sábado, 17 de abril de 2021

DISCUTINDO O TRIUNFALISMO

 Arthur Soffiati

            No final da vida, Arnold Toynbee acreditava que uma civilização nasce de um sonho, de um desejo de elevação espiritual de um membro seu ou de toda a comunidade. Essa concepção era bem contrária a que ele formulara antes: as civilizações se confundem com violência. Há muito sangue em suas origens e em toda a sua trajetória. Dirão os simplistas que o homem é violento por natureza. Admitamos que sim, que ele, em seus primórdios, era como um felino, que precisava matar para comer. Que precisava lutar contra integrantes de outros grupos humanos por territórios necessários à sua sobrevivência. Perto da guerra da Síria, para só tomar um conflito atual, essas escaramuças paleolíticas eram insignificantes.

            Com a invenção da agricultura e do pastoreio, passo decisivo para as primeiras civilizações, os conflitos tornaram-se mais mortíferos. Os povos sedentarizados pela domesticação de plantas e animais lutavam contra outros nas mesmas condições e contra aqueles que continuaram extraindo seu alimento da natureza. As armas se desenvolveram com o nascimento das civilizações. O próprio Toynbee mostrou o papel das guerras para as civilizações no livro “Guerra e civilização”. Ele mesmo ficou chocado com as representações visuais de Eanatum, rei de Lagash, contra a cidade de Umma, na Suméria, e de Naran-Sin, de Acad, contra os povos da montanha. Ele condenou como imoral o saque do fundo de Delos por Atenas para se tornar a capital grega da cultura. O fundo tinha por finalidade fornecer recursos para a defesa do mundo grego contra os ataques persas. Um professor meu no curso de história dizia que o roubo do fundo por Atenas tinha um bom propósito: desenvolver a cultura. Valeu a pena. Esse professor se dizia marxista.

            Mas o sangue não escorre apenas dos corpos dos inimigos, como também daqueles inimigos que foram capturados e escravizados. Esparta se transformou numa verdadeira máquina de guerra por ter vencido e escravizado outros povos da península do Peloponeso. A vigilância sobre eles exigiu dos espartanos um regime militarista. A construção das pirâmides do Egito implicou na morte de muitos egípcios pobres. O sangue foi a argamassa de muitas obras de arte, sobretudo urbanísticas e arquitetônicas.

            Mas Toynbee, como muitas outras pessoas, acabam reconhecendo a beleza de obras culturais que, para serem produzidas, exigiram destruição da natureza, exploração da população, escravização e mortes. Gosto da civilização chinesa. Sua cultura tradicional transpira paz e tranquilidade. Contudo, por trás dessa serenidade, pulsa a violência. E, em todas as civilizações, emergem vozes defendendo a paz, a reconciliação, o perdão, a elevação espiritual.

O budismo se levantou contra o sistema hinduísta de castas e se tornou uma religião oficial da China, do Japão e de outros países do oriente. Hoje, ele prega a felicidade individual e a prosperidade material. O jainismo manteve-se na Índia, procurando uma reconciliação de humanos e natureza, sobretudo animais. Exigiu sacrifícios humanos para a construção de seus templos. O budismo tibetano também. Não sacrificava uma minhoca por ser uma criatura com alma. No entanto, os palácios e os templos custaram sacrifícios e mortes. O taoísmo é um dos protestos mais sublimes contra a destruição da natureza, contra a exploração dos humanos e a favor da paz. No entanto, houve imperadores e guerreiros taoístas.

No mundo romano, a dor espiritual causada pelo choque de culturas levou pensadores a refletir sobre o mundo. Pirron concluiu que não existe verdade metafísica. Cada povo cria a sua religião e acredita nela. Nenhuma, porém, consegue demonstrar que detém a verdade. Sejamos céticos, portanto. Epicuro chegou à conclusão de que não se deve dar murros em ponta de faca. A vida é só uma. A amizade, portanto, é o maior bem que se pode cultivar. Se não podemos convencer governantes e governados quanto à inutilidade de um mundo de conflitos, que os pacifistas construam seu próprio mundo em retiros. Que criem jardins de recolhimento. A mais sublime concepção oriunda do belicismo de Alexandre foi o estoicismo, fundado por Zenon. Devemos atravessar a vida sem grandes paixões. Nada de orgulho pelo eu fizemos. Suportemos a dor. Morramos com dignidade. Não sem razão, o estoicismo foi um dos principais alvos do cristianismo. Ele era entendido pelos cristãos como uma postura passiva e pessimista diante do mundo. Mas não havia o que temer do estoicismo. Ele não conquistou as massas como o cristianismo. Ficou restrito a homens de letras, a pensadores, a filósofos. O único livro de autoajuda que me sensibilizada é “Meditações”, do imperador romano Marco Aurélio. Ele não escreveu para os outros, mas para si mesmo, como um manual de como viver bem. No entanto, como imperador, ele cumpriu estoicamente seu dever de conquistar e matar.

Violência, exploração, escravização e morte são a argamassa das civilizações e eu, como historiador, não sei o que fazer com tanto sofrimento. As maravilhas que me encantam podiam me encantar mais se não me viesse à mente toda a dor que elas provocaram. E terá valido tanto sofrimento para a criação de obras que estão se deteriorando pela ação do tempo de mãos humanas? De todas as civilizações, nenhuma superou a ocidental a partir do século XV da era cristã.

            Já em seu período de formação, a civilização ocidental cristã tentou se expandir. A primeira onda expansionista foi promovida pelos escandinavos entre os séculos VIII e XI. Tendo como base o norte da Europa, esses povos ligados por uma cultura própria bastante forte e ainda não muito cristianizados conquistaram terras dentro do próprio continente europeu, na Rússia e na África, chegando mesmo à América do Norte, onde instalaram colônias na Groenlândia e no Canadá. Houve guerra. Como ainda não havia arma de fogo, eles foram expulsos da América pelos povos nativos. 

            A segunda onda expansionista processou-se com as Cruzadas, entre os séculos XI e XIII, em direção ao Oriente Médio, ocupado pelos muçulmanos. Pretexto: libertar o Santo Sepulcro do domínio islâmico, o que significava um grande apelo popular. Motivo real: romper o monopólio do comércio oriental pelo Islã. Veneza foi a grande beneficiária do movimento cruzático. Se os cristãos conseguissem manter seu domínio na Palestina, o caminho para a Índia poderia ter sido alcançado por terra. Houve guerras e os europeus perderam.

            A terceira tentativa começou em 1402 com o início da conquista do arquipélago das Canárias pelo espanhóis. As ilhas foram secularmente colonizadas pelos guanchos, povo em fase neolítica que alcançou as ilhas a partir do norte da África. Embora não contando com as armas europeias, os guanchos resistiram por quase um século aos invasores espanhóis. Essa luta continha todos os ingredientes das conquistas europeias posteriores: crença na superioridade do europeu sobre a natureza e sobre outras culturas, monocultura, grande propriedade e escravização de outros povos.

            Os portugueses iniciaram sua expansão em 1415, com a conquista de Ceuta no norte da África. Assim, seguindo rotas diferentes, espanhóis e portugueses abriram caminho para a dominação europeia do mundo e para a construção da maior globalização conhecida pela humanidade. Houve muita violência física e simbólica. Tomando apenas o caso de Vasco da Gama como exemplo, ele castigava povos de outras culturas lhes cortando orelhas, narizes, mão e pés. Afundou um navio repleto de homens, mulheres e crianças que voltavam de Meca. Por outro lado, a imposição do cristianismo também violentava as outras culturas. França, Holanda e Inglaterra lutaram contra espanhóis e portugueses para tomar suas conquistas. Então, havia violência contra povos não europeus e violência entre os europeus.

            Poucos contemporâneos dessa primeira fase da globalização ocidental entendiam como violentos esses métodos. Bartolomeu de las Casas condenou o genocídio dos nativos americanos praticado pelos espanhóis. No seu relativismo, Montaigne reconheceu que as culturas diferentes da cristã ocidental deveriam ser respeitadas. Os jesuítas protegiam os indígenas dos escravistas, mas procuravam cristianizá-los para inseri-los na economia de mercado europeu. Era natural que povos com cultura distinta da europeia adotassem a cultura imposta apenas na superfície e continuassem a praticar a sua. Manoel da Nóbrega queixou-se que nativos brasileiros frequentavam a missa, comungavam, iam para sua aldeia e participavam de rituais antropofágicos. Esse dualismo cultural será observado em vários lugares. E todas as nações europeias foram violentas.

            Tomo dois exemplos que parecem incompatíveis, mas não são. O bispo José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, no século XVIII, contestava Montesquieu com sua própria argumentação. O pensador francês afirmava que a superioridade dos europeus residia no seu espírito associativista e na sua organização social regida por leis. Azeredo Coutinho contestava o pensador sustentando que plantas, animais e humanos tropicais eram superiores ao europeu porque arrostavam as ameaças de forma solitária. No entanto, entendia que os povos não europeus deveriam ser civilizados pela cultura europeia. Ou seja, que todos eles deveriam ser europeizados. Mas defendia caminhos diversos para a aculturação. Os nativos da América deveriam ser incorporados ao mundo europeu pelo desmatamento e pela pesca, atividades que já conheciam. Os africanos, por seu turno, deveriam ser europeizados pela escravização. Azeredo Coutinho era considerado um intelectual no mundo europeu periférico.

            O segundo exemplo vem da posição de Marx sobre a rebelião dos sipaios sob a dominação britânica na Índia. Os sipaios eram soldados indianos que serviam no exército da Companhia das Índias Orientais sob a ordens de oficiais britânicos. A rebelião desses soldados expressava o descontentamento dos indianos em geral com a dominação. Ouvi de professores conservadores, em Campos, que os sipaios cortavam os seios de mulheres ocidentais em rodela. A rebelião foi massacrada pelos britânicos com o apoio de Marx. O pensador escreveu que só se consegue atingir o comunismo partindo de um contexto ocidental ou ocidentalizado e que a burguesia prepara o terreno para o comunismo ao construir uma base ocidental. Marx entendia que os indianos eram ainda muito atrasados por adorarem macacos e outros animais. O exército britânico deveria mesmo massacrar os revoltosos. Embora perdão apenas não baste, o papa vem condenando os excessos cometidos por cristãos no passado. Os marxistas estariam dispostos a pedir perdão em nome de Marx?

Novamente, vem minha pergunta: como me posiciono diante de tanta incompreensão, de tanta injustiça e de tanta violência cometida no passado por todas as civilizações e principalmente pelo ocidente? O ocidente demonstrou desprezo pelas culturas de outros povos, com raras exceções. Escravizou outros povos com o apoio de quase todos, inclusive da Igreja. Até mesmo negros escravizados chegaram a praticar a escravização. Os europeus forçaram os povos pioneiros, em todo o mundo, a abandonar suas culturas ancestrais em nome da cultura ocidental. Até mesmo culturas resistentes, como a japonesa, a chinesa, a hinduísta e a islâmica converteram-se ao ocidente de alguma forma.

            Hoje, num mundo globalizado pelo ocidente, os próprios dominados assumiram posturas ocidentais. O governo chinês sufoca culturas diferentes dentro do seu domínio político, como nos casos do Tibete, dos Hui e Iugures. Dentro da África, as pré-ocidentais guerras de etnias ganharam violência inaudita, como no caso da guerra de Ruanda. Lembro o livro “Floresta é o nome do mundo”, de Ursula K. Le Guin. Nele, os humanos invadem um planeta, depois de destruir a Terra, habitado por um povo pacífico que desconhecia a guerra e cultuava as florestas. Os humanos começaram a destruir as florestas, a estuprar as fêmeas (vistas como animais) e a matar os machos. Os nativos do planeta aprenderam a ser violentos com os terráqueos e passaram a atacá-los.

            Todos nós, hoje, somos herdeiros de um mundo preconceituoso, escravizador e violento. Portugal vive atualmente mais um momento de questionamento sobre seu passado colonial. A morte recente de Marcelino da Mata reabriu a ferida. Nascido em Guiné-Bissau, ele lutou ao lado dos portugueses contra a descolonização e cometeu muitos crimes. Ele foi condecorado como um dos maiores heróis de guerra. Para seus inimigos, o vírus sars-cov 2 praticou justiça ao matá-lo. Por esses dias, li uma reportagem sobre a matança praticada por jovens moçambicanos que se intitulam guerreiros do Estado Islâmico na província de Cabo Delgado, extremo norte de Moçambique. Especialistas dizem se tratar de uma pseudo-guerra religiosa, sendo, na verdade, resultado da ausência de Estado. Logo apareceram saudosos do colonialismo defendendo o papel exercido por Portugal.

            O que fazer com o passado do ocidente? O que fazer com o passado dos povos ocidentalizados? Existe uma linha que deseja a desglobalização, com os países voltando ao que eram antes da expansão europeia. Esta posição é defendida por ultraconservadores e reacionários, como Olavo de Carvalho e Ernesto Araújo, saudosos de um cristianismo católico medieval (o termo não me agrada). Desglobalizar a esse ponto significa devolver o Brasil aos povos pioneiros. Além de ser algo inviável, trata-se de uma contradição. A maioria entende que a globalização é irreversível, mesmo reconhecendo todos os seus males. Japão, China e Índia não querem voltar ao estado em que existiam antes da dominação ocidental. Basta atentar para a vitória de Nehru sobre as ideias de Gandhi. Existe ainda a proposta promissora de Edgar Morin sobre a desglobalização parcial. Há um excesso de globalização. Os países podiam promover uma desglobalização parcial de seus países.

            Mas resta ainda o peso do passado. Hoje, condenamos a opressão sofrida pelas mulheres, algo que ainda está muito presente. Condenamos a escravização de africanos e reconhecemos a dívida que existe em relação a negros pobres e ricos. Condenamos o extermínio de povos pioneiros e a expropriação de suas terras, embora as poucas nações pioneiras que ainda existem já estejam bastante aculturadas e continuem a sofrer ameaças de perdas que vão das terras à vida. Não podemos apagar o passado. Hoje, reconhecemos que o diferente do europeu é humano. Mas ainda existem os defensores da supremacia branca. Reconhecemos as atrocidades cometidas pelas religiões, sobretudo as monoteístas. Mas ainda existem aqueles que consideram a sua religião como superior as outras e negam a ciência.

            Constitui-se agora um novo sujeito sistematicamente massacrado: a natureza. Ela sofreu agressões de todas as civilizações, mas nenhuma foi e é mais agressiva que a ocidental globalizada. Os humanistas, que defendem os direitos da mulher, dos negros, dos pobres e dos inúmeros gêneros hoje reconhecidos, ainda continuam com uma visão triunfalista sobre a natureza. Condenamos o passado, embora não possamos regressar no tempo e mudá-lo, mas cultivamos também as nossas crueldades. Somos individualistas, imediatistas e consumistas. Em momentos de crise global, como o que vivemos, adotamos a postura mesquinha do nacionalismo. E estamos perdendo a integridade. Sentimos vergonha da nossa postura, mas não a mudamos.

            Reconhecemos hoje as injustiças e as violências cometidas no passado. Não podemos interferir nele, mas podemos combater o que dele chegou até nós. Podemos evitar novas injustiças e crueldades. Mas devemos conhecer a realidade em que vivemos e tomar ciência de que se trata de um estrutura gigantesca e resistente contra a qual devemos travar luta sem trégua. Acima de tudo, devemos também cultivar a capacidade de compreender e trabalhar para promover mudanças sempre reconhecendo nossos limites. As gerações futuras também nos julgarão.

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 03, 10 e 17 de abril de 2021

 

TEMPESTADE NO DESERTO

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