Arthur Soffiati
Há
uns quarenta anos, entendo que a cultura material de uma sociedade reflete sua
cultura imaterial. Aos poucos, fui entendendo que existe uma relação dialógica
entre cultura imaterial e cultura material. Uma interfere na outra, produzindo
transformações em ambas. É algo distinto do que concebia Hegel, para quem o
jogo dialético transcorria no mundo das ideais com reflexos na esfera material.
É também algo distinto do que pensava Marx, que entendia o mundo das ideias
como produto da dialética das forças materiais. Edgar Morin percebeu um jogo
dialógico, segundo o qual a cultura imaterial cria a cultura material que cria
a cultura imaterial.
Um
exemplo claro é o da cultura do Egito antigo. A arquitetura, a escultura e a
pintura não são obras de diletantismo, mas expressam o espírito daquela
civilização e suas transformações ao longo do tempo. Pode haver difusão de
valores culturais de um povo para outro, mas o que faz empréstimo entende a
cultura credora a sua maneira, ressistematizando o empréstimo. O historiador
profundo é aquele que parte da cultura material para alcançar e interpretar a
cultura imaterial. A cultura material de uma sociedade extinta não chega
íntegra ao presente. Sempre há perdas. Então, é preciso partir do que restou
para reconstituir o que se perdeu. A partir daí, é necessário alcançar a
cultura imaterial.
O
que noto nos arqueólogos é que eles são propensos a tomar a cultura material
restante de um povo como objeto e se contentar com ela, examinando padrões de
constituição e área de difusão. Por essa razão, os capítulos do livro
“Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese” (Belém: IPHAN,
2016) não respondem às minhas perguntas porque a maioria deles se contenta em
examinar o material cerâmico (cultura material) em si.
Na
minha excursão a Soure, ilha de Marajó, encontrei pequenos fabricantes de
cerâmica marajoara para venda a turistas. Em várias lojas, essa cerâmica é
encontrada. Comprei algumas peças por simples deferência. Comprei também um
livro do padre Giovanni Gallo (“Motivos ornamentais da cerâmica
marajoara”. Cachoeira do Arari, PA: Museu do Marajó, 2005) destinado a ensinar
os motivos da arte marajoara para bordado e tapetes. Os imitadores talvez
alcancem mais perfeição em reproduzir a arte marajoara que seus próprios
criadores, mas falta-lhes o espírito da cultura imaterial que produziu a arte
original. Inclusive, mestiços de índios (existem muitos na Amazônia) usam um
discurso de misticismo para vender suas peças.
Cristiana Barreto é autora de “O que a cerâmica marajoara nos ensina sobre o fluxo estilístico na Amazônia?”, inserido no livro de arqueologia que mencionei aqui. Do seu texto, fiz apenas dois destaques. Primeiro: “As análises iconográficas que realizamos com peças inteiras de cerâmicas Marajoara (...) confirmam a ênfase na relação humano-animais (...) também aproximam as formas de representação e linguagens estilísticas Marajoara às artes típicas de sociedades ‘contra estado’, com um ethos mais caçador-coletor, onde predominam ontologias perspectivistas e práticas xamânicas de transformação corporal.”
Tentando
traduzir, a autora vislumbra nas cerâmicas da ilha representações que nos levam
a crer numa atitude perspectivista dos povos que a produziram. O perspectivismo
é uma proposta do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que, em síntese,
atribui aos povos indígenas da América uma concepção segundo a qual humanos e
animais partilham a mesma cultura, mas não a mesma natureza, pois a
constituição anatômica das várias espécies percebe a natureza de formas diversas.
E só os xamãs podiam fazer contato entre humanos e animais. Vivos e mortos. Em
se tratando de sociedades que repeliam o Estado, como defendeu o antropólogo
francês Pierre Clastres, cabem algumas reflexões. Pelo que sei, a cerâmica
marajoara mais conhecida corresponde à quarta fase cultural desenvolvida na
ilha. Ela pressupõe uma organização social e política elaborada para liberar do
trabalho braçal os artesãos. Nunca existiu na ilha um Estado como o conhecemos,
mas alguma forma de organização política, ainda que em nível neolítico, deve
ter existido para sustentar tão grande população, promover tanques para a
criação de peixes, planos elevados (tesos), diques, habitações e a famosa
cerâmica.
Segundo:
“... sugerimos que a complexidade da cerâmica Marajoara não seja
necessariamente resultante de processos de intensificação da complexidade
social e hierarquização, mas sim da complexidade, diversidade e extensão das
redes de interação social e fluxo estilístico em que estavam inseridas estas
sociedades.” O que sugere a autora é que houve mais complexidade nas trocas que
na organização social entre 350 e 1400 anos da era cristã na ilha. Não há
dúvida de que as trocas culturais foram muitas. No vale do rio Napo, no
Equador, foi encontrada uma cerâmica muito semelhante à quarta cerâmica de
Marajó, o que nos leva a pensar em trocas de longa distância. Mas os elementos
trocados eram ressistematizados por cada sociedade, o que implica em
organização social elaborada.
Cerâmica napo
As
fases cerâmicas de Ananatuba, Mangueiras, Formigas, que precederam a fase
Marajoara, também receberam influências externas e as adaptaram a realidades
sociais próprias. Assim, devemos considerar os planos horizontal (difusão) e
vertical (ressistematização), dando mais importância ao segundo.