María Fernanda Ampuero. “Rinha de galos” (Belo Horizonte: Moinhos, 2021). Ampuero nasceu no Equador em 1976. “Rinha de galos” é seu primeiro livro de contos. O ponto quase comum aos contos é a narrativa geralmente feita por meninas e mulheres. Só um conto é narrado por um menino. Quase todos são marcados pela escatologia, descoberta da sexualidade, violência. A autora trata a sexualidade de forma direta, sem subterfúgios. Os órgãos são tratados por seus nomes chulos. As relações sexuais são também explícitas. “Ele tem o púbis sem pelos e o pau morto, mas continuou e continuou e continuo até que ele fica duro e continuo mais ainda, até que ele goza na minha boca e eu engulo aquilo que tem cheiro de mostarda Dijon e cloro.” Alguns contos acercam-se do terror provocado por sugestões sobrenaturais, como em “Nam”. Em “Monstros”, o terror está nos vivos e não nos mortos. As mulheres geralmente são dondocas. Algumas têm passado de pobreza e ostentam riqueza. As pessoas são más. Em “Luto”, a autora parodia a passagem bíblica de Lázaro. Maria e Marta eram castigadas por Lázaro (cujo nome não é mencionado). Ele castiga Maria, surrando-a, estuprando-a, deixando que outros abusem dela. Deixa-a ao relento. Mas ele acaba acometido de doença. É a lepra. Embora tratado por Marta, ele morre. As irmão sentem-se libertas. Uma delas, está toda marcada por cicatrizes e mutilações. Elas festejam a morte do irmão. No entanto, Jesus, também não nomeado, ressuscita Lázaro. A autora parece cética e antirreligiosa. Embora seja uma nova voz na literatura hispano-americana, os contos ainda demonstram pouca maturidade da autora.
“Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país, Soffiati é um carioca radicado em Campos. Ser multiativo e multidisciplinar combina bem com o camaleônico Arthur Soffiati, que também é crítico de cinema e escritor. Colunista Arthur ao repassar a coluna para sua rede de e-mails, jornais locais entre outros artigos, é dotado de variações de identidade exercidas com naturalidade de quem é filho e neto de Aristides Arthur”.
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023
RIO ÁGUA PRETA
Folha da Manhã, 11 de fevereiro de 2023
Arthur Soffiati
“Eu saía daqui de madrugada e passava uma semana pescando. Peixe de qualidade. Pra não estragar, eu salgava tudo.” A voz de seu Totonho era máscula. Com 96 anos de idade, seu aperto de mão era firme. Alto, magro, braços dos quais saltavam músculos, bigodinho de morador da baixada. Seu Totonho residia em Pipeiras, na margem direita do canal de Quitingute, que resultou da canalização do rio Água Preta entre 1940 e 1950.
“Verdade que o senhor saía de Atafona e chegava ao mar sem cruzar a barra do Paraíba, seu Totonho?”, perguntei. “Foi sua sobrinha-neta quem me trouxe até o senhor”, expliquei, para que ele não estranhasse minhas perguntas. Sugeri-lhe um roteiro provocador, esperando a explicação que eu desejava. “O senhor saía de Atafona de canoa até a nascente do rio Água Preta e descia a pé até Xexé ou Quixaba e rumava para o mar?”
“Não senhor. Eu subia o Paraíba de canoa, entrava no Água Preta, chegava no rio Açu e saía pela barra dele até o mar. Tinha muita raça de peixe. Dali, eu podia pegar o rumo da lagoa Feia tamém. Rompia pelo rio Bragança e saía naquele mar de água doce. Podia pegar o rumo do rio do Gil tamém. Naquele tempo, quando a baixada engordava com a chuvarada de verão, a força d’água rompia a Barra Velha de vez em quando e botava água no mar. Mas eu não saía por ela. O mar batia forte e fechava a barra quando a água garrava enfraquecendo. Era perigoloso sair por ela. Eu seguia em frente até a barra do rio Açu.”
“O rio Água Preta e Iguaçu era fundo. No Açu, barco de pesca entrava por ele mió que no Paraíba.” “E o que o senhor pescava nele?” “Ah, muita qualidade de peixe! Robalo, tainha, cruvina, jundiá. Muita raça mesmo. Dava muito camarão na barra do Açu e na Barra do Furado.”
“Mas na água doce do rio?” “Era doce inté certo ponto. Quando a maré subia, a água ficava saloba. O rio passava adonde hoje é Quixaba e Açu. Naquele tempo, não inxistia tanta casa nesses lugar tudo. Os fiote subia o rio pra crescê. Os grande vinha atrás pra comê os pequeno. Atonce, a gente pescava os grandote. Pescava muito. Eu passava uma semana pescando. Por isso tinha de sargar a pesca.”
“Nunca pensei que antigamente era assim.” (mentira, eu sabia, mas só por livros). “Era um mundo de água, professor. Já falei que eu levava uma semana fora só pescando. Levava muito tempo fora de casa, mas vortava com muita fartura de peixe e camarão.” “E tinha caranguejo, seu Totonho?” “Muita coisa. Tinha de toda a qualidade. Era de dá com o pé. Tinha aquele que veve na lama e que o povo gosta mais. Tinha aquele vermelhinho que sobe em árve. Tinha o guaiamu, que num entra na lama, fica só na marge do rio, mas isso tudo só perto da barra do Açu. O Água Preta não inxeste mais.”
“Tumém pesquei na lagoa de Gruçaí e Quipari. O senhor sabia que elas nascia no rio Água Preta? Quando o Paraíba engordava com as chuva, saía muita água pelo rio Doce, entrava em Gruçaí e Quipari, rompia a barra e arcançava o mar. Era um mundão de água. Pesquei nelas tumém. Dava muito peixe.”
“De fato, seu Totonho. Nasci em 1947, quando essas obras todas estavam sendo feitas. O senhor conheceu um mundo que não existe mais.” “Tinha muita água, muito rio, muita lagoa, muito peixe. Agora acabou tudo. Já vivi e vi muita coisa, professor. Hoje, não saio mais de casa. Se pudesse, não saía mais pra nada. Meu mundo acabou. Acho que Jesus nosso Senhor quis me castigar me deixando vivo tanto tempo. Será que meu castigo foi esse: vê meu mundo morrê e me deixá vivo? Mió ficá no meu cantinho aqui em Pipeiras.”
“O senhor se considera um muxuango, seu Totonho?” “Sim, sinhô. Eu sou mixuango. Nasci na ilha da Convivença, que agora acabô. Vim prá cá faz vinte anos, mas vi isso tudo nascê. O lado dereito do rio Água Preta foi mais povoado que o lado esquerdo. Palacete, Pipeiras, Barra do Jacaré, Sabonete, Cazumbá, Córrego Fundo, Marreca, Quixaba. Vi isso tudo nascê e crescê. Agora, é na margem esquerda que está chegando o progresso. Era tudo de barro e paia, Agora, só tem casa de teia.
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023
DISTÂNCIA DE RESGATE.
Samanta Schwblin. “Distância de resgate” (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2016).
Um dos livros mais tensos que conheço. Ele arranha as raias do sobrenatural. A autora escreve de forma densa e nervosa, como de um só fôlego, embora haja diálogo. Duas mulheres: Amanda e Carla, com seus filhos Nina e David. Outras pessoas são mencionadas, mas a trama centra-se nesses quatro. Amanda diz: “Sempre penso no pior. Agora mesmo estou calculando quanto demoraria para sair correndo do carro e chegar a Nina, se ela corresse de repente para a piscina e se atirasse. A isso dou o nome de ‘distância de resgate’, que é como chamo a distância variável que me separa da minha filha, e passo a metade do dia fazendo esse cálculo, embora sempre arrisque mais do que deveria.”
Essa é a preocupação que permeia todo o livro. De fato, estamos sempre preocupados com a distância de resgate, mesmo sem pensar nela. Estamos sempre atentos para o perigo ou para o que poderíamos ter feito, caso a realidade não acompanhe nossas expectativas. Não apenas no espaço, mas também no tempo, existe a distância de resgate. Por que escolhemos um cônjuge e não outro? Como poderíamos resgatar uma trajetória que não se realizou. Como podemos resgatar o tempo perdido. Como podemos salvar uma pessoa. Por que não nos ativemos a um determinado perigo?
No livro, também está presente um clima de envenenamento no ar. Ele está ambientado na zona rural. David se contamina em nível mortal. Uma curandeira o salva dividindo seu mal com outra pessoa desconhecida para o leitor. O menino parece ganhar poderes sobrenaturais. Ele conversa como se previsse o futuro. Sua pele ficou manchada. Vermes aparecem com frequência no livro.
O clima é de sonho. Melhor, de delírio, de pesadelo. Não se sabe se se trata de realidade vivida ou imaginada. Podemos admitir que se trata de uma fábula sobre a tecnificação do mundo, da industrialização da agricultura, da invasão do campo pelo urbano. A conclusão do livro é sintomática: “Não vê os campos de soja, os riachos entretecendo as terras secas, os quilômetros de campo aberto sem gado, as vilas e as fábricas chegando à cidade. Não repara que a viagem de volta foi se tornando cada vez mais lenta. Que há carros demais, carros e mais carros cobrindo cada nervura de asfalto. E que o trânsito está parado, paralisado há horas, fumegando efervescente. Não vê o importante: o fio finalmente solto, como um pavio aceso em algum lugar: a praga imóvel prestes a irritar-se.”
BODAS DE PRATA
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