quinta-feira, 14 de março de 2024

CONHECENDO ALGUNS MANGUEZAIS DO BRASIL: BRAGANÇA - PARÁ

 Arthur Soffiati

            Visitei Belém do Pará duas vezes. A primeira foi em 1989, quando participei de um evento nacional de Serviço Social. Convidaram-me para participar de uma mesa redonda. Passei uma semana maravilhosa em Belém, conhecendo o Mercado Ver-o-Peso, o Museu Emílio Goeldi, o Bosque, as casas, as igrejas e a Baía de Guajará. Surpreendi-me também com a facilidade que a comercialização de animais silvestres encontrava na cidade. Estive na Ilha do Mosqueiro. Pensei em visitar a Ilha de Marajó, mas não consegui. A segunda foi em setembro de1998, quando apenas passei por Belém rumo a Bragança para participar do V Encontro Nacional de Educação Ambiental em Áreas de Manguezal.

            Bragança é uma cidade com origem no período colonial. A cidade ergueu-se à margem esquerda do Rio Caeté. Seu casario imponente, em estilo colonial, atesta sua antiguidade. Nunca viajo como turista, buscando entretenimento e consumismo. Minhas viagens são pautadas pela economia financeira, sempre buscando o conhecimento. Nada, ao meu entorno, é desinteressante. Fiquei hospedado numa pousada modesta, participei ativamente do Encontro, caminhei pela cidade com olhos atentos e visitei Ajuruteua no intervalo entre uma atividade e outra. 

Antiga casa de Bragança usada como loja comercial

            Foi nesse encontro que ouvi um depoimento tocante do catador Moisés de Melo Amorim, da Associação dos Pescadores da Vila de Ajuruteua. Ele mostrou que a vida de quem depende do manguezal é árdua. Revelou que quase teve um pé amputado por infecção contraída na captura noturna de caranguejos e que um filho seu perdeu uma perna por razões similares às suas. Nós, acadêmicos, tendemos a transformar o pobre em herói. Por um lado, ele é, de fato, um herói por sobreviver em condições tão adversas. Mas nós, estudiosos, vemos o pobre como Rousseau via os índios: vida harmônica em isolamento ou em comunidade, mantendo relações harmoniosas com o ambiente.

            Harmonia é um conceito cartesiano que nos transmite a ideia de que engrenagens interligadas funcionam com perfeição. Numa economia de subsistência, que dominava as terras do futuro Brasil pré-europeu, certamente as relações entre as sociedades humanas e o ambiente eram pautadas pelo equilíbrio. Contudo, na medida em que a economia de mercado foi ganhando terreno depois de 1500, com a integração progressiva do Brasil ao mundo europeu, o equilíbrio foi se esfacelando. A economia predominante ainda resistiu no contexto dos manguezais do Brasil porque se tratava de um ambiente desprezado. Mas o extrativismo vegetal e animal aumentou. O manguezal acabou capturado pela economia capitalista e, consequentemente, globalizada. Hoje, a vida das pessoas que dependem do manguezal é dura. Mesmo nos imensos manguezais do Norte do Brasil.

            Em meio ao depoimento realista e duro de Moisés, ainda pude encontrar beleza. Nunca havia conhecido manguezais tão extensos e tão desenvolvidos como os de Ajuruteua. Tais extensões e dimensões se explicam pela localização dos manguezais nas cercanias da linha do equador e pela amplitude das marés. Quem estuda manguezais sabe que eles se desenvolvem mais na zona equatorial e que diminuem na medida em que se caminha para os Trópicos de Câncer e de Capricórnio. Sabe-se também que os manguezais medram em água salobra, derivada do encontro da água doce dos rios com a água salgada do mar. Na zona equatorial, as marés penetram fundo no continente, propiciando vastas extensões de manguezais. 

Enorme exemplar de siribeira

            Não visitei a charmosa praia de Ajuruteua, que os governos estadual e municipal pretendem vender como um dos grandes atrativos turísticos do Pará. Pelo que vejo da praia, em fotografias, ela tende a se tornar padronizada como as outras. As matérias promocionais dizem que a praia de Ajuruteua tem tudo para atrair investidores desde que o ambiente seja respeitado. Sabemos muito bem que, no cabo de guerra entre ambiente e empreendedorismo, a corda sempre arrebenta do lado do ambiente. Não visitei as pousadas, os quiosques, os petiscos, os trajes típicos estilizados, as morenas que frequentam a praia.

            Depois de assistir a uma demonstração discreta de carimbó, visitei uma aldeia de pescadores de Ajuruteua, onde os participantes do Encontro foram muito bem recebidos. Lá, pela primeira e única vez até agora, provei o turu, um molusco vermiforme que perfura árvores velhas. Ele estava morto numa caneca com sumo de limão. Nenhum visitante teve coragem de ingeri-lo. Como eu já havia tomado algumas doses de bebida alcoólica, não hesitei em engolir o animal sob aplausos gerais. Os pescadores atribuem propriedades afrodisíacas a este animal.

            Em Ajuruteua, fiquei impressionado com as dimensões das árvores de manguezal. Diante dos exemplares de mangue vermelho, não resisti à tentação de beijar seus enormes rizóforos, ramificações do caule. Também admirei os altos exemplares de siribeira, com suas alongadas raízes respiratórias. Fotografei uma típica casa de pescador, com paredes de taipa e telhado de palha. Em Ajuruteua, eu encontrava o passado.

            Mas esse mundo fascinante para mim foi estuprado por uma estrada, cujas obras iniciadas em 1973 foram concluídas em 1991, aterrando rios, canais naturais (furos) e devastaram imensas áreas de manguezal, afetando a atividade de pescadores e coletores. Como o manguezal do rio Caeté é muito extenso, a abundância de caranguejos proporciona uma economia coletora expressiva. A rodovia compromete essa economia em nome do progresso e de um turismo predatório que oferece uma natureza selvagem na praia de Ajuruteua. Em vários manguezais do Brasil, as populações deles dependentes creem em entidades protetoras, como a Vovó do Mangue, a Moça Bonita, o Vira-Pau. O manguezal do rio Caeté conta com a proteção de Ataíde, personagem lendário com pênis descomunal para ferir homens principalmente. Infelizmente, o manguezal não pôde ser protegido do chamado “progresso”, que dessacraliza o mundo.

Casa de pescador em Ajuruteua

            Em Bragança, apreciei a arquitetura, mas não deixei de notar os sérios problemas de saneamento básico, muito comuns nas cidades brasileiras, notadamente nos bairros pobres. Na cidade em que moro, também existe esse problema. Em Bragança, encontrei Cavalcante e Miguel Lira, pintores ingênuos de quem adquiri telas que estão nas paredes da minha casa. 

Tela de Cavalcante retratando manguezal 

Tela de Miguel Lira retratando manguezal

VISÃO DA ÍNDIA

Arthur Soffiati

            Do sexto andar do prédio onde moro, contemplo uma vasta planície que se estende a meus pés. Estamos em Campos dos Goytacazes, estado do Rio de Janeiro, Brasil. Essa planície foi construída por um rio de porte médio. É o rio Paraíba do Sul, com quase 1.200 km. Na borda dessa planície, o mar formou uma grande restinga. Havia muitas lagoas nela antes da chegada dos europeus. As plantas que desceram das montanhas tiveram de se adaptar à grande umidade. Colonizaram o território as espécies resistentes à água. A fartura de alimentos era grande para os povos nativos que a habitavam.

            Recuando 500 anos, não haveria pontos altos para contemplar a imensa planície. Ao custo de muitas obras de drenagem a partir do século XVII, os núcleos urbanos em estilo europeu foram sendo construídos. Mesmo assim, apenas 150 anos após a chegada de Pedro Álvares Cabral. A primeira tentava de colonização pelos portugueses, entre 1539 e 1547, fracassou. Do outro lado do mundo, a colonização portuguesa prosperava em Goa, Damão, Diu, Malaca, Macau e Timor. Ela se expandiu mais na Ásia onde estavam as riquezas que interessavam aos europeus. Toda a região aonde estou fazia parte da Capitania de São Tomé, doada a Pero de Gois.

            Árvores de grande porte, que cresciam na zona serrana da Capitania, não desciam até a planície em virtude da grande umidade. Era um mundo líquido com poucas áreas ligeiramente mais elevadas em tempos de estiagem. A partir de 1630, o gado europeu e a cana-de-açúcar asiática foram se expandindo pela mão do colono. Árvores da montanha foram sendo trazidas para as partes baixas. Da Ásia, em grande parte a partir de Goa, chegaram das espécies herbáceas às espécies arbóreas. Os capins fura-chão e cidade, vieram da Índia, assim como a mamona (Ricinus communis, da família Euphorbiaceae), a mangueira (Mangifera indica, da família Anacardiaceae), a jaqueira, a amendoeira, a fruta-pão, a lexia, o coqueiro, o jambo e outras mais.

Ilustração de mamona

            Hoje, olho para baixo e vejo à minha frente muitas mangueiras e amendoeiras. Em menor quantidade, encontro jaqueiras, lexia, fruta-pão e jambo. Andando pelas ruas dessa cidade erguida sobre lagoas, é muito comum encontrar mamonas crescendo de forma espontânea nos terrenos baldios.

Ilustração de mangueira por Michael Boym, em Flora Sinensis, 1656

            Um pedaço da Índia está à minha frente, assim como um pedaço do Brasil deve estar em Goa. Mas poucas pessoas sabem disso ou por isso se interessam.   

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...