Arthur Soffiati
Na Europa do século XVII, firmou-se
o ditado segundo o qual não havia pecado abaixo da linha do Equador. Gaspar
Barlaeus, historiador do Brasil holandês, confirmava o ditado. Era "Como
se a linha que divide o mundo em dois hemisférios também separasse a virtude do
vício". Tanto Sérgio Buarque de Holanda quanto seu filho Chico Buarque de
Holanda aproveitaram a máxima em livro e música.
O livro Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese,
organizado por Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima e Carla Jaimes Betancourt
(Belém: IPHAN/Ministério da Cultura, 2016) com o capítulo “Não existe neolítico
ao sul do Equador: as primeiras cerâmicas amazônicas e sua falta de relação com
a agricultura”, de Eduardo Góes Neves, professor da USP, é provocativo e motiva
discussão logo de início. Para começar o debate, examinemos um mapa-múndi. O
que conhecemos como neolítico, ou seja, período em que algumas sociedades
humanas se sedentarizaram com a domesticação de plantas e de animais,
encontra-se ao norte da linha do Equador. A agricultura e o pastoreio
permitiram vida sedentária e com ela a fundação de aldeias, a divisão sexual e
técnica do trabalho, a invenção da cerâmica, de artefatos de pedra polida, da
roda, da cestaria, da tecelagem e da metalurgia. Estavam lançadas as bases para
alcançar o que se chama de civilização.
Sucede, porém, que a passagem de uma
vida nômade no Paleolítico superior para uma vida sedentária no Neolítico não é
fruto do acaso, do voluntarismo e do ócio. Grupos constituídos pelo Homo sapiens existem há pelo menos 200
mil anos. É de se perguntar, então, por que vegetais e animais não foram
domesticados antes de 10 mil anos. Minha explicação provisória (sempre
provisória) é que o cérebro humano não estava ainda muito desenvolvido e não
responderia ao desafio representado pela passagem de um mundo frio para um
mundo quente, como aconteceu com o aquecimento planetário a partir de 11.700 anos
antes do presente.
O aquecimento natural do planeta foi
muito mais acentuado no norte do Equador que no sul. Daí a resposta ao desafio
ser mais intensa no hemisfério norte. No norte, as florestas existentes
recuaram e foram substituídas por savanas, estepes e desertos. No sul, as
mudanças ambientais não foram tão fortes como no hemisfério norte.
Mesmo assim, agricultura e pastoreio
foram inventados, abaixo do Equador, na América do Sul, na África, na Austrália
e na Polinésia. O que se pode verificar com certeza é que a agricultura desenvolveu-se
em toda a América do Sul. A domesticação de animais não tanto. A riqueza de
recursos naturais dispensou em grande parte o pastoreio. Na Amazônia, a
floresta provia sua grande população, estimada em 10 milhões de pessoas, com
recursos naturais. Mesmo assim, a arqueologia vem demonstrando que os povos
amazônicos desenvolveram técnicas de manejo florestal e práticas agrícolas
protegendo a floresta.
As tradições cerâmicas podem ter focos de criação, mas tudo indica que a difusão colocou em contato técnicas e temas de fabricação cerâmica da costa americana do oceano Pacífico ao Maranhão, passando pelos Andes. Eduardo Góes Neves identifica quatro centros originais de cerâmica: 1- Valdívia, no litoral equatoriano; 2- San Jacinto e Puerto Hormiga, no baixo rio Magdalena, Caribe Colombiano; 3- Mina e talvez Alaka, entre o Suriname e o golfão maranhense; e 4- Taperinha, no sambaqui fluvial homônimo, no rio Amazonas, perto da atual Santarém. De todas, a mais antiga cerâmica é a de Taperinha, com cerca de 7.000 anos. Lembremos que, no velho mundo, a mais antiga cerâmica conhecida é a de Jomon, no Japão, com 9.000 anos.
Cerâmica
Valdívia
O autor seguido informa que Betty
Meggers, no final da vida, notava a semelhança entre todas as tradições
cerâmicas entre a costa do Pacífico (onde hoje existe o país Equador) e o
Maranhão, pressupondo, assim, um centro único de produção de cerâmica, do qual
as técnicas e tecnologias de fabrico teriam se difundido por toda a extensão da
área delimitada. A cerâmica andina, não seria, portanto, a mais antiga. Ela teria
sido criada nas terras baixas do Pacífico e da Amazônia. A falta de pedra, na
Amazônia, teria sido compensada com terras plásticas.
Neves aventa a hipótese de que a agricultura na América meridional não foi tão importante como na Eurásia e que “não há uma correlação observada entre a domesticação de plantas e o início da produção cerâmica no novo mundo (...) É plausível supor que no Novo Mundo não houve pressões adaptativas para uma adoção rápida da agricultura, mesmo com um quadro de domesticação antiga de plantas, do mesmo modo que houve pouquíssima pressão para a domesticação de animais”.
Fragmentos
de cerâmica mina
Ele pondera, inclusive, que o milho
foi domesticado na Mesoamérica, na região do rio Balsas, em torno de 7000 anos,
espalhando-se rapidamente por todo o continente até a costa do atual Uruguai.
Quando Colombo esbarrou na América, em 1492, as plantas com maior dispersão no
continente eram o milho e o tabaco, cujos usos eram mais ligados à recreação e
a práticas religiosas. A conclusão do autor é a de que agricultura e cerâmica
não estão tão relacionadas na América como estão na Eurásia. Ele recomenda mais
pesquisa.
Resumindo, a agricultura, na
América, é mais antiga do que se supunha. Novas descobertas arqueológicas
mostram que ela não teve relevância apenas nos polos andino, maia, mexicano e
em áreas adjacentes a eles. Ela também foi pujante na Amazônia, num sistema que
associava manejo florestal e produção agrícola, sobretudo na confluência da
Amazônia com o Cerrado. A diversidade de plantas domesticadas foi maior que o
imaginado. Lembremos o milho, o cacau, o tabaco, o tomate, as batatas, as
abóboras, o aipim etc. O pastoreio não teve muita relevância talvez por grande
parte da fauna nativa ser recalcitrante à domesticação. As que se deixaram
domesticar foram poucas, como o lhama, a alpaca e o peru.
A produção cerâmica foi pujante em
quase toda a extensão do Novo Mundo. As áreas mais significativas são a América
do Norte, entre o sul dos Estados Unidos, e a América Central e a América
andina e amazônica. Mas a cerâmica se estendeu por uma área bem mais ampla do
território americano. Deve-se afastar o acaso e o diletantismo estruturais para
explicar a origem da agricultura, do pastoreio e da cerâmica na América. Se
agricultura e cerâmica americanas não aparentam relações estreitas, como na
Eurásia, é temerário pensar que ambas nasceram por diletantismo dos povos
americanos. Elas têm relação com o neolítico nas Américas, que apresenta
características singulares. Abaixo do Equador, não houve um resfriamento rápido
e intenso como acima dessa linha. As florestas e outros ecossistemas
compensaram a agricultura com recursos naturais.
Das sociedades neolíticas, nasceram
as civilizações, entendidas estas como sociedades com divisão territorial e
social do trabalho. Nelas, foram possíveis as especializações. Assim,
constituiu-se uma minoria governante e sacerdotal. Os militares cuidavam da
segurança interna e da guerra de defesa e de conquista. Os agricultores e
pastores estavam incumbidos da produção de alimentos. Os artesãos especializaram-se
na fabricação de artefatos de pedra polida, de cerâmica, de cestaria, de
tecelagem, de obras arquitetônicas e da contabilidade. A escrita não funda uma
civilização. É o contrário. Exige-se grande complexidade social para que a
escrita seja desenvolvida. Astecas e maias usaram escritas hieroglíficas. Os
incas não a desenvolveram.
Discute-se atualmente se povos da
Amazônia alcançaram o nível de civilização. A agricultura e o manejo de
florestas foram bastante aprimorados. Algumas tradições cerâmicas alcançaram
padrões de excelência, como a marajoara e a de Santarém. O polimento da pedra,
a cestaria e a tecelagem eram conhecidos. Contudo, a roda, prédios, núcleos
urbanos, estradas e escrita não. Certas tradições amazônicas ultrapassaram o
neolítico, mas não alcançaram o nível de civilização. É a conclusão
provisória.
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