Arthur Soffiati
Rios de Portugal
Rio
Minho
Fiz
uma breve enquete no Brasil com pessoas relativamente informadas. Perguntei
quais os rios de Portugal elas conheciam. A maioria só conseguiu lembrar do
Tejo. Algumas outras mencionaram também o Douro. Em Lisboa, andei sondando
quais rios estavam mais em evidência, sobretudo por conta de uma das frequentes
crises hídricas que os rondam periodicamente. Os listados pela reportagem são o
Minho, o Douro, o Mondego, o Tejo e o Guadiana.
Na
minha visita ao norte de Portugal, parti do Tejo e hospedei-me em Coimbra, às
margens do rio Mondego. Rumando ao norte, cruzei as desembocaduras no mar dos
rios Vouga, Douro, Leça, Ave, Cávado, Neiva, Lima e Minho. O curso final deste
último foi usado como fronteira entre Portugal e Galícia, na verdade, entre
Portugal e Espanha, já que a Galícia é uma das nacionalidades formadoras da
Espanha. Esclareço que meu conhecimento deles é superficial. Só os conheci no
estuário, ponto formado pelo encontro da água doce com a salgada. Acrescentei
informações obtidas em pesquisa.
Saindo
da Galícia, encontra-se o rio Minho (em espanhol e galego, Miño). Tem cerca de
340 quilômetros de extensão. É um rio pequeno perto dos rios considerados
pequenos no Brasil. O Paraíba do Sul é três vezes mais comprido que ele. Em sua
foz, ergueram-se Guarda, do lado da Espanha, e Caminha, do lado de Portugal.
Sua bacia é formada por muitos afluentes nas margens direita e esquerda. No seu
curso, também existem 14 ilhas, das quais quatro são internacionais, ou seja,
não pertencem a nenhum país. Esse aspecto é fantástico. Eu gostaria de pisar
território de ninguém. Não deu tempo.
Pesquisas
mostram que o Minho foi o mais piscoso rio da Península Ibérica até meados do
século XX. Cerca de três mil pescadores viviam dele. Era pródigo em salmões,
sáveis, lampreias, enguias, solhas, bogas, escalos e outros. Tratava-se de uma
diversidade famosa. Os pescadores desenvolveram técnicas de pesca que atendiam
ao consumo até mesmo no Brasil. Eram pesqueiras com boitirão e cabaceira, além
de algerife no arrasto, estacadas, tresmalho, redes de um pano, chumbeira,
nassas, palangres e canas. Contudo, as intervenções antrópicas visando a
ocidentalizar a bacia produziram um progressivo declínio da pesca. A bacia sofreu
represamentos e foi poluída. A sucessão de barragens criou lagos e impediu a
migração de peixes. A navegação por grandes embarcações, que se praticou desde
a Idade Média ao século XX, não é mais possível. Os brasileiros conhecem esse
drama em seus rios médios e pequenos.
Sua
foz conta com banhados excepcionais e está merecendo estudos da Unesco para
fins de proteção. Além dos barramentos e da poluição, a introdução da ameijoa
asiática produziu desequilíbrios ambientais.
Rio
Lima
Em latitude mais baixa que a do Minho, desemboca o rio Lima, que tem sua nascente a 975 metros de altitude. É também um rio pequeno se comparado aos pequenos rios do Brasil. Conta com 135 quilômetros de extensão e desemboca no mar. Várias pontes ligam as suas margens. As antigas são lindas em todos os rios de Portugal. Mas, como nos demais, o Lima foi barrado por três represas. Viana do Castelo, uma das mais importantes cidades portuguesas, ergueu-se em sua foz, onde molhes de pedra visam manter a navegação franqueada, pois, nela, constituiu-se um grande complexo portuário.
Rio Lima atravessado por antiga ponte
Rio
Neiva
Em direção ao sul, desemboca no Atlântico o rio Neiva. É também um rio pequeno. Ainda existem muitas florestas em seu vale, que também não é muito urbanizado. A foz conserva um aspecto nativo, embora seculares intervenções humanas tenham sido promovidas nele.
Aspecto sadio do rio Neiva
Rio
Cávado
O rio Cávado nasce a cerca de 1520 metros de altitude e chega ao mar
após percorrer 135 quilômetros. É mais um pequeno rio da Península
Ibérica. Oito barragens foram construídas no pequenino rio para a geração de
energia elétrica. O Cávado é mais um curso d’água domesticado para atender aos
interesses de uma economia de mercado. As pontes construídas em suas margens
são um mal menor. Algumas têm grande valor histórico, além de serem belas. Sua
foz também já foi estabilizada por guias-correntes.
Rio
Ave
Por sua vez, o rio Ave tem um curso de apenas 85 quilômetros entre a alta nascente e a foz no Atlântico. O canal Campos-Macaé é mais longo que ele. A origem do seu nome é muito discutida. Mas seu estado de degradação é flagrante. Muito poluído por efluentes industriais e domésticos, é considerado um rio morto, embora ainda exista vida nele. No Brasil, nós conhecemos bem essa situação. Vários rios e córregos que foram envolvidos por cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte parecem estar mortos pela poluição. Na foz do Ave, foram construídos guias-correntes. O governo português escolheu industrializar seu curso e matar a atividade pesqueira.
Queda d’água no rio Ave
Mindelo
Em meio a uma praia semideserta,
um córrego chega ao mar com dificuldade. Busquei seu nome nos mapas e a
informação obtida se aproxima a algo como rio da Igreja. O curso final do
riacho não é urbanizado. Um considerável trecho da costa tem o nome oficial de
“Paisagem
Protegida Regional do Litoral de Vila do Conde e Reserva Ornitológica de
Mindelo”. No total, são 380 hectares de área protegida pelo município de Vila
do Conde desde 2009.
A reserva protege dunas, rochedos, áreas úmidas e também agrícolas. O cientista Santos Júnior chamou a atenção para a sua importância ecológica na década de 1950, sobretudo pela avifauna. São 81 espécies de aves e 14 das 17 espécies de anfíbios de Portugal. Quanto à flora, ocorrem espécies endêmicas.
Paisagem Protegida
Regional do Litoral de Vila do Conde e Reserva Ornitológica de Mindelo
Onda
Logo abaixo, desemboca
no mar o pequenino rio Onda, com apenas 10 quilômetros de compirmento e uma
diminuta bacia.
O pequeno rio Onda,
rico em biodiversidade
Rio
Leça
Em relação aos rios do Brasil, o Leça é
também muito pequeno. Conta com apenas 48 quilômetros de comprimento. Sua
extensão corresponde à metade do canal Campos-Macaé. Ele integra uma bacia
regularizada para o fornecimento de recursos hídricos. A construção do porto de
Leixões, em fins do século XIX, representou um duro golpe para o rio. Mas sua
paisagem nativa já vinha sofrendo transformações profundas, com a supressão das
matas, a abertura de campos agropastoris e a construção de núcleos urbanos.
O que afetou profundamente o curso
final do Leça foi a industrialização. Perduram ainda os lançamentos de
efluentes sem o devido tratamento. O trecho entre a foz e a rodovia foi
retilinizado (ainda se emprega o verbo retificar para nomear essa operação),
alargado e aprofundado para o acesso de navios de grande calado. Um breve olhar
sobre a foz me fez lembrar do rio Trapiche, em Búzios, onde a instalação da
marina de Búzios desfigurou o pequeno rio. No Leça, foi pior. Além de
canalização, alargamento e aprofundamento, a foz foi aparelhada com
guias-correntes, a exemplo do canal do estaleiro do Açu, uma verdadeira
aberração. Aliás, no porto do Açu foi pior, pois um rio antes inexistente foi
aberto.
O rio Leça contraria o processo de
revitalização dos rios, em curso na Europa. Ele sofre poluição aguda e crônica,
sendo um dos mais poluídos do continente europeu.
Rio
Douro
O rio Douro também é problemático.
Nascendo a 2.160 metros de altitude, em terras da Espanha, ele tem um curso de
900 quilômetros aproximadamente. É, portanto, mais curto que o rio Paraíba do
Sul, mas o terceiro mais extenso da Península Ibérica. O trecho em que ele
corre entre pedras é conhecido como arribas. Por mais que existam unidades de
conservação, inclusive criadas pela UNESCO, a bacia foi muito desfigurada.
Hoje, é mais um rio de valor cultural que natural.
O vale do Douro apresenta forte
declividade, com muitos pontos de corredeiras. A engenharia, sempre se
considerando onipotente em transformar a natureza, aproveitou-se dessa
característica do rio para a geração de energia elétrica por meio de barragens.
Na bacia, foram construídas 14 barragens. O rio foi domesticado como um
cãozinho e posto a serviço do ser humano. Hoje, ele se parece com uma fila
indiana de espermatozoides: um trecho comprido, geralmente com pouca água, e um
lago. Eclusas permitem a navegação. E o rio é bastante navegável e navegado.
Contudo, as profundas alterações na
bacia afetaram a fauna aquática. O escalo, a enguia e a truta sofreram pesca
predatória, além do impacto das barragens. As aves aquáticas ou não ainda
conseguem sobreviver nesse ambiente muito alterado. Uma fauna estranha foi
introduzida. Restaram fragmentos de matas nativas, que ainda abrigam o veado, o
javali, o coelho, o lobo, a raposa, o texugo etc, espécies animais que podem
ser caçadas. A caça é um traço cultural inadmissível nos dias de hoje. É como
permitir o lançamento de cristãos aos leões.
A bacia do Douro vem sendo muito explorada desde a antiguidade pela pesca, pela agricultura, pela pecuária e pela urbanização. Mesmo com as 14 barragens, ele é navegável. Na foz, onde se ergueu a cidade do Porto, foi construído, com pedras, um sistema de fixação da barra.
Cidade do Porto às margens do rio Douro
próxima a sua foz
Lagoa de Paramos
Ao sul do Douro, encontra-se a lagoa de Paramos. Sua água é salobra por receber a contribuição das valas de Silvade e de Maceda, ao mesmo tempo em que se comunica periodicamente com o mar pela barrinha de Esmoriz. É área rica em flora e fauna nativas.
Área protegida da Barrinha do Esmoriz
Rio
Vouga
Com apenas 150 quilômetros de extensão, o rio Vouga corre inteiramente em território Português. O que muito me impressionou nele são os extensos banhados existentes em sua foz. Para esses banhados, afluem pequenos rios. Em tempos de cheia, eles devem também funcionar como magníficas áreas de expansão. Além do mais, conhecemos a importância dos banhados para peixes e aves. Apesar da pouca extensão, o Vouga foi represado. Aveiro é a principal cidade que se ergueu em sua margem esquerda.
Aspecto bucólico do rio Vouga
escondendo a sua poluição
Rio Mondego
O rio Mondego pareceu-me muito familiar. Embora com 260 quilômetros de extensão, ele me lembrou o Paraíba do Sul, que é cerca de quatro vezes mais comprido. Assim como o Paraíba do Sul, seu curso pode ser dividido em três grandes estirões. Nascendo a 1525 metros de altitude, ele corre inteiramente dentro de território português. Melhor dizendo: a organização do Estado de Portugal englobou totalmente a bacia do Mondego. Da nascente a Penacova, ele flui em planalto cristalino. De Penacova a Coimbra, corre num vale apertado e sinuoso. De Coimbra à foz, por 40 quilômetros, o rio atravessa terrenos aluviais numa declividade de 40 metros. Desemboca no mar por uma só foz, depois de se dividir em dois braços, formando a ilha de Murraceira.
Rio Mondego em Penacova
Em
sua grande bacia, a precipitação pluviométrica é intensa, alcançando a média anual
de 1.233 mm, sendo sua vazão média anual de 108,3 m³/s. Na planície aluvial, as
extensas e férteis áreas úmidas são propícias ao cultivo do arroz, cuja
produção é uma das maiores da Europa. Em vez do gado e da cana, o arroz seria
mais apropriado para a planície aluvial do Paraíba do Sul. Inclusive, há
estudos a respeito. Pelo menos, não seria necessária a excessiva drenagem que
ela sofreu. As cheias no rio Mondego são registradas desde o século XIV. O
registro das maiores está em Coimbra, nos anos de 1331, 1788, 1821, 1842, 1852,
1860, 1872, 1900, 1915, 1962, 1969 e 1979. Em dezembro de 2019, ocorreu mais
uma, com o rompimento de dois diques em Montemor-o-Velho. Costuma ser curto o
tempo entre as grandes precipitações e as enchentes. A recorrência das cheias
era de 50 anos. Agora, é de 20 anos. Por que? Pensemos nas mudanças climáticas.
Era possível navegar da foz a Coimbra no passado. Há notícias dessa navegação pelos fenícios e pelos romanos. Grandes embarcações alcançavam a transição da planície com o planalto. As menores conseguiam chegar a Penacova e permitiam movimentar uma economia de grande e pequeno porte. A pratica secular da agropecuária nas margens dos rios da bacia implicou na remoção das matas, na erosão e no assoreamento. No século XVIII, o assoreamento era claramente percebido. O cálculo é que o leito do rio ficou seis metros mais alto nos últimos 600 anos. Já no século XVIII foi concebido um plano de canalização do Mondego a jusante de Coimbra. Abriu-se um novo leito entre 1781 e 1807. Pensou-se o mesmo para o Paraíba do Sul, para o qual concebeu-se um rio paralelo, com o desvio do Muriaé, seu último afluente, até o mar. O projeto não foi executado.
Figueira da Foz, no rio Mondego
Tanto lá quanto
cá, o resultado das intervenções foi o assoreamento. Nos anos de 1960,
formulou-se o Plano Geral de Aproveitamento Hidráulico da Bacia do Mondego,
implementado nas décadas de 1970 e 1980. Hoje, o rio corre em canal artificial
de Coimbra à foz. Foram construídos diques na extensão de 7,7 quilômetros.
Foram dragados 16 km³. As barragens de Aguieira, Raiva, Fronhas e do Caldeirão
regularizaram as águas do rio e as escravizaram para a geração de energia
elétrica. Procura-se reservar águas de chuva por meio de açudes, dos quais o
mais importante é o de Coimbra.
A
bacia foi colocada a serviço da agricultura, da pecuária, da indústria, da
geração de energia, da urbanização e do abastecimento público de água. A bacia
do Mondego é uma das mais exploradas de Portugal. A canalização do rio gerou o
que popularmente se chama no Brasil de rio morto, ou seja, um canal ativo e um
trecho abandonado. Na foz, foram construídos guias-correntes, o que desalinhou
a costa, com engordamento da praia do lado direito e emagrecimento dela do lado
esquerdo. Lembrei de Barra do Furado. Aproveitando parte do braço morto, foi
construído uma grande marina para favorecer a pesca, a extração de sal e o
turismo. Figueira da Foz, cidade erguida no estuário, tornou-se um dos mais
movimentados entrepostos de Portugal.
Apesar
de todas as intervenções humanas no rio Mondego e sua bacia, o trecho serrano
dele ainda apresenta boa qualidade da água. O excessivo barramento, contudo,
empobreceu a ictiofauna. Já o estirão sedimentar apresenta comprometimento da
qualidade hídrica. Esse trecho já está salinizado. Novamente, senti-me em casa.
Mesmo assim, no baixo Mondego, os remanescentes de matas de choupos, ulmeiros e
salgueiros justificaram a criação da Mata Nacional do Choupal, nas imediações
de Coimbra, onde se encontra a maior colônia de nidificação da ave
milharfe-preto em toda a Europa. Apesar da profunda desfiguração da foz, a
presença de significativa diversidade de aves, que ali se reproduzem e se
alimentam, justificaram a criação de um Sítio Ramsar. UENF, UFF e a antiga
FEEMA esforçaram-se em vão para a criação de um Sítio Ramsar no baixo Paraíba
do Sul.
Enfim, examinei o rio na altura de Coimbra e notei que ele está poluído por matéria orgânica e resíduos sólidos. O rio continua belo para os humanistas estritos porque foi cantado em prosa e verso por Sá de Miranda, Camões, António Nobre, Eugénio de Castro e Miguel Torga. O fado de Coimbra também o louva. Esses cantos referem-se ao passado e, mesmo assim, talvez idealizem o rio. Os cantos atuais seriam repletos de dissonâncias.
Enchente no baixo rio Mondego
Rio Lis
Viajando de ônibus
de Porto a Fátima, cruzei um valão. Meu ímpeto foi perguntar à minha vizinha de
assento o nome dele. Com cara de poucos amigos, ela já havia conversado em
espanhol e inglês fluentes com duas pessoas no seu estupendo celular. Logo em
seguida, falou em português do Brasil com outro interlocutor por via
eletrônica. Parecia comissária de bordo e certamente não saberia me fornecer a
informação que eu desejava.
Fiz o registro mental daquele curso d’água e pesquisei ao chegar a Fátima. Encontrei o pequenino rio Lis, abaixo do rio Mondego, que bem poderia ser a vala que cruzei na rodovia. Ele nasce a 400 metros de altitude e corre 40 quilômetros até desembocar no mar, abaixo da foz do Mondego. Sua nascente se situa no maciço calcário Estremenho, o segundo maior reservatório de água do país. Existem, no local, várias nascentes. A variação sazonal na nascente do Lis é acentuada, em meio a uma rica flora.
Rio Lis na altura de sua
nascente
O
médio Lis corre numa planície aluvial conhecida como Campos do Lis. Em passado
longínquo, sua foz situava-se a 3 quilômetros ao norte da atual, próxima à
praia do Pedrogão, como mostra uma antiga pintura rupestre no interior de uma
caverna. Naturalmente, ela se deslocou para o sul pela acumulação de sedimentos
marinhos e fluviais.
Nenhuma
novidade em constatar que o Lis apresentou maiores dimensões no passado. Ele
era navegável em toda sua extensão. Durante a idade média, ele gozou de grande
importância por permitir o acesso de embarcações aos pinhais de Leiria, que
forneciam madeira para a construção das naus com as quais os portugueses
partiram para a conquista de terras em outros continentes através dos oceanos
Atlântico e Índico. Ainda no século XIX, importantes estaleiros estavam
instalados nas margens do pequenino rio. Também em suas margens foram
construídos moinhos impulsionados por suas águas e que promoviam a moagem de
trigo e milho, além da primeira fábrica de papel da cidade de Leiria.
A capacidade do rio de transportar sedimentos era grande, reduzindo o leito no sentido horizontal e vertical, provocando assoreamento e transbordamentos que destruíam lavouras e habitações. A ação antrópica acelerou esse processo natural. Já em 1880, concebeu-se um molhe na foz do rio. Apenas da década de 1950, ele foi construído em sua foz. A obra foi vantajosa para a agricultura, mas alterou a linha da costa. O espigão do norte passou a reter areia, enquanto o do sul erode a praia. Senti-me em Barra do Furado, onde, exatamente, o espigão da margem esquerda retém areia, enquanto, à direita, o mar corrói a praia e desalinha a costa. Ainda como em Barra do Furado, os espigões não impediram o entupimento da foz do Lis.
Foz do rio Lis completamente
canalizado
Lá
se operou o mesmo que aqui: solucionou-se um problema gerando outro, que, por
sua vez, tenta-se solucionar hoje. Lá como aqui, essas soluções mirabolantes da
engenharia não conseguem divisar o todo e geram impactos ambientais. Os
espigões na foz do Lis foram encurtados de 80 para 70 metros, mas os espigões
na foz do rio Mondego foram ampliados e passaram a reter a areia necessária às
praias ao norte do Lis, já que a corrente predominante se desloca de norte para
sul. Antes de se alcançar o Lis, na praia de Leirosa, um pequenino curso d’água
chega ao mar, parecendo temporário. Ao norte dele, também foi construído um
espigão que intercepta areia.
Além
do mais, o Lis foi canalizado em toda a sua extensão. Daí a aparência de vala.
Sua seção tem a mesma largura, embora ela possa variar em pontos distintos do
curso. Em Leiria, suas margens foram ajardinadas, dando a impressão de que se
abriu um canal como os de Santos, por exemplo. Ao olhar frívolo e superficial
do turista e do morador, a paisagem pode parecer bela, mas é dramática. Em
Leiria, o Lis recebe a contribuição do rio Lena. Do Lis, partem canais de
drenagem e irrigação, assim como 26 açudes em suas margens.
Outro problema que
assola a bacia do Lis é a poluição. Da nascente à foz, os rios da bacia são
poluídos tanto por resíduos líquidos como sólidos. Não existem estações de
tratamento de esgoto. A agricultura contribui com insumos químicos. A
mineração, os aviários, os matadouros, os curtumes, as indústrias dão uma enorme
contribuição para agravar mais ainda o problema. Ao contrário da região
intertropical, chove mais no inverno que no verão na zona temperada. Com pouca
vazão de verão, a concentração de poluentes aumenta. No momento, a grande
preocupação deriva das 400 suinoculturas na bacia do Lis.
O lado bom da
bacia, se é que ele existe, é a sobrevivência de caniços, freixos e salgueiros
em suas margens. A biodiversidade de aves e de peixes, com todos os problemas,
ainda é expressiva.
O rio Lis me
evocou o riu Una, na Região dos Lagos. Com nascente a 130 metros de altitude e
23 quilômetros de extensão, o Una atravessava uma zona de banhado e desemboca
no mar. Seu curso também foi todo canalizado, adquirindo o formato de um M. A
concepção de domesticar rios foi exportada para países europeizados e alterou
perigosamente os rios e lagoas.
Ao sul do rio Tejo e até o rio
Guadiana, os rios são pequenos e não tão conhecidos quanto os rios entre Lisboa
e Caminha, já na fronteira com a Espanha. Descendo em direção ao sul, surpresas
agradáveis e desagradáveis aguardam os que pouco se importam com o destino dos
rios ou devotam a eles grande atenção.
Lagoa
de Óbidos
Entre o Lis e o Tejo,
encontra-se a lagoa de Óbidos, típica lagoa costeira, sendo o rio Arelho seu
principal afluente. Ela se comunica com o mar por um canal dinâmico, ora aberto
ora fechado. Ela padece de assoreamento e é periodicamente dragada. A fauna
aquática e a avifauna ainda são diversificadas. A pesca é a principal
atividade, sobretudo a mariscagem, ao lado do turismo.
Rio
Tejo
Chagamos ao famoso Tejo, de cuja
foz partiram os navegadores portugueses em direção ao mundo no século XV, dando
início à globalização ocidental e capitalista. Ele nasce na Espanha a 1600
metros de altitude e percorre cerca de 1000 quilômetros até chegar ao mar. É o
mais extenso rio da Península Ibérica e, mesmo assim, menor que o Paraíba do
Sul. Sendo o mais longo, não é o que tem maior bacia.
Costuma-se chamar de estuário do
Tejo o que é uma reentrância da costa, como as rias da Galícia. Estuário não é
sinônimo de foz. Estuário é um ecossistema formado pelo encontro da água doce
com a água salgada. É claro que a água do Tejo se mistura com a do mar nessa
reentrância, mas nela predomina a água salgada. Essa enseada é larga e
profunda, permitindo a navegação e a ancoragem de embarcações de grande calado.
O rio Tejo, propriamente, não pode receber navios de grandes dimensões. O
verdadeiro estuário situa-se no encontro do rio com essa enseada.
A ocupação da bacia do Tejo por
grupos humanos é muito antiga. Antes dos romanos, ali viviam povos nativos,
também eles imigrados de vários lugares. O império romano erigiu cidades e
grandes obras onde hoje existem Espanha e Portugal. O nacionalista acredita que
o seu país e a sua língua existem desde sempre e para sempre. Ele minimiza a
construção histórica de um país, a menos que engrandeça a visão nacionalista. A
formação dos dois países ibéricos se deve a cristãos, mas não se pode esquecer
a grande contribuição muçulmana. Uma história muito antiga e densa pode
paralisar um povo. Pelo menos em Portugal, que conheci um pouco mais que a
Alemanha e a Espanha, noto uma postura ambígua do seu povo, quer de
conservadores quer de progressistas: o que fazer com a história do país?
Exaltá-la ou repudiá-la? O poeta português Jorge de Sena tem um poema de ódio
ao seu país. Camões, de um amor irrestrito.
Uma história longa e pesada pode
mesmo atordoar. Poucos olham para o presente e o futuro do Tejo. No âmbito de
sua bacia, os rios foram ultrapassados por pontes desde o tempo da dominação
romana. Uma ponte causa menos impacto que uma barragem. A bacia do Tejo está
repleta de barragens. São quase 40. A degradada bacia do Paraíba do Sul não é
tão explorada assim. O desenvolvimento da agropecuária levou à construção de
represas para acúmulo de água com fins de irrigação.
Muitos núcleos urbanos ergueram-se nas margens dos rios formadores da bacia do Tejo, tanto na Espanha quanto em Portugal. Seria longo e ocioso enumerá-los. A maioria é muito antiga. Eles demandam água para o abastecimento público. Como no Paraíba do Sul, as águas do Tejo foram transpostas para o rio Segura, envolvido totalmente no interior do território espanhol. O sistema é chamado de Transvase Tejo-Segura.
Trecho do rio Tejo
Senti-me em casa com essa
transposição. Ela me evocou imediatamente a transposição Paraíba do Sul-Guandu,
em Santa Cecilia. Mas existem diferenças: o Tejo desemboca no oceano Atlântico,
enquanto o Segura desemboca no mar Mediterrâneo, que é formado pelo Atlântico.
O Paraíba do Sul corre todo num território que se denominou historicamente de
Brasil. Em sua bacia, formaram-se três capitanias, depois províncias e hoje
estados. A bacia do Tejo foi esquartejada por Espanha e Portugal.
Mas existe uma resultante
similar à nossa. A transposição, com vistas à irrigação e ao abastecimento
público em área com forte turismo, pode retirar até 70,29% de água do Tejo. O
rio se recupera parcialmente com a contribuição de afluentes, como aqui, mas,
na altura de Aranjuez, ainda na Espanha, a vazão cai para menos de 6 m³/s,
limite mínimo estabelecido, a conhecida vazão (caudal) ecológica. A vazão da
bacia depende das chuvas e do derretimento de neve e chega ao seu máximo em
março. A construção de barragens, reservatórios e a transposição abalaram
profundamente a bacia. Existem ainda agravantes: a poluição das águas e a
refrigeração das centrais nucleares espanholas de Trillo e Almarez e das
centrais térmicas de Aceca (Espanha) e de Pego (Portugal).
Apesar da criação, em 2000, do
Parque Natural do Alto Tejo, e da Reserva Natural do Estuário do Tejo, 1916,
para a proteção de várias espécies de aves, a bacia tejana agoniza com a perda
de vazão e com a poluição, acarretando graves consequências para a biodiversidade
e mesmo para os humanos. Golfinhos deixaram de frequentar a foz por causa da
poluição.
Em termos históricos, a atitude
de repúdio ou de nostalgia não basta. Deve-se partir do que existe, planejar
para o futuro e adotar uma nova postura diante da natureza. Lá e aqui. No mundo
todo, aliás.
Rio
Sado
Nascendo numa altitude de 230 metros, o rio Sado percorre
180 quilômetros e desemboca no mar. Sua larga foz situa-se próxima à do rio
Tejo. Antigamente, ele era conhecido com o nome de Sádão. A atividade pesqueira
é grande.
Ao todo, sua bacia hidrográfica compreende uma área de 7.692 km², sendo a maior inteiramente em território português. Em seu estuário, habita uma população do golfinho roaz-corvineiro, que vem resistindo às investidas humanas excessivas, como a intensa navegação para os estaleiros de Mitrena e para o porto de Setubal, cidade que se ergueu eu sua foz. Além dessas atividades, outro fator de perturbação é a ligação de ambas as margens por ferry-boat.
Foz do rio Sado
Rio
Mira
O Mira é pouco menor que o Sado. Nasce a 470 metros de
altitude e percorre 130 quilômetros, lançando-se no mar. Comumente, fala-se que
ele nasce no interior do Concelho de Almodôvar, na serra do Caldeirão. Na
verdade, tanto a serra quanto o Concelho foram nomeados muito depois que o
curso d’água se constituiu com o seus afluentes. Da mesma forma, ele não
escolheu desembocar junto à Vila Nova de Milfontes, mas esta é que se ergueu na
sua foz.
Pela baixa declividade entre a nascente e a foz, trata-se
de um rio muito antigo. O desgaste do seu leito produzido pela erosão revela
essa antiguidade. Ao longo do seu curso, foram construídos os reservatórios
(chamados de albufeiras em Portugal) de Santa Clara e de Corte de Brique, na
ribeira afluente de mesmo nome. O de Santa Clara tem capacidade total de
reservar 485 hm³, enquanto que o de Corte
de Brique tem como capacidade total de reservação de 1,635 hm³. Os reservatórios cumprem dois papeis: o de retirar
água do rio nas suas enchentes e de acumular água para usos múltiplos em tempos
de estiagem. Tendo pequena declividade da nascente a foz, o Mira é sujeito a
transbordamentos, assim como o rio Mondego. É uma solução que deveria ser
considerada pelos governo federal e estaduais do Brasil. Reservatórios
marginais aos rios, e não centrais, como as barragens, podem reduzir o impacto
de enchentes quanto guardar água para tempos de estiagem.
A largura da foz alcança 150 metros, outra caraterística
de rios com baixa declividade, pois a água corre mais lentamente e, encontrando
a água do mar, não apresenta força suficiente para enfrentá-la. Daí se alargar
e mostrar bancos de areia com a maré baixa. Não é o que acontece com o Paraíba
do Sul e o Doce, no Brasil, também com baixa declividade. As diversas obras
humanas nesses rios brasileiros reduziram sua capacidade de enfrentar o mar.
Este, então, tende a fechar a foz de ambos em tempos de estiagem.
Da vila de Odemira à foz, foi criado o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.
Passeio de canoa com remo no rio
Mira
Rio
Arade
O pequeno rio Arade, com apenas 75
km, nasce a 481 metros de altitude. Corre no Algarve. É outro que nasce na
serra do Caldeirão e desemboca no Atlântico. Às suas margens, ergueram-se as
cidades de Silves, Portimão e Lagoa. Na sua foz, instalou-se Portimão. No
século XVI, ele era ainda navegável até Silves, onde se instalou um importante
porto. Com as atividades agropecuárias e a urbanização, seu leito foi
assoreado. Hoje, apenas barcos pequenos conseguem navegar até Silves. A sua
navegabilidade no passado facilitou a dominação árabe de Silves. Os cruzados
cristãos, junto com tropas portuguesas, em 1189, também navegaram o Arade para
reconquistar Silves.
O estuário do Arade ainda é rico em termos biológicos, a despeito de todas as alterações antrópicas sofridas em seu vale da nascente à foz.
Rio
ou ribeira Seixe
Uma interpretação explica que seixe é
derivada do árabe sayth, que significa torrente.
Com
nascente na Serra do Monchique, seu curso tem apenas 6 km. Desemboca no
Atlântico. A beleza do seu curso final justificou sua inclusão no Parque
Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.
Vários núcleos urbanos ergueram-se às
margens do pequenino rio, tais como Foz da Perna Seca, Bemparece, Vale de
Águia, Reguengo e Zambujeira de Baixo, Aldeia de São Miguel e Baiona. No
litoral, junto à foz, situa-se a bela praia de Odeceixe, com suas magníficas
falésias rochosas.
Curso final da Ribeira de Seixe
Praia de Odeceixe
Rio
Guadiana
Nascendo a uma altitude de 1700 metros, nas lagoas de Ruidera,
o Guadiana desagua no oceano
Atlântico depois de percorrer 829 km. Mas existe muita controvérsia sobre sua
nascente. É o quarto maior rio da península Ibérica, mas menor que o rio
Paraíba do Sul. Um pequeno rio se comparado a outros da América do Sul. Sua
nascente se situa no território historicamente formado da Espanha, sendo usado
em seu curso final, como fronteira entre Portugal e Espanha. Na foz, do lado
português, ergueu-se a cidade de Vila Real de Santo Antônio, enquanto que no
lado espanhol fica a cidade de Ayamonte.
No estirão português, foi construída a barragem de
Alqueva, que formou o maior lago artificial da Europa, com 250 km². Mesmo
assim, são sérios os problemas causados pelas estiagens. Eles se tornam, a cada
ano, mais graves. Em certo trecho do seu percurso, o rio desaparece,
infiltrando-se no terreno, para ressurgir bem mais à frente. Hoje, ele pode ser
navegável da foz a Mértola, 68 km acima.
Ponte sobre o rio Guadiana
Do latim Anas (pato) e do árabe Uádi (rio), formou-se a palavra Ouadiana (rio dos patos). Em sua foz, existem campos salinos protegidos pela Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo Antônio. Existem onze espécies de peixes autóctones da bacia do Guadiana, o que vale dizer que só ocorrem nela e em mais nenhum outro lugar do mundo. Mas existem também onze espécies exóticas, ou seja, introduzidas. O grande problema que o rio enfrenta é o jacinto-de-água, conhecido no Brasil como aguapé. Têm sido vultosos os investimentos para erradicar a planta, mas ela resiste.
Foz do rio Guadiana
Como se pode ver, não só os rios brasileiros enfrentam
problemas. Os da Península Ibérica, principalmente, são mal cuidados. Por
vários deles cruzarem dois países, acabam recebendo tratamento diferente e
sofrem uso excessivo.