sábado, 25 de fevereiro de 2023

COPACABANA POSTO 6

Arthur Soffiati

Em meio a muitas atividades, tenho procurado livros de escritoras que já morreram e daquelas que vivem e continuam escrevendo. Não se trata de reler, mas de ler pela primeira vez obras que deveria ter lido quando mais jovem ou de simplesmente esquecer que não li e dar o caso por encerrado. Afinal, quem se importaria comigo? Com o que li ou deixei de ler num mundo digital em que a escrita está se resumindo a desenhos muito mais simples que os das escritas pictográficas. Sistemas de escrita como o sumeriano, o egípcio, o chinês, o japonês e outros exigiam especialistas. Eram os escribas, que dedicavam a vida toda ao domínio da escrita e se tornavam especialistas. Hoje, não é necessária a especialização. Todos sabem procurar nas redes sociais um polegar pra cima ou pra baixo, bem como uma boquinha e um coraçãozinho.

Gosto de ler livros antigos e esquecidos. Não se trata de ler clássicos gregos, latinos e ocidentais. Falo de autores datados, que escreveram sobre seu tempo. De autores considerados secundários. De livros classificados de sub-literatura que continuaram nessa condição ou foram elevados com o tempo à condição mais elevada. Pela primeira vez, li Cassandra Rios, pseudônimo usado por Odette Pérez Ríos. Ela foi alvo preferencial da ditadura militar brasileira por conta de seus livros. 36 de seus 50 livros foram censurados. Muitos deles tratam do homossexualismo feminino. Ela era assumidamente lésbica. Foi a primeira escritora brasileira a viver dos rendimentos oriundos da venda de seus livros. Ela e seus leitores foram vítimas da ditadura. Quando passou a escrever com pseudônimo masculino foi mais tolerada.

Além de perseguida pela ditadura, Cassandra era discriminada pela crítica especializada, que entendia seus romances como apelativos junto à classe média. As famílias moralistas também não gostavam dela. Alguns títulos seus falam do conteúdo: “Volúpia do pecado”, “Carne em delírio”, “As vedetes”, “Tara”, “Uma mulher diferente”, “Nicoleta ninfeta”, “Prazer de pecar”, “Eu sou uma lésbica”.

Dela, li “Copacabana posto 6” (Rio de Janeiro: Spiker, 1961), que adquiri num sebo.  

O tema é homossexualismo feminino. A personagem central é Carla, moça lésbica de família rica. Seu pai é um homem à moda antiga que se casou e teve um casal de filhos. No decorrer do livro, descobre-se que Carla é filha da tia, irmã da mãe, com quem o pai teve um caso. Relação entre cunhados era alvo da literatura na época. Vide Nelson Rodrigues. Ela foi adotada. A mãe morreu e o pai se casou com uma brasileira que vivia na França e era muito mais jovem que ele. Carla entendia que ele devia se casar com a tia para reparar um mal. O irmão era conquistador. Ambos não faziam nada. Nem estudo nem trabalho. Viviam das rendas paternas.

Carla frequentava uma boate de lésbicas em Copacabana e levava seus amores para casa. Ela e a madrasta se apaixonam e vivem um amor tórrido. As duas acabam abandonando a casa para viverem juntas. Carla se pergunta se o homossexualismo é um defeito ou se é natural. Ela tende a considerá-lo natural, embora, numa passagem do livro, desconfie que ele deriva de ter ela uma história sofrida. No mais, é assumida. Tem corpo de rapaz e se veste nas lojas Príncipe, cujo lema era “veste hoje o homem de amanhã.

No livro, desfilam gírias da época e letras de música que foram sucesso nos anos de 1950 e 1960, compostas e cantadas por Miltinho principalmente. Em certos momentos, Carla não consegue evitar os preconceitos do seu tempo. Contudo, o mais interessante é que Cassandra Rios escreve bem. Se seu tema não fosse o lesbianismo, talvez merecesse mais atenção da crítica. Ela sabe criar momentos de tensão e prender o leitor. Sou exigente e me surpreendi desejando ver as cenas dos próximos capítulos. Contudo, não disponho de tempo para ler outro livro dela. 

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

TEMPORADA DE FURACÕES

Arthur Soffiati



Fernanda Merchor. “Temporada de furacões” (São Paulo: Mundaréu, 2020). O livro de Fernanda Merchor caminha no realismo e no regionalismo, mas não no sentido tradicional. Passado numa pequena cidade do interior do México e arredores, o realismo é temperado com uma pitada de magia, ao focalizar a história de um homossexual travestido de bruxa que é assinado por homens jovens interessados na sua suposta riqueza. Essa pitada parece vir de Gabriel Garcia Marques, a seguir a declaração da própria autora em nota do final. O regionalismo não é o de Graciliano Ramos nem o dos regionalistas brasileiros que dominaram a literatura entre 1930 e 1955. É o regionalismo esgarçado de Ronaldo Correia de Brito. O regional já está contaminado pelo global. Televisão, celular, empresa multinacional de petróleo ao lado da plantação de cana e da fabricação de aguardente. Pobreza, prostituição, drogas, homossexualismo, doença e violência, muita violência pública e privada, crendices. A própria maneira de escrever da autora retrata essa violência crua. A autora não tem papas na língua. O romance não pede sutileza em termos de sexualidade e violência. Escrita densa e cerrada, sem parágrafos do princípio ao fim. Há pontos, mas não parágrafos.

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...