quarta-feira, 7 de julho de 2021

UM NATURALISTA AMADOR NA ILHA DO MEL (I)

Arthur Soffiati

Sei que os biólogos só consideram manguezal um bosque com espécies exclusivas desse ecossistema, admitindo espécies associadas. Sei também que os manguezais são formados por plantas angiospermas (plantas completas) que, em torno de 60 milhões de anos passados, fizeram a experiência de molhar seus pés em ambientes aquáticos e salinos da costa banhados por marés, começando no atual Sudeste Asiático. De lá, disseminaram-se por toda a faixa tropical pouco acima e abaixo dela.

Como sou eco-historiador, vejo o manguezal pelo prisma temporal. Assim, interesso-me por áreas que já contaram com bosques, que contam com eles ou que podem vir a contar. Estudo também as resultantes das relações entre as sociedades humanas e os manguezais, bem como com outros ecossistemas, sempre me esforçando para ouvir a voz deles.

Este artigo tem algo de crônica porque trato do manguezal mais antigo da minha vida. Em frente à casa em que morei em Paranaguá, na primeira metade da década de 1950, estendia-se o manguezal da Ilha dos Valadares, ainda extenso atualmente, mas já ameaçado por ocupação humana. Meu pai era militar e, em 1955, substituiu o comandante do Forte Nossa Senhora dos Prazeres, na Ilha do Mel, por um mês. Eu contava então com oito anos. Minha tarefa diária era buscar o almoço da família numa casa simples onde uma senhora idosa cozinhava para fora. Nesse curto caminho, havia um córrego cuja água era avermelhada. Fiquei bastante impressionado com essa coloração. Ocorreu-me que aquela cor podia derivar de sangue. Pela primeira vez na minha vida, prestei atenção numa árvore que se ramificava ao se aproximar do solo. Mais tarde, soube tratar-se de mangue vermelho.

Acabo de voltar à ilha, 51 anos depois da minha estada de um mês nela. Fiz questão de visitar o forte e o córrego. Sua vazão é tão diminuta que ele só chega ao mar quando a água do continente se acumula numa bacia e transborda. Com as marés cheias, o mar também o invade. A coloração da água continua avermelhada, mas as plantas adultas de mangue vermelho não estão mais lá. Localizei apenas um exemplar de siribeira (Avicennia schaueriana). Plantas invasoras e razoavelmente tolerantes à salinidade também se encontram no pequeno estuário, como guaxuma (Talipariti pernambucense) e mololô (Annona glabra).

Exemplar de siribeira à esquerda junto a um exemplar de guaxuma

Localizei também várias mudas (plântulas) de mangue vermelho (Rhizophora mangle), mas nenhum exemplar adulto. A água avermelhada deve derivar de outras plantas ou de outros fatores. Como eu era muito pequeno quando visitei o riacho, não retive detalhes na memória. Embora as margens da foz sejam um pouco elevadas, há espaço para o desenvolvimento de manguezais nas partes atingidas pelas marés.

Muda de mangue vermelho no riacho da Ilha do Mel

Aliás, na face da ilha aberta para o mar, existem mais alguns córregos que descem da parte montanhosa e não conseguem manter a barra permanentemente aberta. Entre o morro do Farol e a Fortaleza, encontrei quatro. Apenas um conseguia manter o fluxo contínuo de água doce até o mar. Em todos eles, havia exemplares novos de plantas de manguezal. A água de um deles era mais vermelha que a do córrego da minha infância. Indagando aos poucos moradores dessa face da ilha, ninguém soube me dizer o nome deles. Se algum dia eles mereceram ser nomeados, hoje são apenas “corgos”.  

Outro córrego com água vermelha voltado para o mar aberto na Ilha do Mel

Outro córrego sem vazão para atingir o mar na maré baixa. Face da Ilha do Mel voltada para mar aberto

Único córrego com fluxo contínuo no trecho percorrido da praia voltada para mar aberto

Na face da Ilha voltada para o mar aberto, estão ocorrendo fenômenos erosivos que alguns atribuem a aprofundamentos frequentes de um canal submarino para a entrada e saída de navios no porto de Paranaguá. Creio que esses fenômenos dificultam a fixação de sementes (propágulos) de mangue nesse lado. Os riachos são o melhor local para o desenvolvimento de plantas. Mesmo assim, elas são escassas nos pontos adequados para o desenvolvimento de mangue: água doce misturada com água salgada, gerando água salobra. Normalmente, esse encontro das duas águas com salinidade diferente ocorre em rios e riachos, permitindo o desenvolvimento de manguezais ribeirinhos.

Erosão nas praias da ilha voltadas para o mar aberto

As três espécies exclusivas de mangue abaixo do rio das Ostras, no estado do Rio de Janeiro, são mangue preto ou siribeira (Avicennia schaueriana), mangue branco (Laguncularia racemosa) e mangue vermelho (Rhizophora mangle). A mais resistente à salinidade é a siribeira. Esta espécie tem dois tipos de raiz: as que se dirigem para o fundo do solo, como comumente fazem as raízes, para obtenção de nutrientes e as que se dirigem para a superfície para respirar. Este segundo tipo é uma das formas adaptativas mais interessantes da natureza. Como o solo é lamoso e compacto, sendo ainda coberto pelas marés periodicamente, ar penetra muito pouco ou nele. Então, essas raízes, denominadas pneumatóforos, saem do solo e vem à tona para respirar, como um tubo de mergulhador. Nas pontas delas, desenvolvem-se poros por onde o ar entra. São as lenticelas. Com muito sal entrando no seu organismo, a siribeira o expele pelas folhas. Quem lamber uma folha desse planta perceberá que ela é salgada. É possível mesmo perceber mínimas partículas de sal expelidas.

O mangue vermelho é a marca registrada do manguezal. Do seu caule, saem ramificações para fixar a planta no chão. Dos seus galhos descem raízes como se fossem cordas para amarrar a árvore. Nela, as lenticelas se localizam nas ramificações do caule, acima da linha de maré para que as cheias não impeçam a planta de respirar.

O mangue branco também lança raízes do solo par buscar o ar, como a siribeira. A planta se adapta a ambientes bem diversos, como cavidades em pedras que guardam um pouco de terra. Mas visitemos agora a face interna da ilha, aquela voltada para o canal.  


Fotos do autor  

domingo, 4 de julho de 2021

RETORNO À ILHA DO MEL

 Arthur Soffiati

Conheci a Ilha do Mel em 1955. Meu pai era militar da Infantaria e foi designado para substituir o comandante do Forte Nossa Senhora dos Prazeres em suas férias. Consegui lembrar do ano em que passei um mês largado na vida, naquela ilha paradisíaca, graças a uma marchinha de carnaval. “Foi numa casca de banana que eu pisei...”. Ela foi lançada em 1955. Vivi uma vida inteira em um mês aos oito anos de idade. Lembro de um soldado que cantava a marchinha no forte.

Acabo de ler a entrevista de uma psicóloga dizendo que criança precisa ficar à toa. Fiquei à toa por nove anos. Meu pai não me mandou para a escola aos sete anos, como era comum naquele tempo. Ele achava que a família ensinava mais que a escola. Com ele, aprendi a ler e escrever em letra de forma. Minha mãe se curvava aos desejos dele. Se não fosse minha avó paterna, eu teria crescido sem passar por escolas e seria o que já sou: autodidata.

Ilha do Mel, que lugar mágico! O forte foi erguido entre 1767 e 1769, na administração do poderoso Marquês de Pombal. Hoje, sua construção consumiria uns dez anos, desviaria uma fortuna dos cofres públicos e ruiria em pouco tempo. A fortaleza fazia parte da política de defesa de Pombal, no meu entender, o administrador que concebeu um plano sólido para o Império Português, que se estendia do Brasil à Indonésia, passando pela África, Índia e China. Não deu certo.

É prazeroso me iludir, imaginando que o marquês tenha construído o forte para que eu vivesse o mês mais feliz da minha vida. Eu sabia ler e escrever, mas nada lia e escrevia. Eu não tinha planos para o futuro e, por isso, não ficava ansioso. Eu brincava e me divertia. Ainda não tinha amores platônicos por meninas mais velhas que eu. Portanto, não sofria com o desprezo delas. Por um mês, aquela ilha foi o meu universo.

No centro do terreno, ficava a sede do forte. A luz para os arredores era gerada pela unidade militar, que devia ter um comandante, um sargento, um cabo e dois soldados, todos sempre de calção de banho e descalços, como convém ao mais disciplinado militar que serve perto da praia. Meu pai era um comandante muito liberal, dando ele próprio o exemplo de como um militar deve se trajar numa praia. E aquela não era uma simples praia. Era a mais bela praia numa ilha perdida.

 

Fachada do Forte

No alto do forte, canhões do período colonial defendiam a Baía de Paranaguá de um ataque inimigo. Não havia mais tanto ouro para saquear. Mas novos inimigos podiam atacar, como a Alemanha de Hitler, por exemplo. No alto do morro do forte, havia uma bateria de quatro canhões 155 mm, com que ensaiei uma defesa da Barra da Tijuca em 1967, prestando serviço militar. Para chegar aos canhões, era preciso subir uma trilha proibida para menores sem a companhia de um adulto. Meu pai me levou lá apenas uma vez.

Mas o meu forte se restringia à parte baixa. De suas muralhas, eu contemplava, respirava e degustava o mar infinito, apenas interrompido pela Ilha das Peças. As outras ilhotas eram contornadas pelo meu olhar. Minha incumbência diária era buscar o almoço e o jantar numa casa adjacente ao forte. A comida era feita por uma senhora. Para tanto, eu descia uma escada de madeira situada no lado direito da muralha, cruzava um riacho com água vermelha e chegava à casa. Aquela água vermelha, como sangue aguado, causou-me forte impressão.

Depois das férias do nada em 1955, voltei à Ilha do Mel em 1974 com meus pais. Não fomos ao forte, muito distante e ainda quase inacessível para viajantes com pouco tempo. Já havia um povoado ao sul da ilha meridional. Fomos à ilha num barco, tiramos uma foto e voltamos a Paranaguá no mesmo barco. Não valeu a visita.

Agora, em 2016, 42 anos depois da segunda visita, minha mulher e eu passamos dois dias na ilha. Retornei ao forte, hoje administrado pelo IPHAN. Tudo está lá: as masmorras, as muralhas, a casa central, as dependências laterais, os canhões coloniais, os canhões no topo do morro, mas a alma do forte expirou. Não sei para onde foi. Dela, ficou a lembrança no meu coração. Agora, existem dois núcleos habitacionais. A ilha continua linda com suas colinas ao centro, descendo suave ou abruptamente até o mar, permitindo uma ligação contínua entre a mata atlântica e os manguezais.

 

Revisitando o Forte

A ilha tem o formato de duas ilhas ligadas por um istmo. O forte fica na parte norte, protegida por uma Estação Ecológica. A parte sul é protegida por um Parque cuja zona mais aberta abriga várias pousadas. Não sei se voltarei à ilha. Meu desejo agora é caminhar na sua orla interna e conhecer a Ilha das Peças. Hoje, guardo as memórias da minha infância na ilha em meu coração. O passado passou. A alma da ilha é outra, encarnada em outro corpo. 

                                                                                           


                 Mata na orla da Ilha do Mel

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...