FRACA PORÉM CONTÍNUA

Arthur Soffiati

Recebo hoje a informação de que o outubro de 2021, em Belo Horizonte, foi o oitavo mais chuvoso desde 1910, quando os registros pluviométricos começaram a ser feitos. A imprensa deveria saber passar esse tipo de informação num tempo de mudanças climáticas extremas. Em vez de escrever que as chuvas de 2021 foram as oitavas mais intensas desde 1910, dever-se-ia escrever que elas são as oitavas mais intensa desde que começaram as medições, pois, do contrário, o leitor pensa que houve chuvas mais fortes em 1910 e antes. O outubro mais chuvoso em Belo Horizonte, até o momento, foi o de 2009. No norte fluminense, sobretudo na bacia do Ururaí, as chuvas foram destruidoras na segunda quinzena de novembro desse ano. As mais intensas de que tenho conhecimento nessa pequena e curiosa bacia. Escreveremos sobre essa catástrofe em novembro.

O segundo mês de outubro mais chuvoso em Belo Horizonte foi o de 1965. Em seguida o de 1995. Daí em diante o de 1964, o de 1922, o de 1912 e o de 2010. No passado, as chuvas e estiagens permitiam previsibilidade. Hoje, não permitem mais. Devemos lembrar que outubro ainda não terminou. No princípio de 2020, as chuvas em Belo Horizonte, na Zona da Mata e no norte-noroeste fluminense foram destruidoras. Em Belô, o rio Arrudas transbordou várias vezes e arrasou a cidade. Não foi o único. Já se mostrou que as enchentes em Belo Horizonte devem ser creditadas aos rios que foram cercados e tapados pela cidade. E notemos que as chuvas de outubro de 2021, não causaram estragos na cidade. Por que? Porque foram bem distribuídas ao longo de 20 dias. O mesmo pode ser observado em relação ao norte-noroeste fluminense. Acredito que, do ponto de vista quantitativo, choveu muito aqui também. Mas a chuva ocorreu de forma borrifada e distribuída ao longo do mês. O que acontecerá nos próximos dez dias, só Deus sabe. Até o final de 2021, não é possível prever com segurança. Há fortes indícios de intensas chuvas destruidoras que devem entrar em 2022.

Outubros mais chuvosos em Belo Horizonte

Muitos torcem para que as chuvas cheguem e terminem a crise hídrica, baixando a conta de energia hidrelétrica. Mas elas podem resolver um problema e causar outros. Dou outro lado do mundo, ontem e hoje, chuvas catastróficas estão arrasando a Índia e o Nepal. Quase 200 pessoas morreram na Índia e no Nepal ontem e hoje. É cedo para fazer um balanço dos estragos. Mais mortos devem aparece, assim como muitos prejuízos materiais. Essa é a forma de ataque das mudanças climáticas: ocorrem aqui e acolá. Aqui, a imprensa noticia. Lá, nem o jornal de Macau, China, publicado em português, deu notícia. Num mundo globalizado e ameaçado por problemas ambientais, entendo que a imprensa deve cuidar de notícias locais, futilidade etc. Mas promover também artigos de análise e notícias sobre o acontece no globo. Bastaria meia pagina.



O PUNHAL DA EXTINÇÃO

Arthur Soffiati

Podia ser uma minhoca ou uma borboleta. Podia ser um peixe, uma rã, uma cobra, uma galinha ou um cachorro, mas é uma ave. O urubu é uma ave, mas não é um pássaro. Um pardal ou uma cambaxirra (que não tenho visto mais) são aves e pássaros. Atenção ao escrever, jornalista. Pode chamar um coleiro de ave e de pássaro, mas nunca chame um gavião de pássaro. Apenas de ave.

Poderia ser um pássaro qualquer dos muitos que ainda existem no mundo. Poderia viver em qualquer ambiente, mas só vive em florestas. E a floresta em que ele vive é a Mata Atlântica, no Brasil, que foi reduzida a 10-12%. Mas não em toda ela, que se estende do norte do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte, com incursões no interior do território sul-americano. Essa espécie de ave habita o trecho da Mata Atlântica entre Friburgo e o Espírito Santo, passando pela Zona da Mata Mineira. Ela é mais exigente ainda: vive na parte serrana da Mata Atlântica, entre 700 e 1250 metros, onde a floresta é mais úmida. Podemos concluir que ela nunca seria encontrada nas matas estacionais dos tabuleiros dos norte-noroeste fluminense, mas poderia viver no Imbé.

Saíra-apunhalada em desenho 

Estamos nos referindo à saíra-apunhalada, uma pequena ave com peito branco com uma grande mancha vermelha. Daí o seu nome de apunhalada. Ela foi encontrada e descrita em 1870. O exemplar foi capturado em Muriaé, Zona da Mata Mineira, mas acredita-se que tenha sido em Friburgo. Foi batizada com o nome científico de Nemosia rourei. O segundo nome é especifico e homenageia Jean Roure, explorador francês que a encontrou pela primeira vez. Seus hábitos são muito especiais. Parece se esconder dos humanos. Em 1941, oito exemplares foram vistos no Espírito Santo. Ela se alimenta de insetos e constrói seu ninho no início de novembro. Em 2021, os estudiosos encontraram dois ninhos que precisam ser vigiados para que nenhuma outra ave ataque seus ovos. Como sua casa (a floresta) foi muito destruída por desmatadores e caçadores, ela acabou chegando ao estado de criticamente em perigo, o mais próximo da extinção. Apenas 11 indivíduos estão registrados pelos estudiosos.

Foto de saíra-apunhalada 

Não se sabe qual é a utilidade da espécie para o ser humano. Isso não importa. O que vem ao caso é que ela existe e tem direito a viver. 

terça-feira, 19 de outubro de 2021

RIO ITIBERÊ

Arthur Soffiati

Um dos meus encantamentos, na baía de Paranaguá, era contemplar o rio Itiberê das sacadas da minha casa, na margem direita dele. Para mim, entre quatro e oito anos de idade, o rio era um mundo. A margem oposta ficava na ilha dos Valadares, que, para mim, não era ilha, mas continente. Eu me perguntava por que chamar o outro lado de ilha, se havia uma comprida extensão de terra coberta de pujante vegetação, cujas plantas ainda eram desconhecidas para mim.

Das sacadas, eu acompanhava o movimento das marés. Ora o fluxo era bem intenso em direção à nascente. Ora a água toda voltava. De onde vinha e para onde ia eram mistérios para mim. Meu pai gostava de pescar. De vez em quando, ele subia o Itiberê e voltava com peixes e histórias. Essas histórias envolviam mais ainda o rio em mistérios. Eu imagina lugares inacessíveis e mágicos. Deviam ser perigosos e povoados por entes míticos.

Rio Itiberê visto da ponte 

Era uma alegria aos meus olhos de criança ver a movimentação de barcos saindo e chegando bem perto de onde eu morava. Canoas, lanchas a motor e barcos de médio calado. Falava-se que iam para a ilha dos Valadares, para a praia da Cotinga, para a ilha do Mel, para Antonina, para Guaraqueçaba, para lugares misteriosos.

O grande espetáculo para as crianças, e creio que também para os adultos, era ver Mário Peixe nadando todos os dias contra a maré. Nunca o vi de perto. Dizem que era fortíssimo e que se tornava mais musculoso quanto mais nadava. Nós o víamos subindo o rio a nado contra a maré que baixava formando uma forte corrente. Ao lado da ilha dos Valadares e das embarcações, Mário Peixe era a grande atração.

Antes de retornar a Paranaguá na viagem de 2016, examinei a baía pelo Google Earth. O rio Itiberê não era a baía de Paranaguá, mas parte dela. O corpo central da baía ficava distante de onde eu morava. Distante para um criança. Adulto, percorri a cidade da rua Beira-Rio, onde eu morava, até o porto, às margens da baía. Examinando o Itiberê mais de perto, nem se trata de um rio verdadeiro, mas de um canal de maré que se ramifica. Com o rio dos Correias, outro canal de maré, forma a ilha dos Valadares. Na verdade, a baía de Paranaguá forma um aranhol de canais de maré e de ilhas. Daí a força das marés enchentes e vazantes.

Ao retornar a Paranaguá, em 2016, tudo parecia menor. A estação ferroviária, que parecia longe de onde eu morava, pôde ser alcançada a pé rapidamente, assim como o porto. O Rocio não era mais um mundo distante e misterioso. Então, o adulto começa a diluir as fantasias da criança. A ilha dos Valadares se aproximou dos olhos da criança que se tornou adulto e velho. Foi construída uma ponte ligando Paranaguá a ela. Eu a atravessei, cruzando o rio Itiberê, algo que, na minha infância, parecia acessível apenas para barcos. Quando criança, eu julgava que ninguém morava nela. 

Portal na cabeceira da ponte Paranaguá-ilha dos Valadares 

O movimento de pessoas na ponte é intenso. É um vai-vem permanente pelo menos durante o dia. No meio da ponte, foi difícil parar para tirar fotos do rio. Pus o pé na ilha pela primeira vez em 2016, experiência que desejei desde minha infância. A urbanização tomou conta dela. A vegetação que eu via à distância é constituída basicamente de mangue. Há exemplares de mangue nos quintais. Nas muitas ruas, havia casas de madeira bem ao estilo do Paraná. Conheci muitas casas nesse estilo em Curitiba.

Fotografei aspectos da ilha. O curioso é que, no meio da ponte, vi embarcações que se dirigiam à ilha e mergulhavam no meio do bosque de mangue, em que predomina o mangue vermelho (Rhizophora mangue). Parecia uma cena amazônica em que os barcos mergulham em igarapés escondidos na mata. Examinando a ilha pelo Google Earth, o manguezal parece formar apenas uma casca que esconde o núcleo urbano dos olhos. Apenas nas confluências dos rios Itiberê com o dos Correias, aparecem manchas mais expressivas dessa tão notável vegetação. Entre o rio dos Correias, dos Almeidas e Caraguaçu, em ilhas ainda não urbanizadas, os manguezais dominam soberanos. Não conheço a consistência do substrato para vaticinar a urbanização dela. Mas uma ocupação humana intensa parece caminhar para lá. A menos que esse mundo de ilhas seja protegido por unidade de conservação. Na verdade, nem esse tipo de proteção garante a preservação dos manguezais. 

Bosque de mangue vermelho na franja da ilha dos Valadares 

Antes de deixar a Nova Paranaguá, expressão que me pareceu adequada para a ilha dos Valadares, parei num bar para comprar uma garrafa de água mineral. O dono me ofereceu um copinho de cachaça local, segundo ele uma das melhores. Bebi de um gole só. Atravessei a ponte rumo a Paranaguá. Na cabeceira dela, ocorria um festival da cachaça. Varia moças me ofereciam provas gratuitas. A da ilha dos Valadares bastava.  

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A COZINHA DA MINHA AVÓ

 Arthur Soffiati

Minhas duas avós eram muito diferentes. Djanira Perlingeiro Gonçalves, minha avó materna, nasceu em berço de ouro e continuou nele depois do casamento. Quando tinha ajudante, exigia dela serviço à francesa. Por não saberem bem do que se tratava, as pobres moças eram despedidas e nós voltávamos à cozinha dela, que consistia em alimentos preparado de forma improvisada. Ela gostava de ir à feira e um dos netos era escalado para acompanhá-la. A escolha costumava recair em mim. Mas, solteira, casada e viúva, ela raramente precisou ir para a cozinha.

Minha avó paterna, Felicidade Teixeira Soffiati, carinhosamente chamada de Dadinha, nasceu em Curitiba e lá se casou. Filha de índia e de português, sua vida exigia que trabalhasse. Não fora de casa, já que esse costume era raro para uma mulher nascida em 1903. Ela se dedicou ao lar e, nele, principalmente à cozinha. Era uma excelente cozinheira. Se fosse necessário, ela fazia tudo em casa, do café da manhã à ceia.

Meus avós transferiram-se par o Rio de Janeiro, mas seus corações e suas almas nunca deixaram Curitiba. Creio que minha avó aprendeu seus segredos culinários no Paraná e os desenvolveu no Rio. Quando comecei a estudar, aos nove anos de idade, meu colégio ficava perto da casa dos meus avós. Então, antes de ir para minha casa no Cosme Velho (Nasci e morei no bairro de Machado de Assis), eu passava na casa dos meus avós para fazer um lanchinho. Eles moravam na rua Visconde de Baependi, 117, no térreo. Uma porta dava acesso a uma saleta escura. Dela, passava-se à grande sala da casa. Tomava-se um corredor, passando-se pelas portas da cozinha e de dois quartos, para chegar a um quarto no fim dele transformado em saleta de refeições.

A mesa servida alimentava primeiramente os olhos. Era pão feito em casa, leite (de vaca, nada de desnatado), café de três tipos que só ela sabia fazer, manteiga, queijo e doces. Geralmente bolo de chocolate. Minha avó não era gulosa, mas estimulava os netos a serem. Ela dizia com seu forte sotaque paranaense que sei imitar até hoje: “Coma bastante, meu filho, para ficar grande, forte, gordo e bonito”. Para ela, uma criança gorda era uma criança saudável. E continuava: “tome café com leite e bolo de chocolate”, com os “es” bem pronunciados e de forma bem diferente do carioca. Falou assim até o fim da vida. Mesmo morando no Rio e em Campos, seus “es” nunca foram pronunciados como “is”.

Passar fim de semana com meus avós era algo maravilhoso. Meu avô falava pouco e minha avó falava muito. Para ela, tudo era perigoso para a saúde. “Coloque casaco, meu filho. Homem pega doença pelas costas. Mulher pega pelo pé.” “Não abra guarda-chuva dentro de casa nem deixe chinelo virado para cima” “Por que, vó?” “Faz mal” “Qual mal” “Não sei, meu filho. Só sei que faz.” Manga com leite matava.

Minha alegria era poder acompanhar minha avó ao Mercadinho Azul, na rua das Laranjeiras. Ali começava a arte culinária dela. Todos os “géneros”, como falava, eram cuidadosamente examinados. Olhava, apertava, cheirava e, se preciso, botava na boca. Eu tinha prazer em empurrar o carrinho cheio de compras de volta para casa.

Com 20 anos, prestando serviço militar, morei um ano com meus avós paternos. Ao dar baixa, ofereci meu certificado a ela, pois minha avó cuidava de mim com todo o carinho. Acordava cedo para fazer um espetacular café e preparava um farnel variado para que eu evitasse a comida do quartel, que era horrível. Na hora do rancho, eu me escondia para me deliciar com aquilo que minha avó tinha preparado para mim. Quando acampei na Barra da Tijuca por 15 dias, podendo voltar para casa só no final de semana, minha avó preparou muitos quitutes para eu sobreviver no mato. Casada com um militar, ela conhecia a vida de soldado. “Coitado do meu neto, vai passar muito mal nesse acampamento.” E chorava. Com muita facilidade, minha avó chorava. “Meu neto é tão bão e vai pra aquele acampamento.”

Sobrevivi para continuar saboreando os pratos da minha avó. As saladas eram sempre muito variadas e apetitosas. Os pratos principais engordavam só de serem olhados. E as sobremesas? Meu Deus, os doces da minha avó! Eram obras de arte e, ao mesmo tempo, artesanais. Nunca mais encontrei na minha vida um doce de abóbora como o feito pela minha avó. Abóbora com coco num ponto jamais alcançado por qualquer outra pessoa no mundo. Se ela fosse cozinheira e doceira profissional, ficaria famosa e rica. Mas minha avó era um espírito simples e iluminado.

Com muita emoção, encontrei hoje um livro de receitas dela. Na última capa, aparece escrito o seu nome. Trata-se de Novas receitas, de Rosa Maria, 1ª edição, de 1939. Como observou Gilberto Freyre em Assucar, livro também lançado em 1939 (do qual tenho um exemplar da primeira edição), a culinária portuguesa transformada no Brasil começou a sofrer influência inglesa e francesa a partir do século XIX. Muito emocionado, vou encadernar esse livro e incorporá-lo à minha biblioteca. Mas fico me perguntando qual seria a utilidade dele para minha avó. Como ela lidou com aqueles pratos franceses, como caviar à la russe, velouté colombine, sole au gratin, pintade Montmoreney, fonds d’artichaut garnis d’asperges, tomate farcies au foie-gras, pêches à la royale? Ela não precisava aprender nada, pois era capaz de ensinar tudo.

Meus avós voltaram a morar em Curitiba onde os visitei duas vezes, mas acabaram em Campos, lugar do qual não gostavam. Queriam ficar perto de seus parentes. Ela e meu avô estão sepultados no Cemitério do Caju. Sinto muita falta dos dois.



TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...