quinta-feira, 11 de novembro de 2021

DE CURITIBA A PARANAGUÁ

Arthur Soffiati

Descer de Curitiba a Paranaguá de trem é mergulhar no passado, além de grande fascínio. Conheço essa rota desde criança, quando a percorri por diversas vezes no trem tradicional e na litorina. Parece que a viagem mudou pouco em 60 anos. O trem continua vagaroso. Ele se embrenha numa porção estupenda de mata atlântica. A obra de engenharia, concebida no final do século XIX, também é fantástica. Em certos trechos, tem-se a impressão de que o trem se transforma em avião e paira no ar. Fiquei comovido em reviver essa aventura.

Trem descendo a Serra do Mar. De Curitiba a Morretes

Hoje, a viagem é muito valorizada por turistas e bastante explorada pela concessionária com a venda de suvenires. O trem não chega mais a Paranaguá. Seu ponto final é Morretes. Em 1974, tiramos uma foto diante do busto de Rocha Pombo, jornalista, professor e historiador nascido na cidade. Visitei a casa dele por fora. Também percorri a cidade fotografando os casarões que ainda restam.

Casa de Rocha Ponto em Morretes
De Morretes, seguimos de ônibus para Paranaguá. Ao chegarmos à rodoviária, senti-me desorientado na cidade em que morei de 1951 a 1955. Atônito, recorri a um taxista. Ele me perguntou se eu precisava de alguma informação. Respondi que de várias. A primeira era saber onde eu estava. Estarrecido, ouvi dele a resposta de que meus pés estavam sobre um aterro do rio Itiberê. Desapareceram meus pontos de referência. Uma jovem senhora com um filho pequeno teve a bondade de nos levar ao núcleo histórico da cidade.

Então, comecei a reconhecer o espaço. Felizmente, o rio Itiberê não foi aterrado. Na sua margem direita, percebi que estávamos na rua em que morei. Com sofreguidão, procurei a casa em que vivi. Lá estava ela. Mais precisamente, lá estava a fachada dela com as portas vedadas com tijolo para reforçar o que sobrou da residência. Não há mais telhado. A escada lateral foi demolida. A casa está embargada por obras jamais concluídas.

Casario às margens do rio Itiberê - Paranaguá

Naquele casarão, vivi anos muito felizes. Lembro que uma parede a dividia ao meio no sentido longitudinal. No lado esquerdo, morava o sargento Nelson, sua mulher, D. Santa, e as filhas Valdívia e Arialba, que regulavam comigo em idade e com quem eu brincava no espaçoso quintal aos fundos. Nós morávamos no lado esquerdo. Da sacada, víamos o rio, na verdade, um braço da Baía de Paranaguá. Nas tardes, o espetáculo era assistir a Mário Peixe nadar contra a maré. Ele não saía do lugar, mas dava vigorosas braçadas e era forte.

Minhas memórias de Paranaguá afloram de mistura com a tristeza de ver o casarão em ruínas. Alguém disse que, na Modernidade, tudo que é sólido desmancha no ar. Os seres vivos demoram mais, atualmente, a desmanchar no ar. As construções duram menos que as pessoas. Foi o que senti em Curitiba e em Paranaguá. Como aquela casa que teve tanta vida chegou àquele estado? Corri à rua dos fundos, onde havia um portão que dava para um cinema. Ele está com tramelas pregadas. O cinema foi transformado numa casa comercial. Os filmes para criança eram exibidos em série nos finais de semana. Eu entrava no cinema com Rebeco, um cachorro rabugento que vivia conosco.

Naquele quintal cimentado, eu cultivava uma pequena horta de feijão e milho. Nas minhas brincadeiras de menino, eu mergulhava na solidão e inventava um mundo. Meu irmão, quase quatro anos mais novo do que eu, não brincava comigo. Minha imaginação infantil era fértil. Desde pequeno me sinto muito solitário. Meu amigo naquele quintal era um jaboti que costumava desaparecer por muito tempo. Quando eu o considerava perdido para sempre, ele voltava. Quis levar aquele jaboti para o Rio de Janeiro quando de nossa mudança definitiva. Meu pai não deixou.

Voltei a me sentir deslocado em Paranaguá. Era preciso um ponto de referência. Em certas manhãs, meu pai me levava ao mercado municipal. Havia de tudo ali. Mas fiquei marcado pelo sabor da banana empanada. Nunca mais encontrei aquela banana. O mercado estava lá. Ele foi bem conservado, mas agora está compartimentado em pequenos restaurantes. Lá, voltei a provar barreado e banana empanada. A experiência vivida por Proust, ao lembrar-se do passado com o sabor de uma madeleine, pode ser vivida por qualquer pessoa. Mas não é qualquer um que sabe transformar lembranças no requintado “Em busca do tempo perdido”. Eu queria muito ter um pouco do talento de Proust.

Mangue siribeira na margem do rio Itiberê, em Paranaguá

Nas minhas melancólicas recordações de Paranaguá, não posso me esquecer da Ilha dos Valadares. Dentro do rio Itiberê, ela parecia ser a outra margem do rio. Para meus olhos de criança, era um lugar muito distante coberto de florestas densas. Tudo ficou pequeno e perto. A ilha está ligada a Paranaguá por uma ponte que pode ser atravessada a pé em minutos. Fui lá. Já tem praça, igreja e casas. A floresta, sei hoje, era um extenso manguezal. Uma área imensa dele foi urbanizada. Cresceu lá uma espécie de nova Paranaguá. A cidade, hoje, está desfigurada. Ela existe em função do porto. O trem de passageiros não chega mais à estação abandonada e em ruínas. Apenas trens de carga.  

Estação ferroviária de Paranaguá

TEMPESTADE NO DESERTO

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