terça-feira, 3 de agosto de 2021

PARANAGUÁ (I)

Arthur Soffiati

Morei 3 anos e 8 meses em Paranaguá. Meu pai era militar e foi transferido de Curitiba para chefiar o Serviço de Embarque do Exército lá. Nunca soube o que o Exército tinha a ver com transporte aquático. Fomos morar numa casa de dois andares no centro histórico da cidade, voltada para o rio Itiberê. Na outra margem, eu via a ilha dos Valadares coberta com densa vegetação. Mais tarde, vim a saber tratar-se de mangue. Aquela ilha parecia muito distante e desabitada. Era a primeira metade dos anos de 1950. Eu era criança.

A imensa casa era dividida em duas. Do lado esquerdo de quem olhava o rio, era a parte habitada pela minha família: pai, mãe, eu e um irmão quase quatro anos mais novo. Do lado direito, morava outra família: o sargento Nelson, Santa (como era chamada sua esposa), Valdívia e Arialba, suas filhas. Na parte de baixo, ficava o Serviço de Embarque, onde o Tenente Soffiati, meu pai, e o Sargento Nelson trabalhavam.

Nossa casa tinha um grande quarto com uma sacada voltada para o rio. Logo em seguida, havia uma saleta com uma porta que dava para uma área onde uma escada descia até a margem do rio, onde passava uma rua. Logo depois, uma grande sala usada para as refeições mais cerimoniosas e para receber visitas. Essa sala se comunicava com uma cozinha imensa, onde havia um fogão de lenha. De um lado dessa cozinha, ficava outro quarto, usado por minha mãe para ministrar aulas de balé. Ela instalou lá uma barra apropriada para as aulas. Do outro lado da cozinha, ficava um banheiro bastantes antigo, onde havia uma banheira com pés simulando um animal. Sobre ela, um chuveiro.

Na cozinha, havia uma porta que dava acesso ao quintal em dois planos. Nos fundos dele, ficava um portão que permitia alcançar a rua dos fundos. Nela, havia um cinema de cujo nome não lembro mais. Na próxima rua paralela, funcionava o cinema Santa Helena. Nós, crianças, frequentávamos esses cinemas nos fins de semana. Neles, inclusive os cachorros das famílias entravam. De dia, os dois exibiam seriados e filmes B acessíveis a crianças. À noite, os filmes destinavam-se a adultos.

Eu passava os dias no quintal. Havia no plano baixo uma árvore em meio a um terreno cimentado. Na parte alta, ficavam a horta e as galinhas. Maria era uma mulher jovem, negra e opulenta que trabalhava para nós. Certa vez, ela degolou uma galinha na minha frente. Fiquei traumatizado e desmaiei. Até hoje desmaio com sangue e não consigo comer nenhum tipo de ave. Creio que meus pânicos começaram com aquela violência de Maria cometida contra uma ave. Ela em si era nossa segunda mãe. Eu adorava seu colo farto e quente. Quando nos mudamos para o Rio de Janeiro, em 1956, eu chorei muito por deixar Maria.

Na parte alta do quintal, eu criava um jaboti que sumia por semanas e até meses. Eu não tinha ideia de onde ele se escondia. Não havia esconderijos naquele quintal. Por mais de uma vez, considerei que ela havia fugido ou morrido, mas ele sempre voltava. Pensando que ele gostava de água, quase o matei colocando-o para nadar na banheira por horas.

No quintal, eu também brincava sozinho. Fazia uma cidade com varetas, caixas de fósforo e carrinhos de plástico. Eu tinha uma paciência inesgotável para os detalhes da cidade. Hanz, um alemão amigo do meu pai, vaticinava que eu seria engenheiro. Certa vez, fiz uma câmara para exibir filme com uma caixa de Mate Leão e ganhei dele umas moedas como prêmio.

No quintal, eu também brincava de casinha com Valdívia e Arialba. Eu era casado com Valdívia. Andava de mãos dadas com ela, que me dava beijos. Certa vez a empurrei e ela caiu de costas no chão. Fiquei nervoso e chorei pensando que ela tinha morrido. Ela levantou e não falou nada para sua mãe. Dona Santa adorava minha mãe. Chamava-a de santa Nylce. Tratava-se uma pessoa emocionalmente frágil, ao passo que minha mãe tinha uma força espiritual acentuada.

Voltei a Paranaguá em 1973. Pareceu-me que a cidade havia encolhido. Eu é que havia me tornado adulto, com quase trinta anos de idade. A casa em que morávamos estava lá. Não pude entrar. Estava fechada sem nenhum morador. Andei no quarteirão em torno dela. Reconheci o território em linhas gerais, mas ele havia mudado muito. Não posso exigir o congelamento do espaço.

Voltei a Paranaguá em 2016. Ao descer do ônibus proveniente de Morretes, senti-me desorientado. Não sabia mais que lugar era aquele. Mas um táxi me levou à parte histórica da cidade. Com grande dor, encontrei apenas a fachada da minha casa. Toda ela havia desmoronado. Meu passado voltou. Vi a vida que existiu dentro dentro dela. Ali, houve vida além daquela vivida por minha família. Houve uma pessoas que viveram na cidade e viveram a cidade. Continuarei a lembrar de Paranaguá em breve, agora da sacada e da área. Da casa para fora. Nela, na cidade e nos arredores, viverei até o fim da minha vida. 



Casa em que morei em Paranaguá

CRISE AMBIENTAL DA ATUALIDADE

 La Voz de Galicia 02/08/2021


Nos primeiros días da vida, as bacterias aeróbicas, profundas nos océanos, producían unha atmosfera adecuada para a multiplicación e diversificación dos seres vivos. Foi un cambio climático importante que favoreceu os organismos aerobios e produciu unha retracción dos organismos anaerobios.

Millóns de anos despois, unha nova especie animal revelou unha gran capacidade para producir adaptacións extracorpóreas (a cultura no seu conxunto) e alcanzar un alto nivel de conciencia. Esta especie, autodenominada Homo sapiens, gañou un gran dominio sobre a Terra no Holoceno (últimos dez mil anos), domesticando plantas e animais, creando agricultura e pastoreo. Desenvolveu a arte do tecido e da metalurxia; dividiu as sociedades en gobernantes e gobernou, inventou a cidade; explorou a natureza máis alá dos seus límites.

Esta exploración, nalgunhas civilizacións, provocou crises ambientais. En xeral, tales crises eran locais e case sempre reversibles. A partir do século XI, unha destas civilizacións, a occidental, inventou a economía de mercado que, a partir do século XV, comezou a dominar o mundo coa súa expansión. O planeta foi occidentalizado, dando lugar ao que se chama globalización. Occidente non só chocou con outras sociedades, senón tamén coa natureza.

Vivimos hoxe nunha crise ambiental sen precedentes no Holoceno e na historia da vida. Crise de proporcións globais e quizais irreversible. Esta crise maniféstase polo cambio climático derivado das actividades económicas; polo empobrecemento da biodiversidade; ao acelerar os ciclos de fósforo e nitróxeno; por uso excesivo e contaminación de auga doce; pola acidificación e contaminación oceánica; pola contaminación do aire e do solo; pola destrución dos ecosistemas forestais; pola gran produción de obxectos de plástico desbotables; para a impermeabilización dos solos e para a construción de grandes cidades que invaden zonas de risco en elevacións, nas beiras dos ríos e nas beiras dos océanos.

Mantendo a economía de mercado ao seu ritmo acelerado actual, a crise manifestarase cada vez con máis intensidade, como se viu en 2021 no Círculo Antártico, no centro-sur de América do Sur, nos Estados Unidos e Canadá, no noroeste de Europa, Grecia e Turquía, Siberia, China e Xapón. Ocupando parte de Europa, Galicia non está exenta de catástrofes causadas por unha economía globalizada, como xa se pode ver en relación ás flutuacións climáticas, o desbordamento dos ríos e o avance do mar sobre a costa zona.

A economía de mercado ten algunhas alternativas, como un automóbil que sae dun penedo: avanzar e caer no abismo; de súpeto afunde o pé no freo, provocando un envorco ou frea suavemente o vehículo para cambiar de rumbo.

 

Nos primórdios da vida, bactérias aeróbicas, no fundo dos oceanos, produziram uma atmosfera apropriada para a multiplicação e diversificação dos seres vivos. Foi uma grande mudança climática que favoreceu os organismo aeróbicos e produziu a retração dos organismos anaeróbicos.

Milhões de anos depois, uma espécie animal nova revelou grande capacidade de produzir adaptações extra-corporais (cultura, em seu conjunto) e de alcançara alto nível de consciência. Essa espécie, autodenominada de Homo sapiens, ganhou grande domínio sobre a Terra no Holoceno (últimos dez mil anos), domesticando plantas e animais, criando a agricultura e o pastoreio. Desenvolveu a arte da tecelagem e da metalurgia; dividiu as sociedades em dominadores e dominados, inventou a cidade; explorou a natureza além de seus limites.

Essa exploração, em algumas civilizações, provocou crises ambientais. No geral, tais crises eram locais e quase sempre reversíveis. A partir do século XI, uma dessas civilizações - a ocidental - inventou a economia de mercado, que, a partir do século XV, começou a dominar o mundo com sua expansão. O planeta foi ocidentalizado, dando origem ao que se chama de globalização. O ocidente não se chocou só com outras sociedades, mas também com a natureza.

Vivemos hoje uma crise ambiental sem precedentes no Holoceno e na história da vida. Crise de proporções globais e talvez irreversível. Essa crise se manifesta pelas mudanças climáticas derivadas de atividades econômicas; pelo empobrecimento da biodiversidade; pela aceleração dos ciclos de fósforo e nitrogênio; pelo uso excessivo e pela contaminação da água doce; pela acidificação e pela poluição dos oceanos; pela poluição do ar e do solo; pela destruição dos ecossistemas florestais; pela grande produção de objetos plásticos descartáveis; pela impermeabilização dos solos e pela construção de grandes cidades que invadem áreas de risco em elevações, em margem de rios e orla dos oceanos.

Mantendo a economia de mercado no atual ritmo de aceleração, a crise vai se manifestar cada vez com mais intensidade, como se viu em 2021 no círculo polar antártico, no centro-sudeste do América do Sul, nos Estados Unidos e no Canadá, no noroeste da Europa, na Grécia e na Turquia, na Sibéria, na China e no Japão. Ocupando parte da Europa, Galícia não está livre de catástrofes causadas por uma economia globalizada, como já se pode ver com relação às oscilações climáticas, ao transbordamento de rios e ao avanço do mar sobre a zona costeira.

A economia de mercado tem alguns alternativas, assim como um automóvel em alta velocidade em direção a um precipício: seguir adiante e cair no abismo; afundar o pé no freio de forma repentina, provocando capotagem ou frear o veículo com suavidade para mudar de rumo.   

02/08/2021  

FRIO E RESSACA

Arthur Soffiati

Vivemos esses dias dois fenômenos climáticos: uma forte onda de frio, a mais forte desse inverno até aqui, e ressacas na costa do Sudeste. Para nós, ressecas entre Macaé e Atafona. Já estamos acostumados com as ressacas. Acreditamos até que elas sejam um fenômeno natural que atinge periodicamente a costa norte fluminense. Sim, é natural, mas está sendo potencializado pelas mudanças climática. O aquecimento global está provocando o derretimento de geleiras no mundo todo, principalmente nas calotas polares, o que eleva o nível dos mares. Quando acontecem as ressacas, elas se mostram mais intensas. No Farol, elas avançaram sobre a praia e formaram falésias de areia.
Mas pensem que poderia ser pior ou pode ainda ser o princípio de um novo tempo: um novo aquecimento global como o que ocorreu há 5.100 anos passados e fez o mar avançar até a lagoa de Cima. Ele subiu pelo rio Paraíba do Sul e desmanchou todo o continente. A baixada virou mar. Não foi de repente. Foi como agora em Atafona: o mar foi subindo aos poucos, destruindo casas e avançando. Sua expansão levou cerca de 200 anos.
A diferença entre o avanço antigo e o atual é que o antigo foi provocado por mudanças climáticas naturais e a atual está sendo provocada por atividades praticadas pelos humanos no mundo todo que lançam gases na atmosfera, gases que a aquecem e a secam. Mas muita calma nessa hora. O mar vai levar muito tempo para continuar subindo, se de fato subir. Como os habitantes da região não podem frear o aquecimento global, é preciso pensar o que fazer no local. Já existem duas propostas.
Quanto ao frio, ele também deriva do aquecimento global. Mas isso não parece um contrassenso? A Terra esquentando e havendo ondas de frio de vez em quando? Não. O aquecimento descontrola todo o sistema atmosférico. Então, quando uma massa fria acontece, o frio se torna mais intenso.
Não reclamem. Lembrem-se de que também somos responsáveis pelo que está acontecendo. O novo tempo começou. Procurem se adaptar a ele.




domingo, 1 de agosto de 2021

RIBEIRÃO DE TATAGIBA

 Arthur Soffiati

Como todos os outros sistemas hídricos com leitos embutidos no tabuleiro, o ribeirão do Largo era flanqueado e guarnecido por densas florestas estacionais. Um mapa da Capitania do Rio de Janeiro, de autor desconhecido, datado de 1747, já mostra o Sertão das Cacimbas ornado de matas (Publicado em LAMEGO. Alberto Ribeiro. O Homem e o Brejo, 1ª e 2ª eds. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1945; Lidador, 1974). Pelos rastros deixados no terreno, o Tatagiba é a segunda bacia em área no interior da unidade setentrional de tabuleiro, entre os rios Itabapoana e Paraíba do Sul exclusive, como mostra a Carta do Brasil IBGE (IBGE. Carta do Brasil: folhas Barra Seca (SF-24-G-II-4) e Itabapoana (SF-24-H-I-3). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1967).

Seu curso alto recebe o nome de córrego Baixa do Arroz e a bacia como um todo era alimentada por vários afluentes. Assim, o ribeirão de Tatagiba desembocava na praia de mesmo nome (IBGE. Carta do Brasil: Folhas SF-24-H-I-3 (Itabapoana) e SF-24-G-II-4 (Barra Seca). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1967).

Um exame minucioso do sistema hídrico mostra que ele foi seccionado pela rodovia RJ-196 e por uma estrada municipal sem passagens adequadas para o fluxo d’água, como pontes e bueiros celulares devidamente dimensionados. Além do mais, os trabalhos de lavra da INB barraram sua foz. O ribeirão se transformou numa pujante lagoa alongada com águas fortemente eutrofizadas por matéria orgânica vegetal. Nutrientes associados à intensa insolação promoveram o desenvolvimento de plantas herbáceas e mesmo arbustivas (macrófitas). Com as chuvas mais fortes e demoradas, o sistema transborda sobre lavouras, pastos, estradas e prédios. A solução encontrada pelos moradores de Tatagiba e pelo poder público municipal foi abrir uma vala junta a RJ-196 ligando o ribeirão ao mar no ponto em que eles mais se aproximam. A vazão é muito forte, denotando o grande volume de água represado. A vala permanece aberta durante todo o ano, segundo informações dos moradores, com maior ou menor vazão. Nela, pescadores amadoristas lançam anzóis e tarrafas. Na desembocadura, pratica-se um turismo de baixa renda.

  A vala fazia uma curva em direção à praia de Tatagiba, correndo paralelamente a ela, até se dirigir para o mar. As marés criaram, no trecho final da vala, um pequeno estuário propício ao enraizamento de plantas de mangue. Em 1999, foram detectadas plântulas de Laguncularia racemosa, Avicennia germinans e Rhizophora mangle em crescimento. Havia um manguezal em formação. Até nas partes mais altas, que a maré não alcança, abunda o inimbói (Guilandina bonduc) planta de restinga ou de apicum (SOFFIATI, Arthur. Entre Câncer e Capricórnio: Argumentos em Defesa dos Manguezais do Norte do Estado do Rio de Janeiro – Brasil. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil, 1999). 

 Plântulas de L. racemosa, A. germinans e R. mangle. Foz da vala que conecta o ribeirão de Tatagiba ao mar. Foto do autor (04/06/1999)

O manguezal infantil era a evidência de que uma faixa deste ecossistema deveria revestir toda a orla entre os rios Itabapoana e Guaxindiba nas desembocaduras dos inúmeros córregos que se lançavam permanente ou periodicamente ao mar. Permanecendo aberta a vala que sangra o ribeirão de Tatagiba, é de se esperar que um manguezal ressurja, primeiro alimentado por propágulos transportados do rio Itabapoana pela corrente marinha norte-sul, predominante naquele trecho da costa, segundo Muehe e Valentini (MUEHE, Dieter e VALENTINI, Enise. O Litoral do Estado do Rio de Janeiro: uma Caracterização Físico-Ambiental. Rio de Janeiro: Fundação de Estudos do Mar, 1998).

Depois, por auto-alimentação, nas dimensões permitidas pelo ambiente, ali onde suas águas se encontram com o oceano. Entretanto, o pisoteio de frequentadores da praia não permitiu que as plantas do pequeno manguezal sobrevivessem no corpo principal da vala. Mesmo assim, deve-se sempre apostar na capacidade que o manguezal apresenta de se desenvolver em condições adversas. Por ventura, por força de vazão maior na vala, esta se bifurcou. O braço principal continuou a desembocar no mar depois de se curvar em direção a ele. O braço secundário alongou-se paralelamente à praia e criou um canal sem saída para as água. Sofrendo influência das marés altas, formaram-se ali condições para o desenvolvimento de um pequeno bosque de mangue protegido do pisoteio de turistas. Pelo menos, propágulos de Laguncularia  racemosa e de  Avicennia germinans fixaram-se nessa bifurcação da vala e cresceram junto a plantas de restinga, como Dalbergia ecastaphyllum e guaxuma ou algodoeiro-da-praia (Talipariti pernambucense) 

O Departamento Nacional de Obras e Saneamento, nascido da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense e que viveu entre 1940 e 1989, pulou a região entre os rios Guaxindiba e Itabapoana. Embora não sofrendo a ação do órgão federal, pegadas humanas de outras atividades produziram transformações profundas no território. É possível acompanhar o ribeirão de Tatagiba em suas linhas sinuosas, mas quem o percorre da nascente à foz não mais encontrará em seu vale senão um ou outro fragmento da ancestral e vigorosa floresta estacional. Hoje, o espaço está ocupado por lavouras de cana, mandioca, abacaxi, maracujá e por pastos. A erosão decorrente da supressão florestal deve ter contribuído sobremodo para empantanar os leitos da bacia. Em vários pontos, o curso foi bloqueado por barragens com o fim de represar água para as atividades agropecuárias (SOFFIATI, Arthur. “A pressão de atividades rurais e urbanas sobre os manguezais situados entre os rios Itapemirim (ES) e São João (RJ)”. Anais do X Congresso Mundial de Sociologia Rural. Rio de Janeiro: Unicamp/Irsa/Sober, 30/07-05/08/2000). No entanto, as interferências mais danosas ao ecossistema foram a lavra de terras raras e construção da rodovia RJ-196, que, se não interrompeu de todo o fluxo hídrico de uma para outra seção do sistema, estreitou seu leito com bueiros e retardou o deslocamento das águas, já de si com volume reduzido por outras atividades.

Não há outro caminho para confirmar ou infirmar a presença de um manguezal na foz do ribeirão de Tatagiba quando de sua vedação pelos trabalhos da INB senão o recurso à sedimentologia e à palinologia. Por inferência, pode-se aventar que, assim como um manguezal começou a se formar após a abertura recente da barra da vala, um manguezal deveria existir na foz primitiva.

A partir dessas observações, pode-se concluir que a resposta do antigo manguezal porventura existente na foz do ribeirão de Tatagiba sucumbiu por falta das condições necessárias a sua existência. Ao perder as matas ciliares, o ecossistema aquático continental perdeu também uma rica fonte de nutrientes constituída por matéria orgânica vegetal. Ao perder a manta florestal, o solo ficou exposto às intempéries e tornou-se mais vulnerável às forças erosivas, como a chuva e o vento. Ao sofrer erosão em suas margens, a bacia deve ter sofrido intenso processo de assoreamento, agravado pela pequena circulação das águas em seu interior por ação de barragens. Ao perder água por aumento de evaporação e por drenagem, a vazão diminuiu e debilitou-se. Assim, a vedação da foz provocada por ação humana transformou um rio numa volumosa lagoa.

Talvez, antes que as condições necessárias mínimas à existência de um manguezal desaparecessem, tenha ocorrido a estabilização vertical da lâmina d’água, como se pode verificar ainda hoje a montante da passagem sob a estrada RJ-196; a dulcificação do sistema, propiciando a invasão de plantas aquáticas de nenhuma ou de baixa tolerância ao sal, como também se pode observar no brejo; o enriquecimento térmico das águas estagnadas ou semi-estagnadas, criando dificuldades para as espécies exclusivas de manguezal; a eutrofização da bacia pelo aporte de matéria orgânica e de fertilizantes químicos. Estes fatores atuando sinergicamente levaram o manguezal a finalmente perecer. Agora, a recriação involuntária de alguns destes fatores está permitindo o seu retorno. O bosque formado na bifurcação da vala auxiliar merece proteção do poder público. 

Novo manguezal na vala de Tatagiba. Foto do autor (24/07/2021)

TEMPESTADE NO DESERTO

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