sábado, 4 de fevereiro de 2023

"IDENTIDADE" - "TERRA FRESCA DA SUA TUMBA"


Arthur Soffiati

“Identidade” narra, e narra bem, a trajetória de duas mulheres negras que conseguiam disfarçar suas origens por serem claras. Ambas foram criadas próximas e acabaram seguindo rumos distintos. Irene Redfield casou-se com um médico negro e foi morar em Nova Iorque. O marido não gostava do clima racista dos Estados Unidos e queria se mudar para o Brasil, julgando que o clima social aqui era mais sociável. Irene queria continuar nos Estados Unidos, com seu discreto trabalho em favor dos negros do Harlem. Ela só rejeitava suas origens se quisesse frequentar restaurantes proibidos a negros.

Clare Kendry, por sua vez, casou-se com um branco rico e racista. Ela conseguiu enganá-lo, tão brancos eram sua pele e seus traços. De beleza invulgar, Clare temeu que, ao nascer, sua filha lhe traísse as origens. Clare e Irene voltaram a se encontrar muitos anos após tomarem rumos distintos quando Irene visitava o pai em Chicago. Por muita insistência de Clare, Irene vai a sua casa e conhece o marido racista. Julgando que ela era branca como a esposa, esbanja seu ódio aos negros. Depois desse episódio, Irene acreditou que nunca mais seria procurada por Clare.

Foi então que Clare buscou se aproximar da amiga, viajando para Nova Iorque toda vez que o marido racista viajava. Quem era aquele mulher branca por fora e negra por dentro? Para Irene, não passava de uma oportunista e farsante, que nunca revelou suas origens ao marido e admitiu casar-se por dinheiro, correndo grande risco de ser desmascarada. Mas ao longo do romance, Clare se revela um personagem complexo. Aos poucos, aparece uma mulher que buscou o caminho mais fácil de ascensão social usando suas características físicas. Era bem melhor que lutar e casar-se com um negro ou com um homem pobre não-racista.

Ao frequentar com assiduidade a casa de Irene, Clare manifesta o desejo de participar de bailes e reuniões com negros. A integridade de Irene, aparentemente clara mas assumindo a condição de negra, começa a mostrar sua fragilidade diante da amiga indesejada. Clare é, sem dúvida, a personagem mais complexa do romance. Não pelos seus dotes de caráter, mas por suas contradições. Ela podia muito bem morar no exterior em vez de procurar a companhia da amiga de Nova Iorque e as reuniões com negros. Esse estranho comportamento leva Irene a suspeitar do interesse daquela mulher rica por seu marido. A insegurança de Irene leva-a a desconfiar que o marido estava fascinado pela beleza, elegância e charme de Irene.

No todo, o romance não é tanto uma peça de protesto e luta contra o racismo. Tanto Clare quanto Irene contam com regalias de brancos bem situados na vida: boas casas, criados, bons colégios para os filhos e maridos bem empregados. Irene também tem um bom emprego. As questões de ambas as mulheres – principalmente de Irene – abandonam o social para mergulhar no íntimo. Irene tem suspeitas, ciúme e fricotes. Revela seu lado cruel de vez em quando.

Larsen escreve bem. Nada de malabarismo literários. Um narrador onisciente conduz a trama e passa a palavra para seus protagonista quando necessário.    

Quanto à Giovanna Rivero, não sei muito o que dizer, embora eu possa apenas escrever sobre minhas impressões. Ela nasceu na Bolívia e mora nos Estados Unidos. É doutora em literatura hispano-americana pela Universidade da Flórida. É também autora de muitos livros. “Terra fresca da sua tumba” (São Paulo/Incompleta, 2021) é o primeiro livro dela publicado no Brasil. Reúne seis contos. Segundo a crítica, trata-se de uma escritora que lida de forma criativa com a morte. “Peixe, tartaruga, urubu”, primeiro conto do livro, apresenta alguma força. Ele relata a história de dois náufragos. Só um deles sobreviveu e foi narrar o  infortúnio do que morreu à sua mãe. Há suspeita de canibalismo.

Não há terror nem surrealismo nos contos, como se anuncia. Nenhum se assemelha aos escritos de Ana Paula Maia, escritora brasileira que lida com a morte como pulp fiction, com humor negro. Giovanna é dispersiva. Não consegue definir o núcleo de suas histórias e enfatizá-lo. São contos arrastados, monótonos e desvigorados.  

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

ESBOÇO DE TIPOLOGIA PARA ÁREAS ÚMIDAS

Arthur Soffiati

A Convenção de Ramsar resultou de um encontro de representações nacionais na cidade de Ramsar, Irã, no ano de 1971, para discutir o estado das áreas ou zonas úmidas do mundo e adotar medidas para protegê-las. Hoje, Ramsar passou a ser um programa assumido pela Organização das Nações Unidas. Desde 1997, comemora-se o Dia Mundial das Áreas Úmidas (World Wetlands Day) em 2 de fevereiro, como homenagem à primeira Convenção Ramsar.

A principal dificuldade encontrada por estudiosos das áreas úmidas, no hemisfério sul, é que as tipologias foram concebidas por estudiosos do hemisfério norte, tomando por base os ecossistemas aquáticos dessa parte do planeta. Os autores mais conceituados usam a medida de até seis metros de profundidade para classificar uma lâmina d’água como área úmida. Outra dificuldade para os estudiosos do hemisfério sul é considerar ecótono o trecho que se estende da margem de um ecossistema aquático até a profundidade de seis metros. Se tomarmos a profundidade das lagoas brasileiras, quase todas deixariam de ser ecossistemas e passariam a ser ecótonos. Esta discussão foi empreendida por Sônia Guimarães Alves em A importância das áreas úmidas (brejos) e as possíveis consequências das intervenções antrópicas para a qualidade de vida em Campos dos Goytacazes (Campos dos Goytacazes: Instituto Federal Fluminense, 2013, artigo de conclusão de curso de especialização)

Resumindo o que explicam os dicionários e glossários de ciências ambientais, ecótono (oíkos=casa; tonus=tensão) é a zona de transição entre dois ou mais ecossistemas ou biomas, contendo elementos de ambos sem formar um conjunto estrutural distinto.

Proponho uma ampla discussao sobre áreas úmidas, objetivando compreendê-las na sua relação com as sociedades humanas, a partir do cruzamento de cinco variáveis: talassosfera–limnosfera, aberto–fechado, fundo–raso, sincrônico–diacrônico, nativo–antrópico. Examinemos cada uma delas:

1) Talassosfera–limnosfera. Talassosfera (talassos=mar+esfera) é o conjunto dos ecossistemas marinhos, enquanto limnosfera (limnos=lago+esfera) é o conjunto de ecossistemas aquáticos continentais - superficiais e subterrâneos. Podemos substituir o conceito de ecossistema marinho por talassossistema, por se equivalerem. Da mesma forma, limnossistema corresponde a ecossistema aquático continental.

2) Aberto–fechado. De alguma forma, os talassossistemas e os limnossistemas são abertos para outros e para as chuvas. Há conexão entre águas subterrâneas, superficiais e pluviais. Para fins empíricos, todavia, devemos examinar se um ecossistema aquático se apresenta ligado a outro permanente ou periodicamente ou se é alimentado apenas pelas águas subterrâneas e pluviais. Neste segundo caso, ele seria fechado.

3) Fundo–raso. Em decorrência da espessura da lâmina d’água, um talassossistema ou um limnossistema aproveitará mais a insolação e produzirá mais vegetação aquática, que atrai diversos organismos. É de se esperar uma biodiversidade maior em ecossistemas aquáticos rasos do que em fundos. Mesmo assim, as zonas abissais dos oceanos formam ambientes para seres vivos adaptados a condições extremas. Por outro lado, lagoas, banhados e brejos são ecossistemas rasos de alta biodiversidade.

4) Sincrônico–diacrônico. Sincronia significa considerar algum fenômeno num determinado momento, sem levar em conta sua história. Por outro lado, diacronia, significando através do tempo, estuda os fenômenos considerando sua história.

5) Nativo–antrópico. Um ecossistema em estado nativo é aquele que não sofreu intervenção humana ou que a sofreu minimamente. Já um ecossistema que sofreu graus maiores de intervenção humana pode ser classificado como transformado ou mesmo como antrópico em seu todo.

A partir desses critérios, pode-se tentar uma classificação para as águas do planeta, embora não se possa considerá-las como áreas úmidas pelos critérios da Convenção Ramsar.

1- Oceanos. A maior parte do planeta é ocupada por águas salgadas e profundas. A biodiversidade aí não é tão grande, mas bastante variada. Há organismos que se adaptaram a condições extremas, muitos dos quais ainda desconhecidos pela ciência. Atualmente, os oceanos estão poluídos e sofrem os efeitos das mudanças climáticas. 

Oceano Atlântico

 

2- Plataformas continentais. São as partes mais rasas dos oceanos, ficando contíguas aos continentes. Em razão de uma lâmina d’água menos espessa, a insolação cria condições favoráveis ao aumento da biodiversidade. As plataformas continentais constituem o mais espetacular sistema de produção de oxigênio e de absorção de gás carbônico do planeta.

Plataforma continental

3- Estuários. São ecossistemas riquíssimos formados pelo encontro da água doce dos rios com a água salgada do mar. 

Estuário do rio Paraíba do Sul, em São João da Barra, norte fluminense

4- Lagunas. São ecossistemas lênticos (águas dormentes, como se falava antigamente) com água salina ou salobra, fechadas ou abertas para o mar periodicamente. Processos naturais ou antrópicos podem produzir o assoreamento das lagunas, transformando-as em brejo ou mesmo levando-as à extinção. 

Laguna de Gruçaí, em São João da Barra

 

5- Rios. Ecossistema de águas lóticas (ou de águas fluentes) doces que recebem afluentes e acabam no mar, em lagos ou em lagoas.

 Rio Ururaí, norte fluminense


6- Lagos. Constituem-se de limnossistemas profundos, como é o caso do Lago Baikal.

7- Lagoas. Geralmente, localizam-se na zona costeira, mas podem ocorrer no interior. São limnossistemas lênticos de água doce, fechados ou abertos. Contando com lâminas d’água delgadas, as lagoas formam ambientes propícios ao desenvolvimento de vegetação aquática e para a diversificação da fauna.

Lagoa Limpa, Campos dos Goytacazes, norte fluminense

 

8- Banhados. Podem ser extensas áreas banhadas permanente ou periodicamente, de caráter predominantemente lêntico, com lâmina delgada, entre a lagoa e o brejo. Há banhados de água doce, salgada e salobra.

Banhado da Boa Vista, Campos dos Goytacazes, norte fluminense

 

9- Confluências. Assim como os estuários, a confluência entre dois rios cria ambiente bastante propício ao aumento da biodiversidade. 

Confluência dos rios Muriaé e Paraíba do Sul. Foto de Wellington Rangel

 

10- Brejos. Normalmente, é limnossistema lêntico de água doce, com lâmina d’água aparente ou lamosa. A luminosidade e o calor favorecem a proliferação de plantas aquáticas, que atraem a fauna aquática, terrestre e alada. Podem ser abertos para um limnossistema lótico permanente ou periodicamente. Do ponto de vista histórico, uma lagoa tende a se transformar em brejo. Com a interferência antrópica, este processo geralmente é acelerado. Há também brejos de água salgada e salobra.

 

Brejo Maria do Pilar, Campos dos Goytacazes, norte fluminense

 

11- Águas subterrâneas. Embora seja difícil classificá-las como ecossistemas, as águas subterrâneas são imprescindíveis para as águas superficiais dos continentes pelas trocas. Também elas têm movimentos.

12- Limnossistemas antrópicos. São aqueles construídos pelas sociedades humanas. O represamento de um rio muda seu regime hídrico com a formação de um lago. Os poços fazem aflorar as águas subterrâneas. Os canais apresentam caráter lótico. Em todos eles, porém, a tendência é a renativização, ou seja, sofrerem modificações físicas, químicas e bióticas por força da própria natureza.


 Represa de Rosal no rio Itabapoana

  

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

FLORESTA É O NOME DO MUNDO - URSULA K. L. GUIN

Arthur Soffiati 

“Floresta é o nome do mundo”, de Ursula K. Le Guin foi publicado em 1972, ano da Conferência de Estocolmo, verdadeiro marco da discussão acerca das questões ambientais ainda hoje. Só em 2020, chegou ao Brasil (São Paulo: Morro Branco). Trata-se ficção científica. Utopia ou distopia? Talvez nenhum dos dois. Talvez literatura meio distópica. A grande inspiração vem da expansão marítima europeia, das invasões, conquistas, colonizações, conflitos com nativos, massacres e destruição da natureza.

Esgotados os recursos naturais da Terra, seus habitantes vão para o espaço no sentido literal. Um dos mundos extraterrestres conquistados recebe o nome de Novo Taiti. O povo originário é constituído por seres pequenos, com corpo coberto de pelos verdes. O planeta é coberto por florestas. O que os terráqueos cobiçam é madeira. Ela vale mais do que ouro naquele momento do futuro. A globalização agora não se limite mais à Terra. Ela se expande para outros planetas, como se assiste agora com a exploração espacial. O domínio dos homens em Novo Taiti assume um caráter político na escrita de Ursula. As mulheres são importadas para casar ou para a prostituição. São as Noivas Coloniais e as Recreadoras. “Organizando e limpando, derrubando as florestas sombrias para a plantação de grãos, eliminando a escuridão, a selvageria e a ignorância primitivas, aquilo seria um paraíso, um verdadeiro Éden. Um mundo melhor do que a Terra devastada.” Sim, porque “Novo Taiti era, em sua maior parte: água, mares rasos e quentes interrompidos aqui e ali por recifes, ilhotas, arquipélagos e as cinco grandes superfícies em arco que ocupavam 2,5 mil quilômetros no Quadrante Noroeste do planeta. E todas essas erupções e bolhas de solo eram cobertas de árvores. Oceano: floresta. Em Novo Taiti, essas eram as opções: água e sol ou escuridão e folhas.”

Embora o planeta encantasse os humanos, a visão utilitarista que orientou a colonização da América será aplicada lá. Seus habitantes eram pacífico. Ele não conheciam a guerra. Gostavam de sonhar acordados. Mas foram massacrados e afastados das florestas que protegiam. Suas mulheres foram estupradas. Aqui, aflora o feminismo de Ursula. Os pacíficos pigmeus verdes aprendem a ser guerreiros com os humanos e os vencem numa gigantesca batalha. O único humano que tinha interesse em conhecer a cultura dos nativos morre. Verdes e brancos fazem um acordo de armistício. Aqui, a ficção meio distópica de Ursula não acompanha mais a história da ocidentalização da Terra.

Era difícil ganhar notoriedade escrevendo textos referenciais, poesia o prosa nessas quatro circunstâncias: ser mulher, ser negra, viver nos Estados Unidos, escrever nos anos de 1920. Nella Larsen conseguiu superar todas essas barreiras e se transformar num dos mais expressivos nomes literários da Renascença do Harlem, movimento literário formado por escritores negros. “Identidade” é um romance dela publicado em 1929, mas só lançado no Brasil em 2020, quase cem anos depois (Rio de Janeiro: Harper Collins). Filha de mãe dinamarquesa e pai caribenho, Larsen tinha traços brancos, mas pele negra.

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

OS MELHORES LIVROS DE 2021

Arthur Soffiati

Em dezembro do ano passado, a “Folha de São Paulo” convidou quatro críticos ligados à cobertura literária do jornal para indicar cinco livros que consideravam significativos e publicados em 2021. As escolhas podiam recair sobre qualquer gênero, ainda que os livros tivessem sido publicados em outros lugares antes de 2021. Mas eles deveriam ter sido lançados no Brasil em 2021. Não deveria haver repetição de títulos nas listas.

Sem mencionar os nomes dos críticos, os livros escolhidos foram 1- “Agora veja então”, de Jamaica Kincaid (Rio de Janeiro: Alfaguara), 2- “Autobiografia do vermelho”, de Anne Carson (São Paulo: Editora 34) , 3- “O lugar”, de Annie Ernaux (São Paulo: Fósforo), 4- “Poemas 2006-2014”, de Louise Glück (São Paulo: Companhia das Letras), 5- “Porta”, de Magda Szabó (Rio de Janeiro: Intrínseca), 6- “Biografia não autorizada do Direito”, de Fábio Ulhoa Coelho, (São Paulo: WMF Martins Fontes),; 6-“Erva brava”, de Paulliny Tort (São Paulo: Fósforo); 7-“João Cabral de Melo Neto: uma biografia”, de Ivan Marques (São Paulo: Todavia), 8- “Mas em que mundo tu vive?”, de José Falero (São Paulo: Todavia), 9- “As vozes da metrópole - uma antologia do Rio dos anos 20”, de Ruy Castro (São  Paulo: Companhia das Letras), 10-“Escute as feras”, de Nastassja Martin (São Paulo: Editora 34), 11- “Essa dama bate bué!”, de Yara Nakahanda Monteiro  (São Paulo: Todavia),  12-“A extinção das abelhas”, Natalia Borges Polesso (São Paulo: Companhia das Letras), 13-“Perder a mãe”, de Saidiya Hartman (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo), 14- “A visão das plantas”, de Djaimilia Pereira de Almeida (São Paulo: Todavia), 15- “Luxúria”, de Raven Leilani (São Paulo: Companhia das Letras), 16- “O parque das irmãs magníficas”, de Camila Sosa Villada (Tusquets), 17- “Todos os contos” de Julio Cortázar (São Paulo: Companhia das Letras), 17- “Trapaça no Harlem”, de Colson Whitehead (HarperCollins), 18- “Vista Chinesa”, de Tatiana Salem Levy, (São Paulo: Todavia).

Meu primeiro comentário é que não li todos os livros apontados. Consolo-me em presumir que os críticos consultados não leram o que eu li e não leram todos os livros apontados pelos colegas. Mas, cá pra mim, creio que eles devem ter lido. Afinal, eles trabalham com leitura e crítica de literatura. Eu moro numa província do Brasil, procuro acompanhar a literatura de poesia, ficção e de estudos. Sou aposentado. Disponho de mais tempo para leitura, mas me dedico a pesquisas em história. Mesmo assim, escrevo quinzenalmente artigos longos para a “Folha da Manhã”.

Estabeleço também uma limitação: a leitura de livros que não ultrapassem 200 páginas. Faço concessões quando o livro trás referências que me estimulam a ler além de duzentas páginas. Portanto, sou seletivo, não tenho obrigação de fazer leituras fora da minha área e estou distante dos grandes centros.  

Segundo comentário: dos livros escolhidos pelos críticos, li “Agora veja então”, “Autobiografia do vermelho”, “Erva brava”, “Escute as feras”, “Essa dama bate bué!”,  “A extinção das abelhas”, “A visão das plantas”, “Vista Chinesa” e “O lugar”. Nove livros de listas feitas por quatro especialistas não é de todo mal.  Adquiri “Todos os contos”, de Julio Cortázar, “Mas em que mundo tu vive?”, de José Falero e “As vozes da metrópole - uma antologia do Rio dos anos 20”, de Ruy Castro. Provavelmente, não lerei todos os contos de Cortázar, mas apenas os escolhidos, como no caso de Machado de Assis, cujos contos reunidos em três volumes. A antologia de textos organizada por Ruy Castro aguarda sua vez. De antemão, já sei que ele tenta ilustrar sua tese (redundante) de que o Rio de Janeiro era mais moderno que São Paulo na década de 1920. Tenho também a meu lado o novo livro de José Falero para ler.

Terceiro comentário: esperei que, nas listas dos críticos, fossem figurar pelo menos os nomes de Micheliny Verunschk, com seu “O som do rugido da onça”; Simone de Beuvoir, com “As inseparáveis”; o atualmente cultuado Itamar Vieira Junior, com “Doramar ou a Odisseia”. O livro de Micheliny Verunschk não está na linha dos livros escolhidos pelos. Simone de Beuvoir é um nome consagrado. Itamar Vieira Júnior não está nas listas. Contei também de encontrar “O último gozo”, de Bernardo de Carvalho; “O riso dos ratos”, de Joca Reiners Terron; “O deus das avencas”, de Daniel Galera e “De cada quinhentos uma alma”, de Ana Paula Maia. Eles são autores conceituados na atualidade. Confesso que, se fosse convidado a apresentar minha lista, eles também não figurariam nela.

Por uma questão de homenagem, também notei a ausência do livro póstumo de Sérgio Sant’Anna, “A dama de branco”; e de Juan Rulfo, “Chão em chamas”. Mas já começo a me exibir, fazendo a minha lista. Já que é assim, senti falta também de “A culinária caipira da paulistânia”, de Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos, um excelente estudo antropológico, sociológico e histórico sobre a alimentação num território enorme do Brasil no período colonial e no século XIX. Comumente, acreditamos que os povos nativos do Brasil deram uma parca contribuição ao que comemos antes da industrialização dos alimentos, atribuindo aos portugueses e africanos as duas grandes influências da nossa alimentação. Esse livro resgata a enorme contribuição dos guaranis. Mas cada um tem as suas preferências e seus critérios de escolha.

Por fim, o quarto comentário. O momento histórico é sombrio. Os países foram envolvidos pela globalização ocidental. O conceito de soberania nacional perdeu força num mundo todo integrado. Não se pode mais pensar em qualquer forma de desenvolvimento desvinculada do internacional. Qualquer conflito local envolve o regional e o global, como, nesse momento, é o caso da Ucrânia, do Iêmen e de Taiwan. Não se pode mais pensar numa revolução de esquerda ou de direita. Os problemas sociais se agravam no planeta sem que se identifique uma classe que possa promover uma revolução. As forças de direita e reacionárias avançam. Os problemas econômicos de um país como os Estados Unidos e a China se refletem no mundo todo. E a crise ambiental se agrava.

O clima é favorável para o pensamento distópico, assim como o Renascimento europeu estimulou utopias. Em 2021, choveram distopias na literatura brasileira. Bernardo de Carvalho, Joca Reiners Terron, Daniel Galera, Ana Paula Maia e Natalia Borges Polesso, pelo menos, escreveram distopias. Nenhuma delas tão convincente quanto “Não verás país nenhum”, de Ignácio de Lyola Brandão, de 1980, e “O sorriso do lagarto”, de João Ubaldo Ribeiro, lançado em 1989. Dos cinco, o mais convincente, na minha opinião, é “A extinção das abelhas”, de Natalia Borges Polesso, por mostrar que a distopia não é uma ameaça a ser esperada. Nós já a vivemos. Dos outros livros distópicos de 2021, falarei em outro momento.

Mas a tônica dos livros de ficção de 2021 recaiu sobre o enfoque antropológico: o diferente, o estranho, o monstro. Quando uma moça jovem pratica exercício na floresta da Tijuca em lugar solitário, sai da mata um homem que a ameaça com um revólver e a conduz para a floresta, onde a estupra. Esse é o tema de Tatiana Salem Levy em “Vista Chinesa”. De fato, aconteceu de uma amiga sua ter sido estuprada na floresta da Tijuca. Tatiana colheu o relato da amiga para escrever o livro. Depois de um estupro, a vida não é mais a mesma por muito tempo ou para sempre. As lembranças, a violência, a investigação, o trauma. Tatiana narrou o caso de forma romanceada e com muito vigor. Só errou na escolha da forma de relato. A mulher estuprada escreve uma carta aos filhos pequenos narrando o que aconteceu a ela. A carta é para ser lida quando os filhos se tornarem adulto. Melhor seria escrever um diário, pois a mulher detalha situações de intimidada com seu marido para os filhos.

O outro, o estranho, pode sair do nosso meio, cometer barbaridades e voltar para nossa sociedade depois de velho. É o caso de “A visão das plantas”, de angolana Djamilia Pereira de Almeida. Ela escreve um romance breve mas denso sobre um pirata e traficante truculento que teve uma infância comum com mãe amorosa. Cresceu e ganhou o mundo traficando negros para a escravização. Matava pessoas e animais sem a mínima compaixão. Ao envelhecer, ele retorna a sua aldeia e se transforma num jardineiro fiel às suas plantas, que o agradecem pelo tratamento. Plantas desejam, sem consciência do desejo, ser bem tratadas. Não importa se pela chuva ou por uma pessoa boa, má, jovem, velha etc. Elas não se importam com a história do jardineiro. A visão das plantas é de agradecimento ao jardineiro generoso ou cruel. O pirata não se arrepende do seu passado.

No terceiro caso, o outro, o estranho, pode se transformar num mostro. É o caso de “Escute as feras”, de Nastassja Martin. A autora é uma antropóloga que foi atacada por uma ursa com filhotes na Sibéria. Trata-se de um caso real. A ursa atacou a mulher e quase a matou. Mordeu sua cabeça e quebro-lhe ossos, arrancando um pedaço da mandíbula. Antes de ficar desacordada, a antropóloga conseguiu ferir a ursa, que fugiu com seus filhotes. Acostumada a escrever trabalhos científicos, Nastassja relata os acontecimentos em tom de romance. Recuperada de um ataque que quase a matou, ela volta ao local e retoma suas pesquisas até notar que estava se envolvendo muito com o povo estudado e suas subjetividades, suas diferenças em relação ao mundo ocidental. Então, retorna à França.

Podemos também encontrar o diferente, o estranho, na distopia de “A extinção das abelhas”, de Natalia Borges Polesso, com a mãe da personagem principal abandonado a filha e o marido para se juntar a um grupo circense que trabalhava com o ilusionismo de Monga, a macaca feroz. Quem não conhece Monga dos circos e dos parque de diversões? Quem não se assustou com a mulher se seios nus que se transforma numa macaca selvagem? Em Micheliny Verunschk, em “O som do rugido da onça” (São Paulo: Companhia das Letras) vai mais longe ainda. Trata-se de um livro com forte base antropológica. Ele gira em torno do casal de índios adolescentes que Martius e Spix levaram para a Alemanha depois da estada triunfal de ambos no Brasil. Foi muito comum entre o século XVI e XIX europeus levarem nativos da América para a Europa a fim de estudá-los e civilizá-los. Quase todos morriam fora do seu ambiente natural e cultural. Verunschk coloca dois diferentes frente à frente: para os dois indiozinhos, o estranho era o europeu. Para Spix e Martius os estranhos eram os nativos.

Quanto a Paulliny Tort, já comentei antes “Erva brava”, seu primeiro livro de contos. Muitos primeiros livros trazem promessas de novos livros e de consolidação de um novo destaque na literatura ou não. Apenas um livro não é suficiente para se avaliar um autor. Tort faz um retorno ao regionalismo do Cerrado, mas agora com o aspecto melancólico que ganhou com o crescimento do agronegócio. Não vem ao caso comentar os demais livros que li das listas apresentadas. 

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

AS INSEPARÁVEIS

Arthur Soffiati

Da França, chega o singelo romance “As inseparáveis”, da pensadora e ativista Simone de Beauvoir (Rio de Janeiro/São Paul: Record, 2021). Ele foi escrito em 1954, cinco anos após a publicação do famoso “O segundo sexo”. Em princípio, pode-se considerar que não foi difícil escrever esse romance que narra sua relação fraterna com Elisabeth Lacoin. Simone é Sylvie e Beth é Andrée. Elas se conheceram no colégio quando tinham nove anos e se tornaram amigas. É interessante conhecer o passado católico de Simone e o catolicismo sofrido das primeiras décadas do século XX. Simone parece ter desenvolvido por Beth mais que amizade. Ela amou a amiga de uma forma especial e muito forte. Beth, por sua vez, teve dois amores homens que não corresponderam ao seu sentimento de forma simétrica. Embora moça comportada, Beth tinha momentos de puro extravasamento.

O roteiro para o livro já estava dado. Trata-se de um romance autobiográfico com passagens muito belas que me remeteram a Proust e ao cineasta Jean Renoir. Registro apenas uma: “Passeei muito naquele verão. Andava pelos castanhais, ferindo os dedos nas samambaias, ao longo das trilhas, colhia ramalhetes de madressilvas e evônimos, saboreava amoras, medronhos, cornisos, bagas ácidas de uvas-espim, respirava o odor tumultuoso dos trigos-mouriscos em flor, colava-me à terra para surpreender o odor íntimo das urzes. Depois me aventurava no grande prado, ao pé dos choupos-brancos, e abria um romance de Fenimore Cooper. Quando o vento soprava, os choupos murmuravam. O vento me exaltava. Parecia que de uma extremidade da terra à outra as árvores falavam entre si e falavam a Deus; era uma música e uma prece que atravessavam meu coração antes de subirem ao céu.”

Trata-se de uma bela descrição das estações de países de clima temperado. O livro conta com documentos iconográficos: fotos e cartas das duas amigas. Andrée morreu jovem de encefalite viral.

domingo, 29 de janeiro de 2023

A VISÃO DAS PLANTAS

Arthur Soffiati

Da África, chega-nos mais uma vez a voz de Djaimilia Pereira de Almeida pelo breve romance “A visão das plantas” (São Paulo: Todavia, 2021). Breve mas denso. A autora leu num romance a história de um pirata e traficante com passado dos mais truculentos. Ele foi criança como todos nós. Teve mãe dedicada, ao que tudo indica. Mas ganhou o mundo traficando negros para a escravização. Numa viagem em seu navio, ele atirou cal nas pessoas traficadas que lá estavam sendo transportadas e as matou sem a mínima compaixão. Degolou um casal de holandeses com sua filha criança. Depois de velho, o pirata retorna a sua aldeia e se torna um dedicado jardineiro. Lembra da mãe, mas não sente saudades.

Numa passagem das mais fortes, Celestino (é o nome do pirata) narra sua crueldade para meninos curiosos que o visitaram na solidão da sua casa: “Vinde a mim, meninos, a mim que degolei gargantas e durmo o sono dos justos. Quereis saber o que matei? Matei macacos e cavalos. Serpentes, vespas, um elefante. Um crocodilo do tamanho de uma jangada: cortei-o em cinco partes. Matei dez mulheres, a uma delas cortei os pés. Matei um corvo. Raposas, ratazanas. Matei centenas de homens com as minhas mãos e elas não me caíram. Matei os sonhos de um milhar de outros. Queimei cabanas. Um dia, mordi o pescoço dum homem até lhe arrancar as veias para fora. Espetei uma lança no peito de um amigo. Roubei dinheiro. Rebentei o crânio de um albino contra uma rocha. E a seguir esquartejei-o.”

Djaimilia não revela o nome e a localização da aldeia em que Celestino vive seus últimos anos de vida. Ela fica perto do mar, talvez em Portugal. O que conta é a carreira fria e cruel de Celestino. Crueldade sem arrependimento, embora o padre da aldeia tenha lhe oferecido confissão. O mundo colonial português e europeu foi povoado de homens como Celestino. Agora, ele cuida de flores como se tivesse uma vida plácida e generosa. Ela vai se esvaindo. As plantas são indiferentes às pessoas que lhes fazem bem. Elas não se importam com o mundo. Elas não são como o cão, que abana a cauda agradecido pela comida. A maior parte da natureza é indiferente a nós. Não lhe importa se aquele que dela cuida é virtuoso ou assassino. “As plantas não se sentiam agradecidas. Tratavam o seu regador à semelhança da chuva que caía sobre elas nas noites de Outono.” Ele é um jardineiro fiel no fim da vida, mas as plantas lhe são infiéis ou indiferentes.

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...