segunda-feira, 1 de abril de 2024

A OCIDENTALIZAÇÃO DA AMAZÔNIA

 Arthur Soffiati

            Não é possível explicar o processo de integração da Amazônia à Europa ocidental sem considerar que o grande bioma do norte transcende as colônias e depois Estados Nacionais instalados no imenso complexo fluvial e florestal. Antes da chegada dos europeus à América, já havia intensa ligação entre o que atualmente se conhece como Caribe e a grande Amazônia. Essa ligação continuará com os europeus. Cristóvão Colombo nunca atingiu terras continentais dos atuais Estados Unidos. Em suas viagens, ele tocou ilhas do Caribe e a costa setentrional da América do Sul. Portugueses, espanhóis e franceses circularam por essa grande região.

            Em 1542, o espanhol Francisco Orellana navegou o grande rio Amazonas em sua extensão longitudinal. Ele deu notícia dos povos nativos que a ocupavam. A colonização europeia foi, ao norte da América do Sul, mais difícil que em outras partes. Ao mesmo tempo em que a rede fluvial facilitava a penetração, a grande floresta representava um ambiente hostil para os europeus. Suas técnicas e tecnologias não eram adequadas para a conquista e colonização de território tão distinto dos da Europa.

            Mesmo assim, os estranhos dizimaram as populações amazônidas com suas doenças e armas entre os séculos XVI e XVIII. Nesses três séculos, inúmeras foram as expedições à Hileia. As mais importantes foram comandadas por Pedro Teixeira (1638-1639), registrada por Gaspar de Carvajal e Cristóbal de Acuña, de La Condamine (1743) e de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783 a 1792).

 
Indígena Muri – Expedição Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792)

 

            Os viajantes passavam pelo grande território. Os missionários católicos se estabeleciam na floresta e empreendiam um paciente trabalho de ocidentalização dos povos indígenas. As transformações foram profundas. As línguas europeias e o cristianismo foram difundidos, embora traduzidos para as diversas culturas locais.

            Aos poucos, a Amazônia foi sendo incorporada ao mundo europeus. No século XIX,  fase das expedições científicas, muitos naturalistas percorrem aquele mundo de água e de floresta. O mais destacado foi Humboldt, que não pôde penetrar em terras brasileiras devido ao monopólio colonial. Mas ele empreendeu uma fabulosa incursão à Amazônia sob domínio espanhol. A transferência da capital do império colonial português de Lisboa para o Rio de Janeiro favoreceu a entrada de naturalistas europeus na Amazônia portuguesa.

            Muitos foram os naturalistas que estudaram a floresta, merecendo destaque os gigantes da ciência Martius e Spix, assim como Langsdorff acompanhado dos artistas Aimé-Adrien Taunay e Hércules Florence.  Numerosos foram os naturalistas que percorreram a região e que ainda a percorrem. A Amazônia e a Mata Atlântica sempre foram os grandes atrativos para cientistas europeus. Mas essas pessoas não vinham apenas com interesses científicos. Havia também interesses econômicos. 

Expedição Langsdorff

 

            Belém se tornou a porta de entrada para a globalização ocidental na Amazônia. A colonização desta vasta área foi distinta da do nordeste, leste e sul do Brasil. No norte, a língua portuguesa se assemelha mais à falada em Portugal. A segunda pessoa do singular é empregada de forma correta. Várias cidades foram batizadas com nomes lusitanos, como a própria Belém, Santarém, Óbidos e Soure.

Núcleos urbanos em moldes europeus na Amazônia parecem fora de lugar. E estão mesmo fora de lugar, como o teatro de Manaus, a estrada de ferro Madeira-Mamoré, a rodovia transamazônica, a Belém-Brasília, a Cuiabá-Porto Velho, a Cuiabá-Santarém, a Porto Velho-Manaus, a Manaus-Boa Vista e outras mais. A rede hídrica é bem mais adequada ao ambiente fluvial que as rodovias e ferrovias. A Madeira-Mamoré foi engolida pela floresta. As rodovias também correm o mesmo risco. 

Teatro de Manaus 

Há barragens e empreendimentos diversos incompatíveis com a Amazônia e ecologicamente insustentáveis. O mais agressivo é o desmatamento, com o avanço da pecuária. Nesse contexto, insere-se o arquipélago de Marajó. Quem visita Camará, Salvaterra e Soure perceberá que estamos agora numa Europa mestiça fora do continente europeu. Ao contrário do que se pensa, o búfalo, tão comum na ilha de Marajó, é indiano. Assim como a mangueira, também muito difundida em Belém. Em Soure, as igrejas evangélicas se multiplicam ao lado das igrejas católicas.

Soure é uma cidade planejada. Ela tem o formato de um tabuleiro. As ruas são numeradas como em Brasília e Nova York. Embora o comércio seja restrito, a economia de mercado domina a ilha. Assim também o turismo. A argila e o couro dominam as vendas. Do búfalo vêm o trabalho físico, sandálias, cintos, chapéus. Da argila, vêm artefatos que imitam a cerâmica marajoara, mas sem o espírito dessa. Inclusive, os comerciantes encenam transes xamanistas para enganar turistas. Está se cometendo um grande equívoco em só considerar o lado da grande economia como globalização. Esta existe também, e principalmente, nos detalhes.

Igreja de São José – Soure, Marajó, Belém do Pará 

            É superficial o entendimento de que a globalização ocidental ou a ocidentalização do mundo limita-se à dimensão da grande economia. Trump se elegeu com a promessa de retirar os Estados Unidos da globalização, pois ela prejudica a economia interna do país, gerando a fuga de empresas e causando desempregos. A Inglaterra, uma das origens da globalização, imagina ter saído dela com o Brexit. Ela pode ter deixado a União Europeia, não a economia capitalista, a coluna dorsal da globalização.

            A ocidentalização não se restringe a propagar pelo mundo o modo de vida europeu. Ela se caracteriza pela adoção desse modo em lugar dos tradicionais. Esta adoção pode ser imposta ou aceita por iniciativa própria do país não ocidental. A atuação ambiental do ocidente no planeta promoveu um desarranjo global. Levou deliberadamente plantas e animais de um continente para outro.

            Mas o controle da economia foi mantido pelos países ocidentais por meio da dominação e colonização de outras terras. Existem historiadores se esforçando para mostrar que a China tinha todos os elementos para promover uma revolução industrial no fim do século XVIII, assim como a Inglaterra. Mas não promoveu. Por que? Faltava uma condição à China: ela não era capitalista. É ocioso construir histórias hipotéticas.

            Nos mínimos detalhes, traços da globalização ocidental podem ser encontrados na China pré-ocidental. A cana e o café no Brasil foram trazidos do oriente pelos europeus. A seringueira, o cacau, o tomate, o tabaco, a batata, nativos da América, foram espalhados pelo mundo por ação europeia. Aquele inocente capim-pé-de-galinha que você encontra entre os paralelepípedos de uma rua veio da Ásia. Muitas espécies de forrageiras vieram da África. A barata e o rato vieram como clandestinos nos porões das caravelas, assim como os germes de doenças vieram ocultos nos organismos de europeus. 

Mangueira da Índia no Brasil 

            Algas, o mexilhão-dourado, o mosquito-da-dengue e o coral-sol vieram incrustados em cascos de navios ou dentro deles, do seu lugar de origem para o mundo todo. Ninguém quis trazê-los, mas eles pegaram carona escondidos. Hoje, podemos usar aquela expressão muito comum para o mundo: tudo junto e misturado. As espécies de uma região invasoras de outras concorrem com as nativas e vencem. Com isso, a biodiversidade se empobrece. A tendência é definir-se uma biodiversidade pobre nas esferas do planeta de acordo com as condições climáticas.

            Mas a globalização se imiscui nos interstícios do mundo. O mais isolado rincão da Terra tem marcas do ocidente e do mundo ocidentalizado. Elas estão nas narinas de uma tartaruga na forma do canudinho que usamos para ingerir refrigerantes e outros líquidos. Elas estão no estômago de peixes, que ingerem plástico confundindo-o com alimento. Aliás, o plástico é onipresente hoje. Entre a costa pacífica dos Estados Unidos e o arquipélago do Havaí, encontra-se uma ilha formada por milhões de objetos plásticos com a dimensão de quatro estados do Rio de Janeiro.

A pequenina ilha Henderson, perdida no meio do oceano Pacífico e completamente desabitada por seres humanos (algo raro no mundo globalizado), apresenta a maior densidade de plástico do planeta. Ela fica no meio de uma corrente oceânica que transporta o lixo da civilização global. Em todas as praias da Terra, o lixo é um componente presente. Mesmo que ninguém o lance fora, ele chega por via marítima.

Tive essa experiência na ilha de Marajó. Aliás, tive duas na fazenda São Jerônimo. Percorremos 1.600 metros em lombo de búfalo. Depois, continuamos o trajeto a pé por entre majestosos manguezais acompanhados de guias. Numa das praias da fazenda, topamos com acúmulos de lixo plástico por mais de uma vez. Os guias se apressaram em dizer que não foram visitantes os responsáveis por aquele lixo, pois eles protegem a “ecologia” na fazenda. Tranquilizei-os dizendo que eu sabia de onde o lixo tinha vindo.

Mas nem tudo são tristezas. Mais adiante, na nossa caminhada rumo a uma canoa que nos levaria de volta à sede da fazenda, encontrei na praia uma sandália de plástico sendo decomposta por algas. O processo é demorado, mas tudo está em movimento. Se um evento catastrófico suprimisse a humanidade da face da Terra, a natureza apagaria lentamente as marcas da globalização. Ela tem todo o tempo do universo para tanto. 

A natureza devorando a cultura

 

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