quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

CERÂMICA MARAJOARA

Arthur Soffiati

            Há uns quarenta anos, entendo que a cultura material de uma sociedade reflete sua cultura imaterial. Aos poucos, fui entendendo que existe uma relação dialógica entre cultura imaterial e cultura material. Uma interfere na outra, produzindo transformações em ambas. É algo distinto do que concebia Hegel, para quem o jogo dialético transcorria no mundo das ideais com reflexos na esfera material. É também algo distinto do que pensava Marx, que entendia o mundo das ideias como produto da dialética das forças materiais. Edgar Morin percebeu um jogo dialógico, segundo o qual a cultura imaterial cria a cultura material que cria a cultura imaterial.

            Um exemplo claro é o da cultura do Egito antigo. A arquitetura, a escultura e a pintura não são obras de diletantismo, mas expressam o espírito daquela civilização e suas transformações ao longo do tempo. Pode haver difusão de valores culturais de um povo para outro, mas o que faz empréstimo entende a cultura credora a sua maneira, ressistematizando o empréstimo. O historiador profundo é aquele que parte da cultura material para alcançar e interpretar a cultura imaterial. A cultura material de uma sociedade extinta não chega íntegra ao presente. Sempre há perdas. Então, é preciso partir do que restou para reconstituir o que se perdeu. A partir daí, é necessário alcançar a cultura imaterial.

            O que noto nos arqueólogos é que eles são propensos a tomar a cultura material restante de um povo como objeto e se contentar com ela, examinando padrões de constituição e área de difusão. Por essa razão, os capítulos do livro “Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese” (Belém: IPHAN, 2016) não respondem às minhas perguntas porque a maioria deles se contenta em examinar o material cerâmico (cultura material) em si.

            Na minha excursão a Soure, ilha de Marajó, encontrei pequenos fabricantes de cerâmica marajoara para venda a turistas. Em várias lojas, essa cerâmica é encontrada. Comprei algumas peças por simples deferência. Comprei também um livro do padre Giovanni Gallo (“Motivos ornamentais da cerâmica marajoara”. Cachoeira do Arari, PA: Museu do Marajó, 2005) destinado a ensinar os motivos da arte marajoara para bordado e tapetes. Os imitadores talvez alcancem mais perfeição em reproduzir a arte marajoara que seus próprios criadores, mas falta-lhes o espírito da cultura imaterial que produziu a arte original. Inclusive, mestiços de índios (existem muitos na Amazônia) usam um discurso de misticismo para vender suas peças.

Cristiana Barreto é autora de “O que a cerâmica marajoara nos ensina sobre o fluxo estilístico na Amazônia?”, inserido no livro de arqueologia que mencionei aqui. Do seu texto, fiz apenas dois destaques. Primeiro: “As análises iconográficas que realizamos com peças inteiras de cerâmicas Marajoara (...) confirmam a ênfase na relação humano-animais (...) também aproximam as formas de representação e linguagens estilísticas Marajoara às artes típicas de sociedades ‘contra estado’, com um ethos mais caçador-coletor, onde predominam ontologias perspectivistas e práticas xamânicas de transformação corporal.”

Autêntica cerâmica marajoara

Tentando traduzir, a autora vislumbra nas cerâmicas da ilha representações que nos levam a crer numa atitude perspectivista dos povos que a produziram. O perspectivismo é uma proposta do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que, em síntese, atribui aos povos indígenas da América uma concepção segundo a qual humanos e animais partilham a mesma cultura, mas não a mesma natureza, pois a constituição anatômica das várias espécies percebe a natureza de formas diversas. E só os xamãs podiam fazer contato entre humanos e animais. Vivos e mortos. Em se tratando de sociedades que repeliam o Estado, como defendeu o antropólogo francês Pierre Clastres, cabem algumas reflexões. Pelo que sei, a cerâmica marajoara mais conhecida corresponde à quarta fase cultural desenvolvida na ilha. Ela pressupõe uma organização social e política elaborada para liberar do trabalho braçal os artesãos. Nunca existiu na ilha um Estado como o conhecemos, mas alguma forma de organização política, ainda que em nível neolítico, deve ter existido para sustentar tão grande população, promover tanques para a criação de peixes, planos elevados (tesos), diques, habitações e a famosa cerâmica. 

Segundo: “... sugerimos que a complexidade da cerâmica Marajoara não seja necessariamente resultante de processos de intensificação da complexidade social e hierarquização, mas sim da complexidade, diversidade e extensão das redes de interação social e fluxo estilístico em que estavam inseridas estas sociedades.” O que sugere a autora é que houve mais complexidade nas trocas que na organização social entre 350 e 1400 anos da era cristã na ilha. Não há dúvida de que as trocas culturais foram muitas. No vale do rio Napo, no Equador, foi encontrada uma cerâmica muito semelhante à quarta cerâmica de Marajó, o que nos leva a pensar em trocas de longa distância. Mas os elementos trocados eram ressistematizados por cada sociedade, o que implica em organização social elaborada.

Cerâmica napo

As fases cerâmicas de Ananatuba, Mangueiras, Formigas, que precederam a fase Marajoara, também receberam influências externas e as adaptaram a realidades sociais próprias. Assim, devemos considerar os planos horizontal (difusão) e vertical (ressistematização), dando mais importância ao segundo.


segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

ARQUIPÉLAGO DE MARAJÓ

 Arthur Soffiati

            Ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados? Creio que esta definição ensinada nas escolas não serve mais. Uma ilha não é uma boia flutuante com uma âncora a impedi-la de navegar. Ilha tem suporte no fundo do mar, do rio ou do lago. Sendo assim, ilha é terra que emerge. Por isso, ela não se desloca como um navio, embora processos erosivos possam moldá-la, reduzindo ou aumentando sua área. Atualmente, ilhas oceânicas estão perdendo território pela elevação do nível do mar. Já se pensa em construir ilhas flutuantes ancoradas que possam deslocar-se à medida que o nível das águas se eleve.

            Examinando o arquipélago de Marajó num mapa ou numa imagem aérea, tem-se a impressão de que ele resulta do confronto do continente com o rio Amazonas na foz e com o mar. Ele se constitui com cerca de 2.500 ilhas, todas de baixa altitude. O ponto mais elevado do arquipélago alcança apenas 15 metros. Trata-se do maior conjunto de ilhas fluviomarinha do mundo. A maior delas é a ilha de Marajó, com 42 mil km². As ilhas grandes e médias do arquipélago são 22. 

Arquipélago de Marajó

            Se uma ilha não é uma porção de terra cercada de água por todos os lados, um lago também não é uma porção de água cercada de terra por todos os lados. Um lago tem um leito, um fundo. Portanto, um lago, na definição mais simples, é um acúmulo de água numa cavidade, por mais profunda que ela seja. Dizem que a Terra tem 1/4 de continente e 3/4 de oceano. Não é bem assim. A dimensão dos continentes e dos oceanos varia com as fases geológicas. Até o início do Holoceno, em torno de 10 mil anos passados, os continentes eram mais extensos que atualmente, pois o nível dos mares era mais baixo. Sob os oceanos, há leito formado de rochas. As ilhas vulcânicas se enraízam no fundo, como outras ilhas também.

            Visitei a ilha de Marajó recentemente. Saímos de Belém e navegamos quatro horas numa lancha até o porto de Camará, onde embarcamos num micro-ônibus em direção a Soure. Atravessamos o rio Paracauri numa balsa impulsionada por um rebocador e chegamos a Soure. De lá, conhecemos o que era possível em alguns dias de estada.

            Já na travessia de lancha de Belém a Marajó, atentei para a paisagem nativa. A extensão de água é de tamanha imensidão que se pensa estar no mar. Na verdade, estamos num estuário, ambiente formado pelo encontro da água doce do rio Amazonas com a água salgada do mar. Num estuário, a água do rio ganha salinidade e a do mar a perde. Trata-se de um ambiente aquático ideal para o desenvolvimento de manguezais, bosques formados por plantas navegadoras que se enraízam em terras alagáveis de estuários. Elas se adaptaram à água salobra, fugindo da competição representada por plantas terrestres. Para tanto, tiveram de adaptar-se ao novo ambiente. O manguezal ocorre na zona intertropical, não passando muito além e aquém dos Trópicos de Câncer e de Capricórnio.

            Poeticamente, eu diria que a definição para as ilhas do arquipélago de Marajó é uma porção de terra cercada de mangue por todos os lados. No miolo das ilhas, crescem ecossistemas do Bioma Amazônico: florestas de terra seca, florestas de terras alagadas, florestas de terras alagáveis, campos, vegetação de restinga (embora eu não tenha encontrado nenhuma restinga típica), manguezal e lagos. De todos, destaca-se o famoso lago Arari, no centro-leste da ilha. Ele está ligado ao rio Amazonas por um afluente que eu gostaria de ter navegado até o lago. Não houve tempo para eu conhecer todos os lugares que desejava. 

Manguezal na ilha de Marajó

            Mas os manguezais do arquipélago de Marajó têm muito a ensinar aos estudiosos desse ecossistema. Ele, o manguezal, não se enquadra nas definições que encontro nos livros. Notadamente, os manguezais do arquipélago de Marajó. Visitei apenas um trecho muito pequeno do litoral da ilha de Marajó. Não sou biólogo nem especialista em manguezal. Apenas venho estudando as relações das sociedades humanas com esse curioso ecossistema ao longo do tempo. No arquipélago de Marajó, diversas sociedades nativas e a sociedade ocidental adaptada ao Brasil relacionaram-se com os manguezais. Como foram as relações dessas sociedades com os manguezais? Não conheço estudos profundos sobre o tema.

            Concluo afirmando que os manguezais são maiores do que ensinam os estudiosos. Na verdade, percebo que eles, os estudiosos, acabam reduzindo os manguezais de forma a melhor compreendê-los. A redução é uma operação cerebral muito comum para apreender a realidade. Mas a empobrece quanto à sua complexidade. Os manguezais do arquipélago de Marajó, notadamente de um trecho desta ilha, contribuíram para que eu ampliasse meus conhecimentos sobre eles ou para que aprendesse mais sobre o assunto.

BODAS DE PRATA

                              Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 15 de março de 2025   Arthur Soffiati             Entre 1997 e 2001...