quinta-feira, 2 de setembro de 2021

PARANAGUÁ 2

 Arthur Soffiati

Durante o dia, eu ouvia programas de rádio. A TV já existia, mas era um aparelho raro na casa das pessoas. Em Paranaguá, não lembro de vê-la em lugar nenhum. O rádio dominava. Um dos programas prediletos das crianças era “Histórias do rio Janjão: histórias do tempo em que os bichos falavam”. Havia um caráter moral nas histórias. Na hora de dormir, os animais diziam estar com sono, quase dormindo. Como não era possível atestar o sono, eles mesmos anunciavam que haviam dormido. E eu perguntava como um animal que dormira anunciava o seu estado. Mas aceitava. 

Mercado Municipal de Paranaguá 

Era sagrado, depois do almoço, ouvir o programa “Seu criado, obrigado”, creio que na Rádio Nacional. Lourival Marques o criou. As perguntas eram enviadas por ouvintes, como anunciado. E o locutor as respondia. Uma das que me marcaram versava sobre a maior velocidade do universo. Já havíamos aprendido que era o luz. Mas “Seu criado, obrigado” ensinava que era o pensamento. Escutávamos ainda a Rádio Relógio Federal. Os segundos eram marcados por um tik-tak. Ao terceiro sinal mais forte, a hora era anunciada. Nos intervalos, eram divulgadas curiosidades, começando com a pergunta “Você sabia”?

À noite, o aparelho de rádio era do meu pai, que buscava emissoras estrangeiras. Na minha lembrança fixou-se com nitidez uma emissora paraguaia que sempre anunciava “E nene hace nono com babeol” Nunca soube o que era babeol, assim como não sabia a utilidade do Regulador Xavier. 

Prédio do Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá 

Uma vez por ano, a sala central se iluminava. Meu pai trazia o galho de um pinheiro-do-Paraná para transformá-lo em árvore de Natal. Era maravilhosa a sensação de arrumar aquela árvore e de esperar os presentes deixados por Papai Noel. A sala ficava iluminada pela magia do Natal. Ao acordarmos no dia 25, ela estava coalhada de presentes em seu pé. Certa vez, acordei escondido de meus pais e esperei Papai Noel. A crença era tanta que eu o vi certa vez. Mas tarde, com desencanto, fiquei sabendo que os presentes vinham do Rio de Janeiro, enviados por meus parentes.

Na frente da casa, por duas portas, saía-se numa área onde havia uma escada pela qual se chegava na margem direita do rio Itiberê. Com certa frequência, eu acordava cedo e ia com meu pai ao Mercado Municipal, passando por um enorme movimento de canoas, barcos e lanchas que se dirigiam a vários pontos da baía de Paranaguá. Lá, enquanto meu pai tomava um café preto e forte, eu comia banana empanada. Nunca mais me esqueci do sabor dessa banana. Sessenta e seis anos depois, voltei à Paranaguá e novamente provei a banana empanada, como se o tempo não tivesse passado. O mercado foi restaurado e me trouxe agradáveis lembranças da minha infância. 

Teatro Municipal de Paranaguá 

Subindo uma ladeira, chegava-se à rua que passava no fundo da minha casa. Era ali que funcionava um cinema que a criançada frequentava aos domingos. Na ladeira, havia uma farmácia hoje não mais existente. Na rua do cinema, morava uma família amiga. Na verdade, apenas uma senhora de nome Mariana e seu filho Nagib Mussi. Lembro bem deles. Dona Mariana era muito gentil. Nagib era um típico libanês: gordo, careca e sempre atencioso. Com frequência, minha mãe os visitava.

Lembro de caminhar pela rua do cinema. Nessas caminhadas, eu passava pela casa do compositor Brasílio Itiberê. No final, ficava a sede do Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá. Mais adiante, encontrava-se o convento dos Jesuítas. Havia a lenda de que um túnel ligava o convento à igreja do Rossio.

Seguindo uma rua transversal, chegávamos a uma praça. Era comum, sermos levados à praça para brincar. Em torno dela, morava uma família amiga dos meus pais. Eles tinham três filhos. Alaíde e Eliane eram gêmeas e gordinhas. O menino chamava-se Péricles. Pequinho era seu apelido. Quando eles nos visitavam, eu escondia meus brinquedos. As meninas costumavam roubá-los. Pequinho os quebrava. Certa vez, Pequinho pisou num canteiro que meu pai preparara para uma horta. Ele calçava o meu número. Foi constrangedor para mim tirar o sapato para que meu pai medisse a pegada e me castigasse por algo que não fiz.

Além da praça, ficava o cinema Santa Helena, que raramente frequentávamos. Logo adiante, havia um dentista que foi o primeiro a tratar das minhas cáries. Tínhamos medo dele. Seu tipo era assustador. Sua broca era ainda movida a pedal. Seu tratamento aterrorizava. 

Coreto da praça 

Caminhando mais ainda, chegávamos ao Rossio. Parecia muito longe para uma criança. Não era para os adultos. Em 1973, voltei a Paranaguá e visitei uma família amiga que morava no Rossio. Tudo me pareceu perto. A cidade havia encolhido ou eu crescera? A cidade mudara com o tempo, mas não encolheu. Eu crescera. Eu experimentava a relatividade de Einstein.

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...