sexta-feira, 30 de abril de 2021

SOBRE O PARQUE TERMELÉTRICO A GÁS NATURAL DE SÃO FRANCISCO DE ITABAPOANA - RJ

 Arthur Soffiati

Historiador ambiental; professor associado 1 aposentado da Universidade Federal Fluminense


As mudanças de perspectiva nos projetos de desenvolvimento

    A crença num crescimento ilimitado com base em recursos naturais finitos – que prosperou com a Revolução Industrial do século XVIII – chegou ao fim em 1972, na Conferência Mundial de Estocolmo. O alerta ficou muito claro no livro Limites do crescimento (MEADOWS, D. L. Limites do crescimento. São Paulo: Perspectiva, 1973). Mesmo assim, a economia antiga não acreditou que houvesse limites e continuou a apostar no antigo paradigma. Na Conferência Rio-92, de 1992, consagrou-se o princípio do desenvolvimento sustentável baseado no relatório Nosso futuro comum (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso futuro comum. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1988). Todos passaram, então, a falar em sustentabilidade como se fosse uma expressão mágica. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), grupo de cientistas reunidos pela ONU, começou a demonstrar, em seus relatórios, que emanações derivadas das atividades humanas, notadamente de uma economia globalizada com base em combustíveis fósseis, estão alterando as condições climáticas que permitiram o próprio desenvolvimento de tal economia.

    Trata-se de um contrassenso: uma economia que se desenvolveu graças a condições climáticas apropriadas destruir essas mesmas condições com a queima de carvão mineral, petróleo e gás natural, além da queima de biomassa, inviabilizando assim a própria economia à base de carbono. A conversão para uma nova economia baseada em energia renovável tem sido lenta. Mais que a hidroeletricidade, cumpre valer-se cada vez mais da energia eólica, solar, das correntes marinhas, das ondas do mar e da biomassa. Cumpre agora que cada empreendimento empresarial reflita demoradamente se vai se valer das fontes fósseis de energia ou das fontes renováveis. A Conferência de Paris e a recente Cúpula do Clima alertam quanto à necessidade de converter uma economia suja em economia limpa. Sabe-se que não é possível desativar todo o sistema econômico de forma imediata e total. Nesse sentido, um novo empreendimento que opta pelo emprego de energia limpa contribui sobremaneira para a proteção das condições naturais favoráveis a uma vida confortável para a humanidade e para a natureza. Em vez de belas palavras, valem mais exemplos concretos.

 

A área escolhida para a instalação do Parque

    O Porto Norte Fluminense anuncia a implantação de um parque termoelétrico “composto por duas UTEs de ciclo combinado, a gás natural com potência de 1,7GW cada unidade, denominadas UTE Porto Norte Fluminense I e UTE Porto Norte Fluminense II; uma Estação de Regaseificação, compressão e descompressão de gás natural offshore; Unidade Processadora de Gás Natural - UPGE; Parque de Tancagem de Petróleo; um Gasoduto marítimo de 7km; um Duto de combustível marítimo de 7 km; Sistema de ancoragem sem cais para atracação de embarcações; Gasoduto terrestre de 7 km e Tubulação de abastecimento de água, e, por outro, para a proposição da execução de ações conducentes a caracterizar COMPROMISSOS com a SOCIEDADE de São Francisco de Itabapoana, no que respeita ao crescimento econômico em bases racionais, considerando as premissas de MINIMIZAÇÃO dos impactos ambientais advindos de sua implantação, ao tempo em que MAXIMIZASSE os benefícios oriundos da implantação do PARQUE TERMOELÉTRICO.”

    A área escolhida situa-se no município de São Francisco de Itabapoana em terreno fronteiriço às praias de Santo Antônio, Barrinha e Samambaia por ser ela deserta, ou seja, por não contar com habitações humanas e atividade pesqueira. A empresa de consultoria que elaborou o EIA-RIMA para o empreendimento parece não ter se detido muito na caracterização ambiental do município em geral e da área escolhida em particular.

    A zona costeira de São Francisco de Itabapoana é constituída por dois terrenos bastante distintos. O mais antigo é a Formação Barreiras, que se estende do fim da praia de Guaxindiba ao rio Itabapoana, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, mas que continua até o rio Itapemirim, no Espírito Santo. O mais novo é a restinga de Paraíba do Sul, que se estende da sua ponta setentrional na praia de Guaxindiba ao Cabo de São Tomé, já no município de Campos dos Goytacazes. Na parte interiorana de São Francisco de Itabapoana, encontram-se ainda terrenos do embasamento cristalino. A área escolhida para a instalação do empreendimento situa-se nos tabuleiros da Formação Barreiras. Embora plana e sem falésias, como se verifica a partir de Guriri, ela não é arenosa e porosa. Ao contrário, trata-se de terreno compacto que acumula água de chuva. A areia existe na parte da praia, como acontece em quase todas as praias.

 Aspecto do terreno em que se pretende instalar o empreendimento

    É equivocado entender que o território de São Francisco de Itabapoana é drenado apenas pelos rios Itabapoana, Guaxindiba e Paraíba do Sul. Entre o Itabapoana e o Guaxindiba, chegam ou chegavam ao mar os seguintes cursos d’água de norte para sul: lagoa Salgada, lagoa Doce (córregos barrados), Guriri, Tatagiba-Açu, Tatagiba-Mirim, Buena, Barrinha, curso sem nome, Manguinhos e Guaxindiba.

 

Território de São Francisco de Itabapoana. Legenda: restinga (amarelo); tabuleiros (ocre); cursos d’água: 1- rio Itabapoana, 2- lagoa Salgada, 3- lagoa Doce, 4- Guriri, 5- Tatagiba-Açu, 6- Tatagiba-Mirim, 7- Buena, 8- Barrinha; 9- sem nome, 10- Manguinhos, 11- Guaxindiba, 12- canal Engenheiro Antônio Resende, 13 a 17- córregos barrados naturalmente pela restinga de Paraíba do Sul

Córregos de Barrinha (no alto) e sem nome (embaixo) ampliados em imagem do Google Earth capturadas em 20/04/2021

 O de Barrinha drena exatamente a área escolhida. Ele é pequeno, tendo nascente na própria Formação Barreiras, assim como outros, e desembocava no mar. As atividades rurais separaram sua foz do corpo de seu curso. Não se pode caracterizá-lo como um canal aberto por ação humana para drenar terras destinadas à agropecuária. Seus meandros revelam tratar-se de um curso d’água natural. 

Detalhe do córrego de Barrinha em período de estiagem. Notar os meandros

     Inclusive, a pouca água que circula nele é aproveitada para abastecer um reservatório escavado no terreno onde se pretende erguer o empreendimento, embora a água do lençol freático também contribua para ele. 

 Reservatório de água no interior da fazenda Canaã

    Mesmo adulterado, com baixa vazão e com parte de sua água usada para reservação, as chuvas mais volumosas alagam o terreno, provocam seu transbordamento, forçam a sua barra e chegam ao mar, como aconteceu em 2007, 2008-09 e 2020. 

Abertura natural do córrego de Barrinha nas chuvas de 2020

    É de se perguntar como os técnicos experientes da empresa que formulou o EIA/RIMA não percebeu a existência desse córrego. Bastava procurá-lo no Google Earth. Existe, portanto, uma Área de Preservação Permanente dentro do terreno escolhido para o empreendimento por ser “vazio”. Examinando as formações vegetais nativas potenciais do município em questão, a APP se reforça.

    A vegetação nativa que recobria o território de São Francisco de Itabapoana no tempo da chegada dos portugueses eram a Mata Atlântica e a zonação de restinga. Acompanhando Veloso et alii, a Mata Atlântica assumia a feição de mata estacional semidecidual de terras baixas (VELOSO, Henrique Pimenta; RANGEL FILHO, Antonio Lourenço Rosa e LIMA, Jorge Carlos Alves. Classificação da vegetação brasileira, adaptada a um sistema universal. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1991). Ela recobria a embasamento cristalino, de baixa altitude, e os tabuleiros. A restinga era revestida pela formação pioneira de influência marinha, que alcançava aspecto arbóreo nas partes mais largas (Ibidem). Nos estuários, crescia a formação pioneira de influência fluviomarinha, popularmente conhecida por manguezal ou mangue (Ibidem).

    Os naturalistas europeus Maximiliano de Wied-Neuwied (WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: EDUSP, 1989) (1815), Auguste de Saint-Hilaire (SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1974) (1818) e Jacob Tschudi (TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980) (1858) deixaram preciosas informações sobre a cobertura vegetal nativa do Sertão das Cacimbas, antigo nome do território de São Francisco de Itabapoana. Os dois primeiros seguiram o mesmo caminho, atravessando o rio Paraíba do Sul da margem direita para a esquerda. Caminharam pela restinga, anotando a ocorrência de espécies vegetais nativas, sobretudo o botânico Saint-Hilaire. Chegando à praia de Manguinhos, havia uma trilha saindo da restinga e cruzando toda a mata estacional até a fazenda de Muribeca, nas margens do rio Itabapoana. Essa fazenda pertenceu aos jesuítas até sua expulsão do império colonial português, em 1759.

    Particularmente, a descrição de Maximiliano é notável a respeito da biodiversidade, sobretudo da avifauna. Dessa floresta toda, restou apenas a mancha florestal protegida pela Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba (EEEG). Existe ainda uma amostra residual significativa de vegetação de restinga nas proximidades de Gargaú. O manguezal se mostra mais expressivo na foz dos rios Itabapoana e Paraíba do Sul, mas em proporção menor nos córregos de Guriri, Buena, Manguinhos e Guaxindiba. Nesse último, ele assume dimensões maiores.

    Nas lagoas Salgada e Doce, nos córregos de Tatagiba-Açu e Tatagiba-Mirim e Barrinha, os manguezais desapareceram por barramento do estuário. Contudo, sempre que a água do mar ou do curso d’água rompe esse barramento e ambos se comunicam, propágulos de mangue encontram ambiente propício e fixam-se. Na foz do córrego de Barrinha, é comum encontrar-se plântulas de mangue tentando crescer. O fechamento da barra e o revolvimento do solo, contudo, não permitem a reconstituição do manguezal. Já foi registrada na foz de Barrinha um desenvolvido tronco de mangue branco (Laguncularia racemosa), posteriormente desarraigado.

    Atualmente, plântulas de mangue branco tentando crescer são habitualmente encontradas na foz semidesativada do córrego de Barrinha, reforçando a sua condição de Área de Preservação Permanente potencial.    

Exemplar de mangue branco em fase jovem na foz do córrego de Barrinha


 Propostas alternativas

Parque eólico e solar

    O Rima do empreendimento observa: “Merece destaque o fato de que o Município de São Francisco de Itabapoana oferece condições de produção elétrica eólica, visto que próximo ao empreendimento encontra-se maior parque eólico do Sudeste: o Parque Eólico de Gargaú, administrado pela empresa privada GESA – Gargaú energética S/A, que gera 28 megawats por dia, o que daria para abastecer uma cidade com cerca de 80 mil habitantes”. Por que o(s) empreendedor(es) não seguem o exemplo da GESA, deixando de lado a geração de energia a partir do gás natural para gerar energia a partir do potencial eólico? Estar-se-ia mudando o paradigma empresarial dos últimos 250 anos por um novo paradigma. Por um paradigma que se utiliza de uma fonte renovável de energia. A zona costeira do Norte Fluminense é plana, baixa e uma das mais aquinhoadas em potencial eólico do Estado do Rio de Janeiro. Nas águas rasas do mar em frente à área em que se pretende construir duas termelétrica a gás natural, várias torres para geração de energia a partir dos ventos poderiam ser instaladas, contando com área maior que no continente. Essas torres poderiam situar-se em ponto que não afetasse a possível atividade pesqueira entre elas e o continente e depois delas.

    A área da Fazenda Canaã seria destinada à instalação de placas para coleta de energia solar em ambas as margens do córrego de Barrinha com outras instalações necessárias e compatíveis com o ambiente. Não haveria problema com a captação de água no rio Itabapoana e com o duto de condução desde que não afetasse a Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba e sua zona de amortecimento.

    Não haveria também impedimento para a desova de tartarugas marinhas nas praias.

Restauração de sistemas hídricos

    Tanto o córrego de Barrinha quanto o córrego sem nome seriam restaurados, procurando-se restabelecer a ligação com o mar de ambos, a ligação do segundo com um manancial lênticos, de acordo com a figura do Google Earth mostrada acima, o restabelecimento dos meandros, o fechamento dos reservatórios abertos e o plantio de espécies nativas em suas margens, de acordo com o que preceitua o Código Florestal para Áreas de Preservação Permanente e com espécies nativas da região. A Estação Ecológica de Guaxindiba forneceria sementes de tais espécies.

 Restauração de manguezal

  Uma vez restabelecidas a foz de ambos os cursos d´água, os manguezais voltariam a se desenvolver nelas, mas a ajuda humana permitiria que eles se desenvolvesse mais rapidamente. A fonte de sementes (propágulos) seria os rios Itabapoana e Paraíba do Sul, onde se encontram as quatro espécies de manguezal que medram entre a Flórida e o rio das Ostras.

 Geração de emprego e renda

  Se os parques eólico e solar requerem pouca e especializada mão de obra, as pessoas do Quilombo de Barrinha poderiam perfeitamente ser preparadas para organizar um pequeno viveiro de mudas, para o plantio de espécies ao longo dos dois cursos d’água do terreno e em sua foz, para o trato necessário das mudas, garantindo seu crescimento e para os cuidados que devem ser dispensados aos bosques formados.

 Enriquecimento da biodiversidade

O desenvolvimento de bosques às margens dos dois córregos atrairia aves e pequenos mamíferos, além de peixes, que voltariam a povoar suas águas naturalmente ou serem introduzidos. Tudo de forma compatível com as placas coletoras de radiação solar, pois elas não afugentam a fauna. Os peixes poderiam ser uma fonte complementar de alimentação par os moradores locais. Quanto ao manguezal, sabe-se que se trata de um ecossistema produtor de alimentos a serem exportados para o mar e para montante do curso d’água. Ele é também o habitat de crustáceos que podem ser capturados para alimentação desde que respeitados os limites de sustentabilidade. O caranguejo-uçá (Ucides cordatus) é o principal deles.

Promoção social

Além da geração de empregos locais, atendendo preferencialmente os moradores do Quilombo de Barrinha, já reconhecido oficialmente (SIQUEIRA, João. Relatório antropológico da Comunidade de Barrinha. São Francisco de Itabapoana/RJ. Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 2009), o empreendimento daria preferência para a geração destinada ao município de São Francisco de Itabapoana e seria um exemplo do novo paradigma, que vem sendo proposto desde 1972: uso de energia limpa e renovável, melhoramento das condições ambientais e sociais, além de atendimento às necessidades locais e regionais.  

 

domingo, 25 de abril de 2021

O JOVEM SATURNINO DE BRITO

Arthur Soffiati

Encontrei recentemente um livro de Francisco Saturnino de Brito com o título “As secas do norte” (BRITO, Francisco Saturnino Rodrigues de. As secas do norte. Brasília: Secretaria Geral do Ministério da Educação, 1987), datado de 1913. Ele se refere ao início de sua carreira de engenheiro no Ceará. Saturnino de Brito estava então empregado na construção da ferrovia de Baturité. Ele não era apenas um engenheiro como os de hoje, mas um intelectual positivista apaixonado, o que não significa fanático. O positivismo aceita o capitalismo, mas acha que ele deve ser domado em favor dos desfavorecidos e dos interesses sociais. Creio que hoje ninguém mais é positivista. Entendo mesmo que o positivismo está ultrapassado.

Mas é interessante acompanhar o pensamento de um engenheiro jovem e nobre de caráter. Eu diria até que Saturnino de Brito se insere na tradição de José Bonifácio, Joaquim Nabuco e André Rebouças. Este último era engenheiro como ele e negro. A admiração de Saturnino por ele é enorme. Euclides da Cunha também comunga da mesma escola de pensamento, mas ainda não havia aparecido. Como Saturnino e Rebouças, ele também era engenheiro.


Chapada do Araripe

A partir da segunda metade do século XX, a engenharia e a arquitetura passaram a competir com a natureza para suplantá-la e domesticá-la. Saturnino de Brito trabalha sempre com a natureza, como se ela fizesse a maior parte do trabalho de um engenheiro. Ele não fala apenas da ferrovia, mas da importância das florestas para a acumulação de água no solo, para a fertilidade e para o bem-estar das pessoas. Ele propõe a formação de pequenas florestas no Crato para funcionarem como oásis. Propõe também a criação de pequenas represas próximas para colher água da chuva, pois as precipitações pluviométricas não são regulares nem bem distribuídas.


Baturité

As obras de engenharia nunca devem contrariar a natureza. Se é preciso barrar um rio, ele recomenda que a barragem permita o fluxo das águas a jusante e não na forma de torrente, mas suavizada por um escada para a água não correr de forma destruidora e para permitir que ela se infiltre no solo.

Mas o interessante é que ele não teme escrever na imprensa criticando colegas seus que já pensavam em obras faraônicas, sem se importarem com os recursos públicos. Ele criticava tanto as obras que não dialogavam com o meio quanto o desperdício de dinheiro. Existe no livro artigos em que ele critica um engenheiro por sustentar que, para uma ferrovia subir e descer a chapada do Araripe, era necessária uma obra faraônica ou obra nenhuma.


Crato

Claro que o tempo de Saturnino de Brito passou. Claro que, como engenheiro, ele faz projetos para transformar a natureza. Mas sua preocupação com ela é grande. Esta preocupação não existe mais nos engenheiros do DNOS, por exemplo.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O GASODUTO MACAÉ-AÇU

 Arthur Soffiati

Um novo projeto está em andamento. Trata-se do conjunto formado pela Unidade de Processamento de Gás Natural (UPGN) e pelo Gasoduto de Integração Norte Fluminense (GASINF). O gasoduto vai ligar Macaé ao Porto do Açu, onde alimentará uma, duas ou mais termelétricas (os empreendimentos de mercado não têm limites).

Já existem, para eles, Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto do Meio Ambiente (RIMA), em conformidade com a legislação vigente. Como de hábito, EIA e RIMA primam pela superficialidade e pela ostentação. Geralmente, as empresas de consultoria contratadas contam com técnicos jovens e que pouco conhecem, de forma vivencial, as realidades ambientais em que intervirão os projetos de “desenvolvimento”. Assim, a ostentação fica por conta de informações que não vêm ao caso, como forma de demonstrar conhecimento. O gasoduto cortará a planície e não a serra. Passará por dois sistema hídricos, e não por vários. Não vem ao caso também discorrer sobre as diversas formações vegetais nativas da região norte-noroeste fluminense, pois o gasoduto vai se estender sobre ou sob as formações pioneiras de influência marinha (restingas) e fluvial (planície aluvial alagada ou alagável).

 

Energia renovável X não-renovável. A empresa de consultoria que elaborou o EIA-RIMA para o Porto do Açu reconhece que vivemos novos tempos. As fontes não-renováveis de energia, tão usadas com euforia a partir da primeira revolução industrial, mostraram à economia de mercado que são finitas e que causam alterações perversas ao ambiente. A recente Cúpula do Clima promovida pelos Estados Unidos nos dias 22 e 23 de abril mais uma vez enfatizou a necessidade de mudar a matriz energética. Existem nove grandes ameaças criadas pela economia de mercado para o planeta, mas as mudanças climáticas parecem ser as únicas. Em vez de carvão, petróleo e gás natural, contamos com o sol, os ventos, a energia das marés e das ondas, a biomassa e a força das águas dos rios. Esta última também está sendo questionada. As barragens construídas para aumentar a potência da energia hidráulica afetam cerca de 2/3 dos rios do mundo, segundo relatório recente da ONU.

Valer-se de fontes não-renováveis de energia é insistir no passado. É muito mais fácil, no Brasil, passar para as fontes renováveis de energia. Na China e nos Estados Unidos, por exemplo, onde essas fontes são responsáveis pelas duas maiores emissões de gases causadores do aquecimento global, a conversão para fontes renováveis é mais difícil. E não apenas: a planície goitacá apresenta um grande potencial em energia solar e eólica. O porto do Açu podia muito bem construir cata-ventos dentro do mar, fora do canal de acesso ao porto e ao estaleiro. Poderia muito bem instalar placas de captação solar nas suas dependências. Ele já apresenta o vício de origem que foi instalar-se numa restinga nova, baixa e sujeita a fortes processos erosivos, destruindo não apenas a biodiversidade como também uma economia rural diversificada, produtora de alimentos e mantida por pequenos produtores. Uma das forma de compensar esses impactos seria usar energia renovável. Mais ainda, o complexo podia mostrar que as mudanças necessárias para os novos tempos estão sendo promovidas aqui e não nos Estados Unidos, na União Europeia, em Israel, na China, no Japão.

Mas (sempre entra em cena uma conjunção adversativa) a energia que o complexo industrial-portuário do Açu precisa tem de ser firme e constante. Portanto, esqueçamos toda essa conversa de cúpulas climáticas e de ambientalistas e caiamos na real. O gás natural está sendo explorado pela Petrobras na bacia de Campos, o complexo do Açu está bem perto. Construir um gasoduto para aproveitar esse gás é bem mais fácil que instalar centrais eólicas e solares. Fiquemos com o gás e com o gasoduto. Esqueçamos o futuro e fiquemos com o passado.

 

Dutos no norte fluminense. A planície fluviomarinha do norte fluminense e a plataforma continental que a cerca estão saturadas de dutos que transportam petróleo e gás natural das unidades produtoras para o continente. De Cabiúnas, depois do tratamento necessário, o gás é distribuído para norte, leste e oeste. O território da baixada está saturado de gasodutos. Nem sempre, eles demonstram ser úteis à economia regional como se propala das audiências públicas necessárias para a aprovação oficial dos projetos. Mais que a aceitação da população regional, os empreendimentos promovem audiências públicas em busca de assinaturas, de legitimação.

Examinamos de perto os gasodutos Cabiúnas-Campos e os gasodutos urbanos. Os técnicos insistem em diferenciar gasoduto de rede de distribuição urbana. A questão é que o gás é conduzido em dutos de grande e pequeno diâmetro. Parece que o gasoduto Cabiúnas-Campos é subtilizado. Ele foi construído com o objetivo precípuo de fornecer gás para a indústria cerâmica de Campos para que ela deixasse de consumir lenha como combustível. Grande parte das unidades produtoras da indústria ceramista continuou a usar lenha para fugir do controle do fornecimento de gás. Hoje, 20% das unidades da indústria cerâmica dá exemplo ao Porto do Açu, adotando o sol como fonte de energia. A perspectiva é que 40% passem a ser movidas por energia solar. Os pequenos dão bom exemplo a se ajustarem aos novos tempo, embora o polo ceramista dependa da argila, recurso finito. Os grandes, como o complexo do Açu, insistem nos combustíveis fósseis.

As redes de distribuição também foram questionadas no Ministério Público Estadual quanto a sua segurança. Os técnicos asseguraram que elas são seguras. Não há nada a temer. Recentemente, uma obra na calçada do Edifício Salete, em Campos, perfurou um duto, provocando intenso vazamento de gás. Os Bombeiros chegaram logo. Em seguida, veio a Companhia de Gás. Não havia nenhum registro que permitisse fechar a condução de gás nas redondezas. Com certo trabalho a companhia fornecedora vedou o vazamento.

Os técnicos dirão que um duto não afeta sequer a paisagem por correr no subterrâneo. Mas a multiplicidade deles certamente aumenta o risco de acidentes. São riscos cumulativos e exponenciais.

 

O novo gasoduto.  O GASINF terá seu ponto inicial em Macaé, passará pelo Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba (no mínimo em sua Zona de Amortecimento), na zona urbana de Carapebus, ao norte da lagoa Feia, cruzará vários cursos d’água e várias rodovias (sendo a Campos –Farol a mais movimentada delas) e alcançará as dependências do complexo industrial-portuário do Açu. Ao norte da lagoa Feia, atravessará uma área úmida tanto na estação da estiagem quando na estação das cheias. Trata-se de um terreno rico em turfa.

O procedimento para a escolha do traçado parece ser o seguinte: define-se o traçado desejado e depois, a pedido da lei, são concebidos traçados alternativos ruins para que a escolha recaia no traçado original. De fato, o traçado pelo norte da Br-101 não é bom tanto quanto o traçado pelo sul da lagoa Feia. Não se sugere nenhum traçado, pois parte-se da premissa que o complexo do Açu podia muito bem recorrer à energia eólica ou solar.

O traçado pelo norte da lagoa Feia não vai requerer supressão da vegetação nativa porque ela já foi removida há muito tempo pelas atividades tradicionais da agricultura e da pecuária. Mas cabe observar a frequência da tabebuia nessa parte da lagoa Feia. Ela é bem característica da grande lagoa na sua margem norte. Considerem-se também o caso de enchentes e de corrosão de materiais. Quilombo é uma localidade que pleiteia, há muito tempo, o reconhecimento como comunidade quilombola.

O que se nota é a inexperiência da equipe técnica. Para conhecer uma região, é preciso viver nela pelo menos um ano. Mas as empresas de consultoria não dispõem de tempo para isso. Elas precisam elaborar EIAs-RIMAs para empreendimentos em vários locais do Brasil, em contextos ambientais os mais diferentes. Não se percebe no RIMA qualquer conhecimento da literatura produzida secularmente na região. Não se recorre a Saturnino de Brito, a Hildebrando de Araujo Góes ou mesmo aos relatórios do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), que estudou a fundo a planície para bem destruí-la.

Não se percebeu que a área estudada par o empreendimento é irrigada por duas bacias hídricas: a do Paraíba do Sul, que corre em nível ligeiramente mais alto que a planície em sua margem direita, e a do Ururaí, formada pelos rios Imbé e Urubu, lagoa de Cima, rio Ururaí, lagoa Feia, rio Macabu e agora pelo canal da Flecha. Não se menciona a relação dessas duas bacias pela superfície e pelo lençol freático. As águas da primeira bacia vertem para a segunda, mas não o contrário. Por que, então, tratar sub-bacias como bacias? Bacia de Macaé está certo. Bacias de Carapebus, Macabu, Prata, Preto/Ururaí, Nicolau, Pau Fincado e Açu estão dentro de uma bacia. Iquipari em outra bacia. Trata-se de uma questão que exige mais discussão. É que a equipe técnica deve ter detectado cursos d’água por drones e ter elaborado essa classificação artificial.   

Quanto aos aspecto social, sabemos muito bem que a instalação de um duto gera pouquíssimos empregos. Terminadas as obras, os empregados na fase de instalação perdem seus postos de trabalho. Na fase de operação, poucos empregados são suficientes. Em relação aos programas propostos, sabemos muito bem que se trata de um expediente para impressionar a população. Não tanto a ela, mas à comunidade científica independente. Ninguém mais acredita em medidas mitigatórias, programas e manutenção de Unidades de Conservação.

São essas as considerações que apresento. Se forem consideradas superficiais, deve-se levar em conta que elas se referem a um estudo superficial. 

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