sábado, 18 de setembro de 2021

UM NATURALISTA AMADOR NA ILHA DO MEL (III)

Arthur Soffiati

Visitei a Ilha do Mel três vezes e nas três me encantei com sua vegetação nativa, além do fascínio que exerceu sobre mim o mar, os monumentos naturais e o Forte de Nossa Senhora dos Prazeres. Minha primeira visita ocorreu em 1955 e se durou um mês. Eu tinha 8 anos de idade e nada sabia de ecologia. Lembro do meu embevecimento diante de um exemplar de mangue vermelho num dos vários córregos que descem do interior da ilha rumo ao mar. As ramificações do caule daquela árvore sempre provocam uma sensação estranha em quem visita um manguezal. A água escura, soube depois, é água de chuva que se acumula em depressões no interior da ilha. A vegetação morta que se decompõe na água confere coloração escura a ela devido à formação de ácido húmico.

Minha segunda visita ocorreu em 1973 e durou apenas algumas horas. Mesmo assim, o encantamento foi renovado. A terceira, por fim, em 2016, estendeu-se por alguns dias e me permitiu examinar melhor a vegetação nativa. Deixo claro que não sou botânico nem ecólogo. Sou historiador ambiental interessado em esferas do conhecimento que contribuem para a minha especialização não-especializada. Para compreender melhor as formações vegetais nativas que se descortinavam a meus olhos, recorri ao livro História natural e conservação: Ilha do Mel, organizado por Márcia C. M. Marques e Ricardo Miranda de Britez (Curitiba: UFPR, 2005). Concentrei-me nos estudos “A vegetação da planície costeira”, de Sandro Menezes Silva e Ricardo Miranda de Britez, e “Floresta ombrófila densa submontana: florística e estrutura do estrato inferior”, de Carina Kozera e Ricardo Ribeiro Rodrigues.

Podemos distinguir duas fisionomias topográficas: as elevações e a planície. O ponto culminante da ilha situa-se na parte menor das duas porções que a formam. No passado, as partes eram separadas. Nos últimos milhares de anos, elas se ligaram por um istmo. O ponto mais elevado é o morro Bento Alves, com 148 metros de altitude. Descendo as elevações até a praia, chega-se a 0 m. A parte alta, sobretudo na na porção maior da ilha, é recoberta por floresta ombrófila densa submontana, segundo classificação de Henrique Pimenta Veloso, Antonio Lourenço Rosa Rangel Filho e Jorge Carlos Alves Lima (Classificação da vegetação brasileira, adaptada a um sistema universal. Rio de Janeiro: Fundação Instituto de Geografia e Estatística, 1991). Os autores assim a definem: “Esta formação é caracterizada por ecótipos que variam influenciados pelo posicionamento dos ambientes de acordo com a latitude, ressaltando-se também a importância do fator tempo nesta variação ambiental.”  Trata-se da velha, boa e sofrida Mata Atlântica úmida, verde durante o ano todo.

Começo por ela, que dominava toda a zona litorânea do Brasil, do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte, com ramificações para o interior. Na Serra do Mar, ela se apresenta densa, úmida e perene. Nas zonas baixas, ela sofre variações que vão desde à condição estacional semidecidual (com perdas entre 20% a 50% da folhas na estação seca) e estacional decidual (com perdas acima de 50% na estação seca). A Mata Atlântica se caracteriza por estratos de vegetação, sendo o mais alto formado por grande árvores, complexidade e umidade permanente. Ela foi em grande parte devastada e substituída por lavouras, pastos e cidades. 

Floresta ombrófila densa submontana 

Já a diversidade da vegetação que recobre a as planícies da ilha é bem grande. Silva e Britez começam a análise da costa para o interior da ilha. Farei caminho inverso por entender que a formações mais antigas estão no interior. Serei fiel à tipologia deles por não ter nenhum conhecimento próprio e qualquer tipo de apontamento, ainda que impressionista. Depois da floresta, estendem-se as formações florestais não-inundáveis, inundáveis e baixa halófila; o fruticeto, que corresponde à vegetação arbustiva. Os autores identificam fruticeto fechado e aberto. O fechado pode ser não inundável e inundável. O aberto idem: não inundável e inundável. Na parte mais baixa da costa, junto ao mar, alastram-se os campos, que podem ser fechados e abertos. Examinemos cada uma das formações.

1) Floresta fechada

a) Não inundável: É formada principalmente por árvores com copas justapostas entre 6 e 8 metros de altura. Sob elas, desenvolve-se sub-bosque com espécies arbustivas em sua maioria. No estrato inferior, predominam basicamente espécies herbáceas. 

Canela-lageana (ocotea pulchella)em floresta fechada não inundável 

b) Inundável: formada por árvores com altura entre 15 e 20 metros. As plantas desse tipo de floresta adaptaram-se à sazonalidade de alagamento por movimento ascendente e descendente o lençol freático. No seu interior é que se encontram depressões saturadas de água durante o ano todo e com a formação de ácidos húmicos pela decomposição de matéria orgânica. Nessas áreas, a espécie de grande ocorrência é a caxeta (Tabebuia cassinoides) 

Bosque com caxeta em floresta fechada inundável

c) Halófila: correspondem aos manguezais, formação que o autor do artigo examinará com mais detalhes no último artigo da série.

2- Fruticeto: a origem da palavra é o latim. Nesta língua, frutice significa qualquer planta lenhosa de pequeno porte com caule lenhoso e ramificado desde a base. Fruticeto corresponde a conjunto de formações arbustiva. Ou seja, aquelas entre as formações arbóreas e as formações herbáceas. Os autores distinguem três, na Ilha do Mel:

a) Fechado não inundável: segundo os autores que seguimos, a ocorrência desta formação “... é restrita às vertentes externa e interna do primeiro cordão nas praias voltadas para o seu lado leste-sudeste-sul, como a de Fora, Grande, do Miguel e das Encantadas”. Os ventos predominantes penteiam as plantas. As mirtáceas são muito comuns, destacando-se o araçá-da-praia (Psidium cattleianum). A aroeira (Schinus terebinthifolius) também é bastante frequente. O estrato inferior é dominado pelas bromélias.


Araçá-da-praia (Psidium cattleianum) 

b) Fechado inundável: Nesta formação do fruticeto, a cobertura geralmente supera os 60%, particularmente nos locais bem drenados e afastados da linha da praia. Ela cresce em areia misturada a sedimentos mais finos. A umidade decorre da proximidade dos pequenos cursos hídricos de água escura que drena água do interior para o mar. A espécie dominante é o rabo-de-galo (Dalbergia ecastophyllum), mas há outras.   

Exemplar de rabo-de-galo (Dalbergia ecastophyllum) 

c) Aberto não inundável: apresenta-se ele em dois estratos em formação típica de moitas. No estrato mais alto, é comum encontrar o araçá-da-praia (Psidium cattleianum). A espécie que mais chama a atenção nessa formação é camari-nhêba (Gaylussacia brasiliensis). 

Exemplar de camari-nhêba (Gaylussacia brasiliensis) 

d) Aberto inundável: ocorre principalmente na praia Grande e em alguns pontos da praia de Fora das Encantadas. A única espécie encontrada é Myrsine intermedia, planta arbustiva com altura entre 3 e 5 metros. Ela cresce em áreas sujeitas a inundações onde só as partes mais altas permanecem emersas.

Exemplar de Myrsine intermedia

3- Campo

a) Fechado inundável: encontrado com mais frequência ao longo dos pequenos cursos d’água próximos à costa voltada para a baía de Paranaguá. As espécies são herbáceas e chegam a dois metros de altura. As plantas mais características fazem parte da família  ciperácea, com destaque para Cladium mariscus jamaicense. A taboa também está presente. 

Exemplar da ciperácea (Cladium mariscus jamaicense) 

b) Aberto não inundável: é formado por vegetação com altura inferior a 50 cm. As espécies são herbáceas e reptantes, ou seja, crescem junto ao solo. O exemplo mais conhecido é o da ipomeia. Registrem-se também pirrixiu (Blutaparon portulacoides) e várias gramíneas (hoje família poacea), Essa vegetação vem sofrendo muitas pressões de ocupação e urbanização.

Pirrixiu (Blutaparon portulacoides)

 c) Aberto inundável: formação associada a depressões entre cordões litorâneos e áreas abertas úmidas em locais mais interiores da planície costeira. É comum encontrar a espécie Bacopa monnieri e exemplares não desenvolvidos de mangue branco (Laguncularia racemosa). Nas depressões, a espécie dominante é a samambaia Blechnum serrulatum.


 Exemplar de Bacopa monnieri 

d) Inundável halófilo: é conhecido pelo nome de marisma. A espécie dominante é o capim praturá (Spartina alterniflora).  

População de praturá (Spartina alterniflora)

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

O DRAMA DO RIO LIMIA

                                        La Voz de Galicia, A Coruña, 15 de setembro de 2021

Arthur Soffiati

    A agricultura e a pecuária requerem terra. O Limia teve sorte em muitos rios do mundo, com sua bacia em obras de drenagem e canalização. Grandes áreas úmidas tornaram-se áreas secas, afetando o lençol freático, que se torna mais profundo. Não sem razão, Limia desaparece pelo menos três meses por ano em Xinzo. Na verdade, é um canal aberto em sua tigela. A mudança climática agrava as condições da água, já bastante alteradas pela ação humana na superfície da Terra. Ou chove muito pouco ou muito. Durante as secas, o fluxo de água desaparece, mas o leito ainda permanece úmido. Insolação e resíduos químicos e orgânicos estimulam o crescimento das plantas. Barragens também foram construídas no rio. Eles alteram completamente o regime hídrico e os hábitos da vida selvagem aquática. 

Rios da Galícia 

Trecho do rio Limia com baixa vazão 

    Em várias partes do mundo, a economia de mercado tenta domar os rios, canalizando seus cursos, erguendo represas para controlar as oscilações de nível, reduzindo seu volume, poluindo suas águas e empobrecendo sua diversidade. O rio Limia não escapou deste destino. O regime de Franco promoveu a drenagem da bacia. Tudo faz parte de uma concepção da natureza segundo a qual. deve ser dominado e colocado a serviço do ser humano. A drenagem excessiva favorece a perda da fertilidade do solo. Para compensar isso, são usados fertilizantes químicos que causam eutrofização ou fertilização química. Para completar, a atividade de mineração causa buracos marginais e poluição. Um rio modificado dessa forma não conserva água durante as secas e transborda com chuvas leves, pois as florestas marginais, que atuam como esponjas reguladoras, foram removidas. As poucas florestas remanescentes permanecem excessivamente secas e são suscetíveis ao fogo. Moro em uma região do Brasil que passou por um processo idêntico ao que afetou o rio Limia. 

Baixa vazão do rio Limia 

    Enormes lagoas foram drenadas, rios foram canalizados, o que era considerado excesso de água foi despejado no mar, florestas foram derrubadas para dar lugar à agricultura e à pecuária. O rio principal sofreu várias barragens. Hoje, durante o outono / inverno, a água é reduzida a níveis e volumes mínimos. Durante a primavera / verão, as chuvas torrenciais causam transbordamentos. Para as secas, principalmente, os agricultores exigem mais recursos financeiros dos governos. Um novo conceito começa a se formar e se impor: o de revitalizar rios, que envolve devolver seus meandros, repovoar suas margens e nascentes, retirar presas, eliminar espécies de peixes exóticas e repovoá-las com espécies nativas. Por fim, restaure a saúde dos rios, o que é muito importante para a saúde humana. 

Aspecto do rio Limia

 

O drama do rio Limia

Arthur Soffiati

    A agricultura e a gandería requiren terra. O Limia tivo a sorte de moitos ríos do mundo, coa súa conca en obras de drenaxe e canalización. Os humidais grandes convertéronse en zonas secas, afectando á capa freática, que se fai máis profunda. Non sen razón, a Limia desaparece polo menos tres meses ao ano en Xinzo. En realidade é unha canle aberta na túa cunca. Os cambios climáticos agravan as condicións da auga, xa moi alteradas pola acción humana na superficie terrestre. Ou chove moi pouco ou demasiado. Durante as secas, o fluxo de auga desaparece, pero o leito aínda permanece húmido. A insolación e os residuos químicos e orgánicos estimulan o crecemento das plantas. Tamén se construíron presas no río. Alteran completamente o réxime hídrico e os hábitos da fauna acuática. 

Pequena barragem no rio Limia

     En varias partes do mundo, a economía de mercado tenta domar os ríos, canalizando os seus cursos, levantando presas para controlar as flutuacións de nivel, reducindo o seu volume, contaminando as súas augas e empobrecendo a súa diversidade. O río Limia non escapou deste destino. O réxime franquista promoveu a drenaxe da conca. Todo forma parte dunha concepción da natureza segundo a cal. debe dominarse e poñerse ao servizo do ser humano. Un drenaxe excesivo favorece a perda de fertilidade do solo. Para compensalo utilízanse fertilizantes químicos que provocan a eutrofización ou a fertilización química. Aínda por riba, a actividade mineira causa buratos marxinais e contaminación. Un río modificado deste xeito non conserva a auga durante as secas e os desbordamentos con chuvias leves, xa que se eliminaron os bosques marxinais, que actúan como esponxas reguladoras. Os poucos bosques que quedan quedan excesivamente secos e son susceptibles ao lume. Vivo nunha rexión do Brasil que experimentou un proceso idéntico ao que afectou ao río Limia. 

Abraço de proteção ao rio Limia 

    Desaugáronse masivas lagoas, canalizáronse os ríos, botouse ao mar o que se consideraba exceso de auga, cortáronse bosques para deixar espazo á agricultura e á gandería. O río principal sufriu varias presas. Hoxe, durante o outono / inverno, a auga redúcese a niveis e volumes mínimos. Durante a primavera / verán, as choivas torrenciais provocan desbordamentos. Para as secas, principalmente, os agricultores esixen aos gobernos máis recursos financeiros. Comeza a formarse e imporse un novo concepto: o de revitalizar os ríos, o que implica devolverlles os meandros, repoboar as súas beiras e fontes, eliminar presas, eliminar especies de peixes exóticos e repoboalos con especies autóctonas. Finalmente, restaurar a saúde dos ríos, que é moi importante para a saúde humana. 

Aspecto do rio Limia

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...