sábado, 29 de abril de 2023

CÍRCULO MÁGICO

 Arthur Soffiati

            Corria o ano de 1976. O jovem casal, ainda sem filhos, aproveita para fazer uma viagem a três países da América do Sul por um plano então vigente denominado “Círculo mágico”. Os dois não lembram o nome da empresa aérea. Talvez tenha sido a Varig, que ainda operava. O avião partiu do Rio de Janeiro em direção a Lima. Pelas recordações de ambos, a viagem durou cinco horas. Como sempre, ele ficou relaxado durante o voo. Ele nunca enfrentou uma situação difícil em viagens aéreas. O que leva passageiros a pânicos fáceis não o assusta. Ela, contudo, estava um pouco nervosa apenas com o voo. Então, ele lhe ofereceu uma dose de vinho e logo ela adormeceu durante a viagem noturna até seu destino.

 

Lima

Amanhecia quando o avião aterrisou em Lima, capital do país. Não houve choque de altitude, pois a cidade fica ao nível do mar.

Do aeroporto, o casal se dirigiu ao hotel modesto, já reservado. No dia seguinte, depois do café, os primeiros passos na cidade. Era uma sexta-feira. Ela, muito católica, procurou logo uma igreja perto do hotel, onde encontrou um padre que lhe informou os horários das missas. Como em todo mundo católico apostólico romano, a missa de sábado vale para domingo. Em seguida, a primeira caminhada pelo meio urbano. Lima é uma grande cidade. Foi erguida pelos espanhóis em 1535 nos vales dos rios Chillón, Rímac e Lurín, às margens do oceano Pacífico. A Vila da Rainha, primeira tentativa de erguer um núcleo europeu no norte fluminense, só será fundada em 1539, durando pouco tempo. O traçado revela o planejamento espanhol do período colonial: um centro em forma de largo com uma grande igreja. Dali, partem ruas largas. É notório o plano urbanístico, mesmo que seja abandonado na periferia e hoje não mais seguido.

Lima foi a capital do poderoso vice-reino do Peru, um dos quatro em que foram divididos os vastos territórios ocupados pela Espanha no período colonial da América. Os outros foram Nova Espanha (México), Nova Granada (Colômbia e Equador) e Rio da Prata (Paraguai, Uruguai e Argentina). Também foram fundadas quatro capitanias gerais: Cuba, Guatemala, Chile e Venezuela. E os vastos domínios coloniais espanhóis eram maiores, incluindo as Filipinas, no extremo oriente, e todas as colônias portuguesas entre 1580 e 1640, quando os reis espanhóis colocaram sobre suas cabeças as coroas de Espanha e Portugal naquele grande Estado denominado União Ibérica. Finalmente, toda a península Ibérica estava unida sob um único cetro. E os impérios coloniais dos dois países se uniram num tão extenso território “onde o Sol nunca se punha”. Mas esse universo de línguas ibéricas era frágil. França, Inglaterra e Holanda já o ameaçavam. Também foi efêmero, pois D. João IV restaurou a monarquia portuguesa em 1640. Novamente separados, os dois países começaram a perder seus domínios.

Diferentemente da colonização portuguesa, a espanhola promovia a educação, inclusive superior. Em Lima, foi fundada a Universidade Nacional de San Marcos em 1551. Ela continua em funcionamento. Caminhávamos pelas ruas, admirando as igrejas coloniais. É o mesmo padrão de construção de todo o catolicismo romano. Mas há um toque local ou regional. Percebo que existe mão do construtor indígena cristianizado. Olho para as pessoas e noto traços indígenas no físico. Olhos puxados não tanto quanto em orientais. Pele morena. Belas pessoas. Cabelos longos e lisos nas mulheres. Quase todas usando coque. Mas as roupas já estão bastante ocidentalizadas, embora note um que outro passante com casaco colorido, como confeccionado com retalhos.

Entramos num ônibus urbano. O cheiro é acre. Notarei em dois outros ônibus o mesmo cheiro. Viajamos em pé nos três. Falta de lugar. Num deles, prestei atenção na conversa de duas moças. Eu não atentei para o conteúdo. Não sou bisbilhoteiro. Apenas no sotaque de ambas e na maneira de falar. Eu não sabia e ainda não sei distinguir sotaques além daqueles desenvolvidos no Brasil. A conversa das duas fluía calmamente. As duas mais cantavam a fala do que pronunciavam. Eu entendi tudo. Elas falavam muito pausadamente e muito bem. Não direi o mesmo quando chegar em Buenos Aires.

Passamos apenas três dias em Lima: sexta-feira (incompleto), sábado e domingo. No sábado, o casal foi à missa na igreja de “La Merced”, cujo início da construção data de 1614. Campos ainda não existia nessa data. Para um católico apostólico romano, não é preciso conhecer a língua em que a missa é celebrada. Basta conhecer os passos de uma missa. Mesmo assim, valemo-nos de folhetos e os levamos para o hotel. Jantar leve. Pedimos ceviche, se me lembro bem. Peixe e frutos do mar. Prato típico do Peru. Dormimos bem e acordamos com o atendente da recepção ligando para o quarto. Arrumados, descemos para o café com toda a bagagem. Ela sempre com mais malas do que ele. O casal segue para o aeroporto. Vamos para Cusco no avião de uma empresa peruana. Cerca de 50 minutos de viagem. A capital do Império Inca nos aguarda. No curso da viagem, voltaremos a Lima. 

Centro histórico de Lima

 

Cuzco

            Em cinquenta minutos, subimos 3.400 metros, em relação ao nível do mar. Foi uma verdadeira vertigem. Desembarcamos em Cuzco, a imponente capital do império Inca. Eu me sentia tonto, acreditando ser problema de pressão. Fomos para o hotel já reservado. A primeira providência tomada por quem nos recebeu foi nos dar uma xícara de xá de coca. Bebemos e dormimos por duas horas. Ao acordar, estávamos adaptados a grandes altitudes. 

            Passeamos pelos arredores do hotel, mas já em algumas ruas da cidade. Eu não acreditava no que via. Ali, o imperador Inca governou o Tahuantinsuyu, um Estado que se estendia do sudoeste da Colômbia ao centro do Chile, envolvendo os atuais Peru, Equador, Bolívia e parte da Argentina. Havia vários povos com culturas diferentes mas aparentadas integrando o maior império de todas as Américas. Várias línguas eram faladas no âmbito de um território tão grande. A organização do império deixou os europeus boquiabertos. Os povos reunidos pelo poderio inca trabalhavam na agricultura. Cultivavam produtos aclimatados à vertente do oceano Pacífico, face fria por conta da corrente de Humboldt, proveniente do Antártico, e à vertente amazônica, quente e úmida. Conheciam uma grande gama de batata. Esse vegetal se adaptou tão bem à Europa, que hoje é conhecido como batata inglesa. Para a obtenção de leite, carne, lã e transporte, valiam-se do lhama e da alpaca, animais domesticados e criados.

            Em 1532, aproveitando-se da uma espécie de guerra civil interna, o espanhol Francisco Pizarro destronou o último imperador e se apoderou do império. Valeu-se das fabulosas construções e iniciou um domínio baseado nos curacas, prepostos que controlavam o trabalho de grupos. O maior interesse dos espanhóis residia na prata. Os povos reunidos no Império Inca viviam numa economia de subsistência. Havia troca, mas não havia a concepção mercantil dos europeus. A prata não significava para eles o que significava para os europeus.

            Com bastante encantamento, andamos pelas ruas da cidade. Existem muitas igrejas. Em grande parte, elas foram erguidas sobre as ruínas de prédios portentosos. Os blocos de pedra usados nas construções se justapõem sem a necessidade de argamassa como ligadura. Um bloco se encaixa no outro de tal forma que o espaço entre eles não permite a passagem de uma lâmina de barbear. As ruínas do palácio imperial ainda estavam lá, mostrando o poderio do Inca. Duas estradas pavimentadas, uma no litoral e outra no alto dos Andes, permitiam a ligação dos extremos do império por seu famoso sistema de correio formado por homens treinados. As duas estradas de quatro mil quilômetros eram ligadas por estradas vicinais. Nem mesmo o Império Romano foi capaz de desenvolver engenharia de tal magnitude. E esses povos não conheciam a roda, invento neolítico tão simples que se alastrou pela Europa, Ásia e África.

            Como aquelas pedras foram cortadas, polidas, transportadas e justapostas com tanta perfeição? Mais que a prata, a pedra era o sustentáculo do império. E o sistema mais aproximado da escrita eram os quipus, nós dados em cordas coloridas. Todas as grandes civilizações do velho mundo inventaram sistemas de escrita como forma de domínio. O império inca se valia de um sistema que permitia a contagem. O grande deus Viracocha, divindade maior dos povos do império, criara o universo. Ele agora se defrontava com a concepção monoteísta judaico-cristã. A queda de Ataualpa, último imperador, não permitiu a erradicação fácil das culturas andinas. Processos de aculturação se operaram no âmbito do antigo império. Um dos mais notáveis é a figura de Guamán Poma, nativo aculturado que serviu aos espanhóis, mas lhes teceu críticas com seus desenhos meio andinos, meio europeus comentados com bastante humor e ironia. Outra grande manifestação de aculturação foram os pintores reunidos em torno da escola cusquenha de pintura. As imagens cristãs foram reinterpretadas, passando a integrar motivos e traços nativos.

            Além da experiência de fascínio pela civilização ou civilizações andinas, conheci a esperteza europeia nos habitantes de Cuzco. Sabendo que o espanhol pode ser compreendido por um falante de português, as pessoas conversavam em quechua, a língua franca do império, quando se tratava de assunto que não devíamos saber, e em espanhol para se comunicaram conosco. Os taxistas eram mestres nesse bilinguismo.

            Certa vez, uma mulher estendeu um tecido no chão e colocou uma criança deitada de costas sobre ele. Prendeu duas pontas com os dentes e segurou as outras duas pontas com as mãos. Logo em seguida, pôs-se a balançar a manta e jogou a criança para trás. Corri para impedir que a criança caísse. Tranquilamente, ela acomodou o filho nas costas, amarrou duas pontas no pescoço e as outras duas na cintura. Foi trabalhar sem sequer me notar. 

Ruínas incas em Cusco

 

Machu Picchu

            Pela manhã, partimos de Cuzco em direção a Machu Picchu. O trem que nos conduzia subiu a serra em zig-zag. A parte da frente avançava o primeiro lance. Então, ele dava marcha a ré no segundo lance e assim sucessivamente até tomar um rumo contínuo. Subir a serra foi emocionante. Embora cortássemos o vale do rio Urubamba, que integra a bacia amazônica, não havia floresta. A altitude não permitia. Há paisagens belíssimas formadas pelo rio serrano, mas noto que, atualmente, ele segue o caminho dos seus parentes fluviais em todo o mundo: apresenta sinais de degradação. Passamos também por aldeias de camponeses que trajavam roupas típicas de indígenas peruanos. Eu os imaginei tocando instrumentos como os que integram o conjunto musical “Quenas de oro”, do qual comprei um disco em Cuzco que até hoje conservo.

            Chegamos ao destino. Não lembro bem se o trem nos deixou em Machu Picchu. Creio que encerrou sua viagem numa estação próxima. Dali, seguimos num micro-ônibus. A cidade se situa a 2.400 metros de altitude. Estima-se que tenha sido construída no princípio do século XV, cerca de 1420. Antes, portanto, da chegada dos europeus ocidentais à América. Seria uma cidade sagrada? Teria sido a última capital do império inca? Sua descoberta oficial pelo ocidente data de 1911. Do conjunto, apenas 30% são originais. Para fins turísticos, ela foi em grande parte reconstruída.

            O conjunto é deslumbrante. As encostas foram cortadas formando uma escadaria gigantesca. As partes verticais dos degraus foram calçadas com pedras para conter a erosão. As partes horizontais eram campos agrícolas. Assim, o povo ou povos do império inca continham a erosão e, ao mesmo tempo, conservam a pouca água das chuvas nos terraços. E mais: em caso de excedente, o terraço inferior recolhia a água do terraço superior. A economia era cuidadosa. Esses povos originários (pioneiros) desenvolveram tecnologia avançadíssima para lidar com o ambiente natural.

            Na área destinada a moradias e a templos religiosos, estamos novamente apreciando a civilização da pedra, mais que da prata. Os blocos são imensos. Eles saíram das montanhas em torno ao local. Como foram cortados sem as tecnologias atualmente conhecidas? Como foram polidos? São mistérios que rondam as antigas civilizações. É como perguntar sobre a construção das pirâmides egípcias, da muralha da China e das estátuas da ilha de Páscoa. São obras tão soberbas que alguns escritores fantasiosos recorreram a extraterrestres. Não desdenhemos a capacidade humana. Apenas consideremos que povos de vida nômade não desenvolveriam culturas em que grandes obras estivessem incluídas. Só mesmo vida sedentária e grande organização social permitiriam aquelas magníficas construções. Elas pressupõem divisão social do trabalho e a presença de uma elite governamental. Só mesmo com a dominação de uma classe por outra, valendo-se de motivos religiosos, permitiria aquelas construções.

            Caminhamos pelos estreitos caminhos e admiramos os prédios sem telhados. Todos são de pedra, material sólido e durável. Para aproveitar mais a oportunidade de conhecermos Machu Picchu, ingressamos num grupo que recebia informações de um guia. Era um trabalho remunerado. Guias turísticos sempre exageram. Alguém perguntou se era possível chegar a Huyana Picchu, a parte mais alta. Ele respondeu que sim e se propôs conduzir os interessados. Fui o primeiro a levantar o braço. E também o único. A subida levava cerca de uma hora e meia a pé. Seria meu presente de aniversário. Não fomos. Era 10 de fevereiro de 1976. Eu tinha 29 anos de idade e a mesma curiosidade que conservo hoje, aos 76 anos.

            Terminamos a visita. Sentado num muro com as pernas penduradas num precipício, festejei meu aniversário. Talvez tenha sido o mais emocionante da minha vida. Era hora de voltar. Como em todo lugar turístico, há sempre o comércio de suvenires. A mim, bastava-me o espetáculo retido pelos meus olhos. Aqueles magníficos blocos de pedra justapostos sem espaço para a passagem de uma lâmina de canivete. Nada de argamassa.

            No trem, sentei-me ao lado de um francês que me perguntou de onde eu era. Em francês, respondi que vinha do Brasil. Eu estava cursando a Aliança Francesa com o saudoso Jean Leblanc, que não permitia outra língua senão a francesa durante as aulas. Eu já tinha certo traquejo em falar. O vizinho me perguntou se, por acaso, eu morara em Paris. Perguntei-lhe por que. Ele respondeu que achava o meu francês muito bom. Cá comigo, percebi que o francês dele era ruim. O bom francês não falaria barata, mas barrata. Os erres dele eram brandos. Perguntei-lhe de onde era e ele me respondeu ser da Córsega. Mas no trem viajava também uma comissão oficial de deputados franceses. Puxei conversa com um, que estava na varanda do vagão. Foi o segundo momento de alegria para mim. O francês dele parecia perfeito, e ele disse que eu me expressava muito bem na língua. Minha homenagem póstuma ao professor Leblanc.

Machu Picchu – construções e muros para contenção de encostas

 

Santiago

            Descer de Cuzco a Lima de avião foi como subir. No final da viagem, eu sentia vertigem. Só que, no hotel de Lima, ninguém nos ofereceu um chá de coca. Passaríamos ainda uma noite na cidade e, no dia seguinte cedo, embarcaríamos para Santiago, capital do Chile. Fazia parte do roteiro do “Círculo Mágico”.

            Estávamos a par da situação política do Chile. Sabíamos que o país estava dominado por uma ditadura militar truculenta desde 1973. Viajávamos no início de 1976. Era essa também a situação do Brasil desde 1964 e logo seria a situação da Argentina. Aterrisamos no aeroporto de Santiago-Pudahuel. Mais tarde, eu leria que o Chile, a Argentina e o Uruguai são, na América do Sul, réplicas da Europa ocidental. De acordo com o historiador ambiental Alfred Crosby, no livro “Imperialismo ecológico”, alguns países fora da Europa são mais europeus que outros. Ele os intitula de neo-europas. Exemplos: Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Examinando bem, concluiremos que eles não replicam países europeus completamente. O contingente nativo e a diáspora negra criaram países neo-europeus mestiços. A paisagem andina e fria do Chile pode se parecer com a paisagem alpina da Europa. Contudo, parte dele integrou o império inca. Em direção ao sul, é forte a presença de povos nativos ou pioneiros até o círculo polar antártico.

            O Chile é um país comprido e estreito, como que espremido entre a montanha e o mar. Vivo numa cidade que, à primeira vista, poderia apresentar geografia semelhante. A minha cidade cresceu entre a montanha e uma planície formada sobre o mar. O terreno sob Santiago é bem mais antigo e se origina de processos geológicos distintos. Ao procurar as grandes altitudes dos Andes no interior, minha primeira sensação foi de decepção. Eu dirigi meu olhar para a barriga da cordilheira e considerei que ela não era tão alta como me informaram. No entanto, meu olhar foi lentamente se dirigindo para o alto. Então, mergulhei em profunda emoção ao ver aqueles picos tão elevados cobertos de neve. Minha curiosidade logo me transportou para povoados na cadeia montanhosa. Pensei imediatamente no deserto de Atacama também, que ainda desejo conhecer.

            Uma tia indireta, pois que casada com um irmão de minha mãe, tinha um primo diplomata que estava como embaixador do Brasil no Chile por ocasião da nossa viagem. Ela me pediu que lhe entregasse uma encomenda e me forneceu seu telefone. Liguei para ele. Fui atendido com muita desconfiança. Informei sobre o hotel em que estava hospedado. Era um prédio antigo muito acolhedor. Todos os seus funcionários eram muito gentis e atenciosos. O embaixador marcou encontro comigo na sala de recepção do hotel. Esperamos por ele em meio a outras pessoas. De repente, entraram dois homens enormes trajando paletó e gravata. Pareciam armados. Perguntaram por mim. Identifiquei-me. Em seguida, entrou o embaixador. Passei-lhe a encomenda. Antes de chegar às suas mãos, ela foi examinada pelos seguranças. Cumprindo uma formalidade, o embaixador conversou ligeiramente comigo e partiu. Eram tempos de medo. Nos anos de 1980, vivi situação semelhante. O general João Batista Figueiredo esteve em Campos em visita oficial. Aproximei-me dele para lhe entregar um documento e quase apanhei dos homens que formavam a sua segurança. 

            Andamos pelas ruas e praças de Santiago. Tudo muito limpo e tranquilo. Nada indicaria o regime de exceção a não ser o próprio silêncio e a ordem de tudo. Ninguém falava alto nem ria. Compramos frutas para levar pro hotel. O preço dos produtos que compramos era irrisório. Eu ainda não sabia que o Chile estava sendo um campo de experiência para o economista neoliberal Milton Friedman. A inflação estava contida, mas o custo social era muito grande.

            Percorri as bancas de jornal à procura de um exemplar de “Condorito”, quadrinhos criados pelo desenhista chileno Pepo. Eu já conhecia a legião de personagens do desenhista graças a meus primos, que residiram no Chile. “Condorito” é genial. Trata-se do único personagem capaz de amputar uma perna numa história e voltar a aparecer com ela noutra. Ele podia morrer hoje e ressuscitar amanhã. Finalmente, encontrei a revista e comprei os números disponíveis. Eles integram minha biblioteca até hoje. Mais tarde, toda sua turma se transformou em personagens de uma animação.

            De longe, eu desejava uma viagem à ilha de Pascoa a oeste do Chile, no oceano Pacífico, mas não dava tempo. Tínhamos um roteiro a cumprir. Houve um problema no voo para Buenos Aires. Precisamos trocar as passagens para outro dia e para outra empresa. Não havia ainda as facilidades (ou dificuldades) que as redes sociais nos proporcionam atualmente. A esposa, nervosa, refugiou-se num banho, enquanto eu liguei para a companha de aviação. Fui atendido. Improvisei uma explicação em espanhol e, para surpresa minha, fui plenamente compreendido. Eu já fizera uma experiência com a língua francesa no Peru. Agora, valia-me do espanhol. Eu podia me considerar um poliglota.

 

Visão de Santiago com a cordilheira dos Andes ao fundo

 

Buenos Aires

            Chegamos em Buenos Aires nas vésperas do golpe militar que depôs Isabelita Perón. Saímos do Brasil, onde os militares estavam no poder desde 1964. Passamos pelo Chile, onde um golpe militar depôs o presidente Salvador Allende, em 1973. Visitamos Buenos Aires em fevereiro de 1976. O golpe seria



desferido no dia 24 de março. O movimento nas ruas era grande, como a prenunciar o cataclisma político. Hospedamo-nos num hotel central. Creio que, pela primeira vez, fiquei diante de uma porta que abria com sensor eletrônico. No hotel, estavam hospedados brasileiros grosseiros e escandalosos. Eles bebiam e faziam barulho como se estivessem num mundo sem limites. Era vergonhoso. Parecia que desdenhavam os estrangeiros e se comportavam como se fossem os donos do mundo.

            A esposa estava nervosa com o clima político. Ela passava a maior parte do tempo em seu quarto. O marido, pelo contrário, gostava de caminhar pelas ruas, comprar jornais em bancas de revista, entrar em bares, ouvir conversas. O clima estava tenso. Isabelita fazia pronunciamentos frequentes. Numa banca, ingenuamente, saquei um maço de notas para pagar o jornal. O jornaleiro foi muito correto comigo ao aconselhar-me a não mostrar tanta “plata” em público para não ser roubado.

            E as caminhadas pelas largas avenidas continuavam. Não fomos a nenhuma apresentação de tango argentino. Parece que não havia clima para danças e shows. Num almoço, pedimos uma “ensalada” como entrada. O garçom, visivelmente impaciente, falava um espanhol quase incompreensível pelas palavras e pela rapidez com que eram pronunciadas. Era o famoso portenho. A diferença entre o espanhol bem pronunciado e até cantado que ouvi em Lima ficara para trás. Com esforço, consegui me comunicar em espanhol com um agente de viagem em Santiago. Agora, o garçom falava em “ensalada completa com e “sin huevo duro”. A esposa nada entendia. Nos quadrinhos “Condorito”, criados no Chile, existe um personagem chamado “Huevo Duro”, para nós, brasileiros, ovo cozido. Expliquei para a esposa o significado e ela pediu de pronto uma “ensalada completa con huevo duro”. 

            As tensões continuavam. A esposa temia que o marido fosse para as ruas. Ele queria acompanhar os acontecimentos. Mas queria também visitar locais interessantes. Um deles foi a “Calle Florida”, a famosa Rua das Flores. Ali, se concentravam livrarias que ainda podiam vender de tudo: livros inócuos e livros contendo ideias. Livros água-com-açúcar e livros com ideias perigosas. Eu já lecionava história na Faculdade de Filosofia de Campos, no Liceu de Humanidades de Campos e no cursinho pré-vestibular Savart. Eu já conhecia alguns historiadores da Escola dos Anais, que revolucionou os estudos de história e publicava a famosa revista “Annales”. Logo depois, tomei uma assinatura dela e ainda conservo alguns números.

            Nas livrarias, eu encontrava autores cujos nomes ouvira falar, não na faculdade, mas citados por outros autores. Fernand Braudel, Marc Bloch, Lucien Febvre. De Braudel, adquiri “Las civilizaciones actuales”. De Marc Bloch, comprei “Apologia da história” e de Febvre,Combates pela história”. Encontrei “Estudio de la história”, de Arnold Toynbee, completo em seus 22 volumes, incluindo o atlas. Numa orgia financeira, adquiri todos. Eu ainda vivia dos salários acumulados que recebi do Liceu. “Estudio de la história” não pôde ser levado na mala. Pesava muito. Foi despachado pelo correio.

            A questão não era sair da Argentina com esses livros, pelo menos naquele momento, por mais crucial que fosse. O problema era entrar no Brasil. Eu não perderia a oportunidade do risco. Pensamos ainda em visitar o Uruguai, mas o dinheiro chegava ao fim. Voltamos para o Brasil. A passagem na alfândega foi dramática exatamente por conta dos livros. Os agentes nada entendiam. Podiam muito bem vetar um livro sobre os comediantes “irmãos Marx”, confundindo-os com Karl Marx. Podiam muito bem confiscar um livro sobre cubismo, julgando tratar-se de assunto relativo a Cuba. Os fiscais sumiam no interior do departamento com o livro nas mãos para consultar algum superior. Eu rezava para não perder nenhum e passar tranquilo. Foi o que aconteceu: todos os livros foram liberados. Nenhum era comunista. Nenhum estava no index de livros proibidos. “Estudio de la historia” viria pelo correio. Era outra questão. Mas foi resolvida. Hoje, 47 anos depois da emocionante e histórica viagem, conservo ainda todos os livros adquiridos na Argentina. Eles marcaram muito a minha formação e a minha visão de mundo. Não são livros monográficos. Todos eles abordam a realidade de forma complexa, abordagem que parece sucumbir cada vez mais diante das redes sociais e dos magros trabalhos acadêmicos que recortam artificialmente a realidade e a mutilam. Empreendi algumas viagens depois dessa. Espero ainda empreender outras mais. 

Avenida central de Buenos Aires

A DAMA DE BRANCO

 

Arthur Soffiati

Em seus últimos livros, Sérgio Sant’Anna se mostra melancólico e nostálgico. É natural que esse estado de espírito se manifeste em pessoas criadas num tempo e envelhecendo noutro. A década de 1990 mostrou-se crucial nessa mudança. Passou-se de um mundo analógico para um mundo digital. No plano da sexualidade e dos gêneros, muitas mudanças se operaram. A corporeidade do passado está sendo substituída pela virtualidade.

Os contos, novelas e romances de Sérgio Sant’Anna não são inteiramente ficcionais. Há neles muito de suas impressões pessoais sobre artistas, por exemplo. Nos últimos escritos, que ele chamava de narrativas, o autobiográfico é muito presente. Ele falava de si na terceira pessoa.

Sérgio foi uma das vítimas da Covid-19 em 2020. Ele deixou narrativas curtas e uma novela inéditas em livro, embora seus admiradores já as conhecessem. Gustavo Pacheco reuniu esses escritos em “A dama de branco” (São Paulo: Companhia das Letras, 2021). São 17 narrativas breves e uma novela. Nelas, Sant’Anna mostra-se por inteiro. O conto que dá nome ao livro é um exercício de voyeurismo. A sexualidade também é muito forte nele. Em “Anticonto”, ele registra que o ato de escrever exige disciplina. Parar de escrever também exige o mesmo. Um personagem proclama que “Os celulares são a praga do mundo moderno, mas às vezes são necessários”, refletindo por certo o próprio pensamento de Sant’Anna.

Para uma pessoa que viveu numa cidade em que a natureza estava mais presente, o soterramento dela pela urbanização, pelo desmatamento, pela poluição fere a sensibilidade. Parece ser o autor que fala pela boca de um personagem que vê o Brasil governado por um presidente estúpido: “a própria natureza fora exaurida até um ponto inacreditável, com árvores derrubadas, florestas pegando fogo, matando os animais, os índios atacados, e os mares, as melhores praias, o oceano impregnado pelo óleo grosso e viscoso.”

Onde talvez Sant’Anna perca a mão é na novela “Carta marcada”, que narra a trajetória de um homem com forte sexualidade. Ele se sente atraído pela namorada, pela sogra e por uma cunhada ainda pré-adolescente. Depois de casado, trabalhando num escritório de advocacia, ele passa a beber e se torna alcoólatra. Ele se excita em manter relações sexuais com a esposa enquanto ela dorme. Mais tarde, ele reencontra a cunhada já casada e mantém um caso quase secreto com ela, mais tarde encerrado. Embora advogado, ele odeia a profissão por entender que os advogados são profissionais prostitutos. Sua vingança é acusar um feminicida que contratou o escritório em que trabalhava. Ele foi o advogado de defesa e contribuiu mais para a condenação do cliente do que a promotoria. A juíza que determinou a pena do réu é feminista e homossexual. Mesmo assim, presenteia a bela atuação do advogado com sexo oral. Ele termina seus dias como alcoólatra. A novela narra sua vida aos Alcoólicos Anônimos. São fantasias sexuais muito escancaradas que tangenciam a pornografia.   

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...