Arthur Soffiati
Corria
o ano de 1976. O jovem casal, ainda sem filhos, aproveita para fazer uma viagem
a três países da América do Sul por um plano então vigente denominado “Círculo
mágico”. Os dois não lembram o nome da empresa aérea. Talvez tenha sido a
Varig, que ainda operava. O avião partiu do Rio de Janeiro em direção a Lima.
Pelas recordações de ambos, a viagem durou cinco horas. Como sempre, ele ficou
relaxado durante o voo. Ele nunca enfrentou uma situação difícil em viagens aéreas.
O que leva passageiros a pânicos fáceis não o assusta. Ela, contudo, estava um
pouco nervosa apenas com o voo. Então, ele lhe ofereceu uma dose de vinho e
logo ela adormeceu durante a viagem noturna até seu destino.
Lima
Amanhecia
quando o avião aterrisou em Lima, capital do país. Não houve choque de
altitude, pois a cidade fica ao nível do mar.
Do
aeroporto, o casal se dirigiu ao hotel modesto, já reservado. No dia seguinte,
depois do café, os primeiros passos na cidade. Era uma sexta-feira. Ela, muito
católica, procurou logo uma igreja perto do hotel, onde encontrou um padre que
lhe informou os horários das missas. Como em todo mundo católico apostólico
romano, a missa de sábado vale para domingo. Em seguida, a primeira caminhada
pelo meio urbano. Lima é uma grande cidade. Foi erguida pelos espanhóis em 1535
nos vales dos rios Chillón, Rímac e Lurín, às margens do oceano Pacífico. A
Vila da Rainha, primeira tentativa de erguer um núcleo europeu no norte
fluminense, só será fundada em 1539, durando pouco tempo. O traçado revela o
planejamento espanhol do período colonial: um centro em forma de largo com uma
grande igreja. Dali, partem ruas largas. É notório o plano urbanístico, mesmo
que seja abandonado na periferia e hoje não mais seguido.
Lima
foi a capital do poderoso vice-reino do Peru, um dos quatro em que foram
divididos os vastos territórios ocupados pela Espanha no período colonial da
América. Os outros foram Nova Espanha (México), Nova Granada (Colômbia e
Equador) e Rio da Prata (Paraguai, Uruguai e Argentina). Também foram fundadas
quatro capitanias gerais: Cuba, Guatemala, Chile e Venezuela. E os vastos
domínios coloniais espanhóis eram maiores, incluindo as Filipinas, no extremo
oriente, e todas as colônias portuguesas entre 1580 e 1640, quando os reis
espanhóis colocaram sobre suas cabeças as coroas de Espanha e Portugal naquele
grande Estado denominado União Ibérica. Finalmente, toda a península Ibérica
estava unida sob um único cetro. E os impérios coloniais dos dois países se
uniram num tão extenso território “onde o Sol nunca se punha”. Mas esse
universo de línguas ibéricas era frágil. França, Inglaterra e Holanda já o
ameaçavam. Também foi efêmero, pois D. João IV restaurou a monarquia portuguesa
em 1640. Novamente separados, os dois países começaram a perder seus domínios.
Diferentemente
da colonização portuguesa, a espanhola promovia a educação, inclusive superior.
Em Lima, foi fundada a Universidade Nacional de San Marcos em 1551. Ela
continua em funcionamento. Caminhávamos pelas ruas, admirando as igrejas
coloniais. É o mesmo padrão de construção de todo o catolicismo romano. Mas há
um toque local ou regional. Percebo que existe mão do construtor indígena
cristianizado. Olho para as pessoas e noto traços indígenas no físico. Olhos
puxados não tanto quanto em orientais. Pele morena. Belas pessoas. Cabelos
longos e lisos nas mulheres. Quase todas usando coque. Mas as roupas já estão
bastante ocidentalizadas, embora note um que outro passante com casaco
colorido, como confeccionado com retalhos.
Entramos
num ônibus urbano. O cheiro é acre. Notarei em dois outros ônibus o mesmo
cheiro. Viajamos em pé nos três. Falta de lugar. Num deles, prestei atenção na
conversa de duas moças. Eu não atentei para o conteúdo. Não sou bisbilhoteiro.
Apenas no sotaque de ambas e na maneira de falar. Eu não sabia e ainda não sei
distinguir sotaques além daqueles desenvolvidos no Brasil. A conversa das duas
fluía calmamente. As duas mais cantavam a fala do que pronunciavam. Eu entendi
tudo. Elas falavam muito pausadamente e muito bem. Não direi o mesmo quando
chegar em Buenos Aires.
Passamos apenas três dias em Lima: sexta-feira (incompleto), sábado e domingo. No sábado, o casal foi à missa na igreja de “La Merced”, cujo início da construção data de 1614. Campos ainda não existia nessa data. Para um católico apostólico romano, não é preciso conhecer a língua em que a missa é celebrada. Basta conhecer os passos de uma missa. Mesmo assim, valemo-nos de folhetos e os levamos para o hotel. Jantar leve. Pedimos ceviche, se me lembro bem. Peixe e frutos do mar. Prato típico do Peru. Dormimos bem e acordamos com o atendente da recepção ligando para o quarto. Arrumados, descemos para o café com toda a bagagem. Ela sempre com mais malas do que ele. O casal segue para o aeroporto. Vamos para Cusco no avião de uma empresa peruana. Cerca de 50 minutos de viagem. A capital do Império Inca nos aguarda. No curso da viagem, voltaremos a Lima.
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Centro
histórico de Lima
Cuzco
Em
cinquenta minutos, subimos 3.400 metros, em relação ao nível do mar. Foi uma
verdadeira vertigem. Desembarcamos em Cuzco, a imponente capital do império
Inca. Eu me sentia tonto, acreditando ser problema de pressão. Fomos para o
hotel já reservado. A primeira providência tomada por quem nos recebeu foi nos
dar uma xícara de xá de coca. Bebemos e dormimos por duas horas. Ao acordar,
estávamos adaptados a grandes altitudes.
Passeamos
pelos arredores do hotel, mas já em algumas ruas da cidade. Eu não acreditava
no que via. Ali, o imperador Inca governou o Tahuantinsuyu, um
Estado que se estendia do sudoeste da Colômbia ao centro do Chile, envolvendo
os atuais Peru, Equador, Bolívia e parte da Argentina. Havia vários povos com
culturas diferentes mas aparentadas integrando o maior império de todas as
Américas. Várias línguas eram faladas no âmbito de um território tão grande. A
organização do império deixou os europeus boquiabertos. Os povos reunidos pelo
poderio inca trabalhavam na agricultura. Cultivavam produtos aclimatados à
vertente do oceano Pacífico, face fria por conta da corrente de Humboldt,
proveniente do Antártico, e à vertente amazônica, quente e úmida. Conheciam uma
grande gama de batata. Esse vegetal se adaptou tão bem à Europa, que hoje é conhecido
como batata inglesa. Para a obtenção de leite, carne, lã e transporte,
valiam-se do lhama e da alpaca, animais domesticados e criados.
Em
1532, aproveitando-se da uma espécie de guerra civil interna, o espanhol
Francisco Pizarro destronou o último imperador e se apoderou do império.
Valeu-se das fabulosas construções e iniciou um domínio baseado nos curacas,
prepostos que controlavam o trabalho de grupos. O maior interesse dos espanhóis
residia na prata. Os povos reunidos no Império Inca viviam numa economia de
subsistência. Havia troca, mas não havia a concepção mercantil dos europeus. A
prata não significava para eles o que significava para os europeus.
Com
bastante encantamento, andamos pelas ruas da cidade. Existem muitas igrejas. Em
grande parte, elas foram erguidas sobre as ruínas de prédios portentosos. Os
blocos de pedra usados nas construções se justapõem sem a necessidade de
argamassa como ligadura. Um bloco se encaixa no outro de tal forma que o espaço
entre eles não permite a passagem de uma lâmina de barbear. As ruínas do
palácio imperial ainda estavam lá, mostrando o poderio do Inca. Duas estradas
pavimentadas, uma no litoral e outra no alto dos Andes, permitiam a ligação dos
extremos do império por seu famoso sistema de correio formado por homens
treinados. As duas estradas de quatro mil quilômetros eram ligadas por estradas
vicinais. Nem mesmo o Império Romano foi capaz de desenvolver engenharia de tal
magnitude. E esses povos não conheciam a roda, invento neolítico tão simples
que se alastrou pela Europa, Ásia e África.
Como
aquelas pedras foram cortadas, polidas, transportadas e justapostas com tanta
perfeição? Mais que a prata, a pedra era o sustentáculo do império. E o sistema
mais aproximado da escrita eram os quipus, nós dados em cordas coloridas. Todas
as grandes civilizações do velho mundo inventaram sistemas de escrita como
forma de domínio. O império inca se valia de um sistema que permitia a
contagem. O grande deus Viracocha, divindade maior dos povos do império, criara
o universo. Ele agora se defrontava com a concepção monoteísta judaico-cristã.
A queda de Ataualpa, último imperador, não permitiu a erradicação fácil das
culturas andinas. Processos de aculturação se operaram no âmbito do antigo
império. Um dos mais notáveis é a figura de Guamán Poma, nativo aculturado que
serviu aos espanhóis, mas lhes teceu críticas com seus desenhos meio andinos,
meio europeus comentados com bastante humor e ironia. Outra grande manifestação
de aculturação foram os pintores reunidos em torno da escola cusquenha de
pintura. As imagens cristãs foram reinterpretadas, passando a integrar motivos
e traços nativos.
Além
da experiência de fascínio pela civilização ou civilizações andinas, conheci a
esperteza europeia nos habitantes de Cuzco. Sabendo que o espanhol pode ser
compreendido por um falante de português, as pessoas conversavam em quechua, a
língua franca do império, quando se tratava de assunto que não devíamos saber,
e em espanhol para se comunicaram conosco. Os taxistas eram mestres nesse
bilinguismo.
Certa vez, uma mulher estendeu um tecido no chão e colocou uma criança deitada de costas sobre ele. Prendeu duas pontas com os dentes e segurou as outras duas pontas com as mãos. Logo em seguida, pôs-se a balançar a manta e jogou a criança para trás. Corri para impedir que a criança caísse. Tranquilamente, ela acomodou o filho nas costas, amarrou duas pontas no pescoço e as outras duas na cintura. Foi trabalhar sem sequer me notar.
Ruínas incas em Cusco
Machu
Picchu
Pela
manhã, partimos de Cuzco em direção a Machu Picchu. O trem que nos conduzia
subiu a serra em zig-zag. A parte da frente avançava o primeiro lance. Então,
ele dava marcha a ré no segundo lance e assim sucessivamente até tomar um rumo
contínuo. Subir a serra foi emocionante. Embora cortássemos o vale do rio
Urubamba, que integra a bacia amazônica, não havia floresta. A altitude não
permitia. Há paisagens belíssimas formadas pelo rio serrano, mas noto que,
atualmente, ele segue o caminho dos seus parentes fluviais em todo o mundo:
apresenta sinais de degradação. Passamos também por aldeias de camponeses que
trajavam roupas típicas de indígenas peruanos. Eu os imaginei tocando
instrumentos como os que integram o conjunto musical “Quenas de oro”, do qual
comprei um disco em Cuzco que até hoje conservo.
Chegamos
ao destino. Não lembro bem se o trem nos deixou em Machu Picchu. Creio que
encerrou sua viagem numa estação próxima. Dali, seguimos num micro-ônibus. A
cidade se situa a 2.400 metros de altitude. Estima-se que tenha sido construída
no princípio do século XV, cerca de 1420. Antes, portanto, da chegada dos
europeus ocidentais à América. Seria uma cidade sagrada? Teria sido a última
capital do império inca? Sua descoberta oficial pelo ocidente data de 1911. Do
conjunto, apenas 30% são originais. Para fins turísticos, ela foi em grande
parte reconstruída.
O
conjunto é deslumbrante. As encostas foram cortadas formando uma escadaria
gigantesca. As partes verticais dos degraus foram calçadas com pedras para
conter a erosão. As partes horizontais eram campos agrícolas. Assim, o povo ou
povos do império inca continham a erosão e, ao mesmo tempo, conservam a pouca
água das chuvas nos terraços. E mais: em caso de excedente, o terraço inferior
recolhia a água do terraço superior. A economia era cuidadosa. Esses povos
originários (pioneiros) desenvolveram tecnologia avançadíssima para lidar com o
ambiente natural.
Na
área destinada a moradias e a templos religiosos, estamos novamente apreciando
a civilização da pedra, mais que da prata. Os blocos são imensos. Eles saíram
das montanhas em torno ao local. Como foram cortados sem as tecnologias
atualmente conhecidas? Como foram polidos? São mistérios que rondam as antigas
civilizações. É como perguntar sobre a construção das pirâmides egípcias, da
muralha da China e das estátuas da ilha de Páscoa. São obras tão soberbas que
alguns escritores fantasiosos recorreram a extraterrestres. Não desdenhemos a
capacidade humana. Apenas consideremos que povos de vida nômade não
desenvolveriam culturas em que grandes obras estivessem incluídas. Só mesmo
vida sedentária e grande organização social permitiriam aquelas magníficas
construções. Elas pressupõem divisão social do trabalho e a presença de uma
elite governamental. Só mesmo com a dominação de uma classe por outra,
valendo-se de motivos religiosos, permitiria aquelas construções.
Caminhamos
pelos estreitos caminhos e admiramos os prédios sem telhados. Todos são de
pedra, material sólido e durável. Para aproveitar mais a oportunidade de
conhecermos Machu Picchu, ingressamos num grupo que recebia informações de um
guia. Era um trabalho remunerado. Guias turísticos sempre exageram. Alguém
perguntou se era possível chegar a Huyana Picchu, a parte mais alta. Ele
respondeu que sim e se propôs conduzir os interessados. Fui o primeiro a
levantar o braço. E também o único. A subida levava cerca de uma hora e meia a
pé. Seria meu presente de aniversário. Não fomos. Era 10 de fevereiro de 1976.
Eu tinha 29 anos de idade e a mesma curiosidade que conservo hoje, aos 76 anos.
Terminamos
a visita. Sentado num muro com as pernas penduradas num precipício, festejei
meu aniversário. Talvez tenha sido o mais emocionante da minha vida. Era hora
de voltar. Como em todo lugar turístico, há sempre o comércio de suvenires. A
mim, bastava-me o espetáculo retido pelos meus olhos. Aqueles magníficos blocos
de pedra justapostos sem espaço para a passagem de uma lâmina de canivete. Nada
de argamassa.
No
trem, sentei-me ao lado de um francês que me perguntou de onde eu era. Em
francês, respondi que vinha do Brasil. Eu estava cursando a Aliança Francesa
com o saudoso Jean Leblanc, que não permitia outra língua senão a francesa
durante as aulas. Eu já tinha certo traquejo em falar. O vizinho me perguntou
se, por acaso, eu morara em Paris. Perguntei-lhe por que. Ele respondeu que
achava o meu francês muito bom. Cá comigo, percebi que o francês dele era ruim.
O bom francês não falaria barata, mas barrata. Os erres dele eram brandos.
Perguntei-lhe de onde era e ele me respondeu ser da Córsega. Mas no trem
viajava também uma comissão oficial de deputados franceses. Puxei conversa com
um, que estava na varanda do vagão. Foi o segundo momento de alegria para mim.
O francês dele parecia perfeito, e ele disse que eu me expressava muito bem na
língua. Minha homenagem póstuma ao professor Leblanc.
Machu Picchu – construções e muros para contenção de encostas
Santiago
Descer de Cuzco a Lima de avião foi
como subir. No final da viagem, eu sentia vertigem. Só que, no hotel de Lima,
ninguém nos ofereceu um chá de coca. Passaríamos ainda uma noite na cidade e,
no dia seguinte cedo, embarcaríamos para Santiago, capital do Chile. Fazia
parte do roteiro do “Círculo Mágico”.
Estávamos a par da situação política
do Chile. Sabíamos que o país estava dominado por uma ditadura militar
truculenta desde 1973. Viajávamos no início de 1976. Era essa também a situação
do Brasil desde 1964 e logo seria a situação da Argentina. Aterrisamos no aeroporto de Santiago-Pudahuel. Mais tarde, eu leria que o
Chile, a Argentina e o Uruguai são, na América do Sul, réplicas da Europa
ocidental. De acordo com o historiador ambiental Alfred Crosby, no livro
“Imperialismo ecológico”, alguns países fora da Europa são mais europeus que
outros. Ele os intitula de neo-europas. Exemplos: Estados Unidos, Canadá,
Austrália e Nova Zelândia. Examinando bem, concluiremos que eles não replicam
países europeus completamente. O contingente nativo e a diáspora negra criaram
países neo-europeus mestiços. A paisagem andina e fria do Chile pode se parecer
com a paisagem alpina da Europa. Contudo, parte dele integrou o império inca.
Em direção ao sul, é forte a presença de povos nativos ou pioneiros até o
círculo polar antártico.
O
Chile é um país comprido e estreito, como que espremido entre a montanha e o
mar. Vivo numa cidade que, à primeira vista, poderia apresentar geografia
semelhante. A minha cidade cresceu entre a montanha e uma planície formada
sobre o mar. O terreno sob Santiago é bem mais antigo e se origina de processos
geológicos distintos. Ao procurar as grandes altitudes dos Andes no interior,
minha primeira sensação foi de decepção. Eu dirigi meu olhar para a barriga da
cordilheira e considerei que ela não era tão alta como me informaram. No
entanto, meu olhar foi lentamente se dirigindo para o alto. Então, mergulhei em
profunda emoção ao ver aqueles picos tão elevados cobertos de neve. Minha
curiosidade logo me transportou para povoados na cadeia montanhosa. Pensei
imediatamente no deserto de Atacama também, que ainda desejo conhecer.
Uma
tia indireta, pois que casada com um irmão de minha mãe, tinha um primo
diplomata que estava como embaixador do Brasil no Chile por ocasião da nossa
viagem. Ela me pediu que lhe entregasse uma encomenda e me forneceu seu
telefone. Liguei para ele. Fui atendido com muita desconfiança. Informei sobre
o hotel em que estava hospedado. Era um prédio antigo muito acolhedor. Todos os
seus funcionários eram muito gentis e atenciosos. O embaixador marcou encontro
comigo na sala de recepção do hotel. Esperamos por ele em meio a outras
pessoas. De repente, entraram dois homens enormes trajando paletó e gravata.
Pareciam armados. Perguntaram por mim. Identifiquei-me. Em seguida, entrou o
embaixador. Passei-lhe a encomenda. Antes de chegar às suas mãos, ela foi
examinada pelos seguranças. Cumprindo uma formalidade, o embaixador conversou
ligeiramente comigo e partiu. Eram tempos de medo. Nos anos de 1980, vivi
situação semelhante. O general João Batista Figueiredo esteve em Campos em
visita oficial. Aproximei-me dele para lhe entregar um documento e quase
apanhei dos homens que formavam a sua segurança.
Andamos
pelas ruas e praças de Santiago. Tudo muito limpo e tranquilo. Nada indicaria o
regime de exceção a não ser o próprio silêncio e a ordem de tudo. Ninguém
falava alto nem ria. Compramos frutas para levar pro hotel. O preço dos
produtos que compramos era irrisório. Eu ainda não sabia que o Chile estava
sendo um campo de experiência para o economista neoliberal Milton Friedman. A
inflação estava contida, mas o custo social era muito grande.
Percorri
as bancas de jornal à procura de um exemplar de “Condorito”, quadrinhos criados
pelo desenhista chileno Pepo. Eu já conhecia a legião de personagens do
desenhista graças a meus primos, que residiram no Chile. “Condorito” é genial.
Trata-se do único personagem capaz de amputar uma perna numa história e voltar
a aparecer com ela noutra. Ele podia morrer hoje e ressuscitar amanhã.
Finalmente, encontrei a revista e comprei os números disponíveis. Eles integram
minha biblioteca até hoje. Mais tarde, toda sua turma se transformou em
personagens de uma animação.
De
longe, eu desejava uma viagem à ilha de Pascoa a oeste do Chile, no oceano
Pacífico, mas não dava tempo. Tínhamos um roteiro a cumprir. Houve um problema
no voo para Buenos Aires. Precisamos trocar as passagens para outro dia e para outra
empresa. Não havia ainda as facilidades (ou dificuldades) que as redes sociais
nos proporcionam atualmente. A esposa, nervosa, refugiou-se num banho, enquanto
eu liguei para a companha de aviação. Fui atendido. Improvisei uma explicação
em espanhol e, para surpresa minha, fui plenamente compreendido. Eu já fizera
uma experiência com a língua francesa no Peru. Agora, valia-me do espanhol. Eu
podia me considerar um poliglota.
Visão de Santiago com a
cordilheira dos Andes ao fundo
Buenos Aires
Chegamos em Buenos Aires nas vésperas do golpe militar que depôs Isabelita Perón. Saímos do Brasil, onde os militares estavam no poder desde 1964. Passamos pelo Chile, onde um golpe militar depôs o presidente Salvador Allende, em 1973. Visitamos Buenos Aires em fevereiro de 1976. O golpe seria
desferido no dia 24 de março. O movimento nas ruas era grande, como a prenunciar o cataclisma político. Hospedamo-nos num hotel central. Creio que, pela primeira vez, fiquei diante de uma porta que abria com sensor eletrônico. No hotel, estavam hospedados brasileiros grosseiros e escandalosos. Eles bebiam e faziam barulho como se estivessem num mundo sem limites. Era vergonhoso. Parecia que desdenhavam os estrangeiros e se comportavam como se fossem os donos do mundo.
A esposa estava nervosa com o clima
político. Ela passava a maior parte do tempo em seu quarto. O marido, pelo
contrário, gostava de caminhar pelas ruas, comprar jornais em bancas de
revista, entrar em bares, ouvir conversas. O clima estava tenso. Isabelita
fazia pronunciamentos frequentes. Numa banca, ingenuamente, saquei um maço de
notas para pagar o jornal. O jornaleiro foi muito correto comigo ao
aconselhar-me a não mostrar tanta “plata” em público para não ser roubado.
E as caminhadas pelas largas avenidas
continuavam. Não fomos a nenhuma apresentação de tango argentino. Parece que
não havia clima para danças e shows. Num almoço, pedimos uma “ensalada” como
entrada. O garçom, visivelmente impaciente, falava um espanhol quase
incompreensível pelas palavras e pela rapidez com que eram pronunciadas. Era o
famoso portenho. A diferença entre o espanhol bem pronunciado e até cantado que
ouvi em Lima ficara para trás. Com esforço, consegui me comunicar em espanhol
com um agente de viagem em Santiago. Agora, o garçom falava em “ensalada
completa com e “sin huevo duro”. A esposa nada entendia. Nos quadrinhos
“Condorito”, criados no Chile, existe um personagem chamado “Huevo Duro”, para
nós, brasileiros, ovo cozido. Expliquei para a esposa o significado e ela pediu
de pronto uma “ensalada completa con huevo duro”.
As tensões continuavam. A esposa
temia que o marido fosse para as ruas. Ele queria acompanhar os acontecimentos.
Mas queria também visitar locais interessantes. Um deles foi a “Calle Florida”,
a famosa Rua das Flores. Ali, se concentravam livrarias que ainda podiam vender
de tudo: livros inócuos e livros contendo ideias. Livros água-com-açúcar e
livros com ideias perigosas. Eu já lecionava história na Faculdade de Filosofia
de Campos, no Liceu de Humanidades de Campos e no cursinho pré-vestibular
Savart. Eu já conhecia alguns historiadores da Escola dos Anais, que
revolucionou os estudos de história e publicava a famosa revista “Annales”.
Logo depois, tomei uma assinatura dela e ainda conservo alguns números.
Nas livrarias, eu encontrava autores
cujos nomes ouvira falar, não na faculdade, mas citados por outros autores.
Fernand Braudel, Marc Bloch, Lucien Febvre. De Braudel, adquiri “Las
civilizaciones actuales”. De Marc Bloch, comprei “Apologia da história” e de
Febvre, “Combates pela história”. Encontrei “Estudio de la história”, de
Arnold Toynbee, completo em seus 22 volumes, incluindo o atlas. Numa orgia
financeira, adquiri todos. Eu ainda vivia dos salários acumulados que recebi do
Liceu. “Estudio de la história” não pôde ser levado na mala. Pesava muito. Foi
despachado pelo correio.
A questão não era sair da Argentina com esses livros, pelo menos naquele momento, por mais crucial que fosse. O problema era entrar no Brasil. Eu não perderia a oportunidade do risco. Pensamos ainda em visitar o Uruguai, mas o dinheiro chegava ao fim. Voltamos para o Brasil. A passagem na alfândega foi dramática exatamente por conta dos livros. Os agentes nada entendiam. Podiam muito bem vetar um livro sobre os comediantes “irmãos Marx”, confundindo-os com Karl Marx. Podiam muito bem confiscar um livro sobre cubismo, julgando tratar-se de assunto relativo a Cuba. Os fiscais sumiam no interior do departamento com o livro nas mãos para consultar algum superior. Eu rezava para não perder nenhum e passar tranquilo. Foi o que aconteceu: todos os livros foram liberados. Nenhum era comunista. Nenhum estava no index de livros proibidos. “Estudio de la historia” viria pelo correio. Era outra questão. Mas foi resolvida. Hoje, 47 anos depois da emocionante e histórica viagem, conservo ainda todos os livros adquiridos na Argentina. Eles marcaram muito a minha formação e a minha visão de mundo. Não são livros monográficos. Todos eles abordam a realidade de forma complexa, abordagem que parece sucumbir cada vez mais diante das redes sociais e dos magros trabalhos acadêmicos que recortam artificialmente a realidade e a mutilam. Empreendi algumas viagens depois dessa. Espero ainda empreender outras mais.
Avenida central de Buenos Aires