quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

ILHA DA MADEIRA

Ilha da Madeira Arthur Soffiati Há 200 milhões de anos, todos os continentes do mundo estavam unidos num só. Os cientistas atuais (já que não existia nenhum naquela época) batizaram o grande continente com o nome de Pangeia, ou seja, a terra toda. A circulação de animais e plantas era mais fácil. Pelo menos, não tão difícil, pois não havia oceanos como barreiras. Os grandes dinossauros dominavam esse vasto continente. Os mamíferos eram representados por pequenas espécies. Em torno de 180 milhões de anos, o grande continente começou a rachar, dando origem a um grande continente no norte e a outro no sul. O do norte recebeu o nome de Laurásia e o do sul foi chamado de Gondwuana. Também eles se racharam, agora no sentido longitudinal. A Laurásia deu origem à Eurásia e à América do Norte. Gondwana se partiu e deu origem à África e América do Sul. Entre eles, formou-se o grande oceano Atlântico, com uma cadeia marinha quase toda submersa. As ilhas mais tarde batizadas de Oceania representam uma espécie de ovelha desgarrada. Isoladas pelos oceanos Pacífico e Atlântico, dois grandes conjuntos continentais desenvolveram floras e faunas novas a partir dos organismos originais. As atuais Europa, Ásia e África estavam unidas. De grande ilha, a África acabou se ligando a Eurásia por um istmo, que deu origem aos mares Mediterrâneo e Vermelho. Por essa estreita faixa de terra, mais tarde batizada de istmo de Suez, algumas espécies de hominídeos originados na África, ganharam a Eurásia. Só o “Homo sapiens”, a espécie da qual fazemos parte, alcançou a Oceania (40 mil anos passados) e a América (entre 50 e 12 mil anos passados). Entre Ásia, Austrália, Tasmânia, Nova Zelândia e outras ilhas da Oceania, as distâncias eram mais curtas no passado. Entre a Sibéria e o Alasca, existia uma ponte de terra que permitiu migrações humanas. Bastante tempo antes, a América do Norte ligou-se à América do Sul pelo istmo da América Central. A América do Sul viveu por milênios um esplêndido isolamento, permitindo o desenvolvimento de dinossauros enormes. Mais tarde, mamíferos herbívoros descomunais também reinaram na imensa ilha da América do Sul. O paraíso sul-americano terminou quando uma ponte de terra ligou as duas Américas, permitindo a passagem de grandes mamíferos carnívoros no sentido norte-sul. Mais tarde, chegaram os humanos. O historiador Alfred W. Crosby, que tão excelentes contribuições trouxe ao conhecimento do domínio ambiental e à transformação dos ecossistemas do mundo, ainda manifesta dificuldade em compreender as diferenças culturais entre euroasiáticos, americanos e oceânidas. Talvez, ele manifeste grande perplexidade diante dessas diferenças, ainda vistas por ele como desigualdades. No seu entendimento, os europeus conquistaram o mundo por sua superioridade cultural. Ele mostra que, no estágio paleolítico, não existiam grandes diferenças entre africanos, euroasiáticos, americanos e oceânidas. Todos viviam da coleta, da pesca e da caça. Mas já nesse primeiro estágio da história da humanidade, havia uma diferença notável: a Oceania e as Américas, por ficarem livres dos humanos por milênios, desenvolveram grande abundância em termos de organismos vegetais e animais. África e Eurásia já eram percorridas por humanos há milênios. Os seres vivos coletados, pescados e caçados pelos grupos se esgotaram com tanta exploração. A escassez deve explicar o modo nômade dos grupos paleolíticos. Assim, o nomadismo passou a ser um traço para distinguir os grupos paleolíticos. Quando ocorreram mudanças climáticas naturais a partir de 12 mil anos antes do presente, alguns grupos andarilhos domesticaram plantas e animais e inventaram a agricultura e o pastoreio. Esses grupos puderam se sedentarizar e desenvolver tecnologias que permitiram dominar melhor a natureza e outros grupos humanos. Pôde-se, assim, avançar para sociedades urbanas, que os estudiosos denominariam de civilizações. O modelo clássico é o da civilização mesopotâmica. No sul da Mesopotâmia, em torno de 3.200 a. C., grupos humanos criaram a cidade. Com ela, a vida se tornou complexa. Além da divisão sexual e técnica do trabalho, desenvolveram-se as divisões territorial e social do trabalho. Agricultura e pecuária tornaram-se atividades rurais. Artesanato, comércio, religião e política fixaram-se nas cidades. Mais espécies vegetais e animais foram domesticados. Os metais foram usados não apenas para a fabricação de adornos e utensílios, mas principalmente para armas que permitissem defender as cidades dos ataques de povos paleolíticos e neolíticos em busca de comida como também a atacar outros povos para conquistá-los. Assim, parece que a superioridade eurasiática deveu-se mais à escassez que à abundância. O esgotamento de recursos no paleolítico e no neolítico levou os povos euroasiáticos a responderem com cidades, sistemas de escrita de fácil manuseio e armas, pelo menos. Na Europa, a situação revelou-se mais grave: os habitantes estavam cercados por áreas geladas ao norte, pelo mar a oeste e pelos muçulmanos e eslavos a leste. Ao sul, o grande deserto do Saara. E as Américas e a Oceania? Primeiro, o grande continente único que existia há 200 milhões de anos partiu-se em dois no sentido norte-sul: Laurásia e Gondwana. Depois, cada um deles se partiu em mais dois no sentido leste-oeste, dando origem à Eurásia e à América do Norte, à África e à América do Sul. A África ligou-se à Eurásia por um istmo, assim com América do Norte à do Sul. O espaço entre África e Américas foi invadido pelo mar. Nasceu assim o oceano Atlântico. No meio dele, ergueu-se uma cadeia montanhosa que se denominou dorsal atlântica. Os picos culminantes dessa cordilheira são as ilhas Jan Mayen, Islândia, Açores, Ascensão, Tristão da Cunha. Mas há também ilhas mais próximas da costa Africana, como os arquipélagos da Madeira, das Canárias e Cabo Verde. Elas ficam nas latitudes do deserto do Saara, mas contam com condições climáticas que favorecem o desenvolvimento de vegetação pujante. As ilhas que hoje forma a Oceania são como ovelhas desgarradas da Eurásia. Tanto elas como as Américas ficaram livres da presença humana por milênios. Assim, floras e faunas pujantes cresceram nelas. O humano entrou na Oceania há cerca de 40 mil anos e nas Américas entre 50 e 12 mil anos. Nos dois continentes, encontraram muita comida. Na Austrália, a fartura de plantas e carne inibiu os migrantes asiáticos, que não passaram do nível paleolítico especializado. Nas Américas, os grupos humanos alcançaram todos os níveis culturais: paleolítico, neolítico e civilização. Mas o historiadora Alfred Crosby entendeu que todos esses estágios na Oceania e na América não alcançaram o nível dos euroasiáticos. Ele levanta uma explicação: os povos oceânidas e americanos viam os animais como seres habitados por espíritos que era necessário respeitar. Os povos euroasiáticos viam os animais como caça mesmo. Essa questão nos remete ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, segundo o qual a base cultural da Eurásia é o pastoreio, enquanto que a da América é a caça (“A inconstância da alma selvagem”. São Paulo: Cosac & Naify, 2002) Na Eurásia, a figura do pastor era muito respeitada, enquanto na América o respeito era dispensado ao caçador. A concepção de mundo dos povos eurasiáticos era culturalista. O mundo se dividia em natureza e cultura, sendo que esta suplantava a natureza. Nas Américas, vigorava uma postura perspectivista, segundo a qual existia uma só cultura, mas muitas naturezas segundo a perspectiva anatômica de cada espécie animal. Mas, citando François Bordes, Crosby apresenta a resposta sem perceber: Austrália e América eram dois novos paraísos invadidos por humanos. A Terra deixou de ser virgem. Agora, talvez, só algum possível planeta desabitado com natureza semelhante à terráquea se igualasse à América. E se isso acontecer ainda não estamos preparados para lidar com a natureza sem a destruí-la. As duas concepções de mundo – culturalista e perspectivista – vão se encontrar no sáculo XV com a expansão de uma Europa estrangulada pelos muçulmanos, eslavos e escandinavos. Estes últimos chegaram à América no início do século XI, atravessando a cadeia de montanhas do fundo do Atlântico com suas embarcações. Eles eram guerreiros e queriam fundar colônias. Chegaram a criar algumas na Groenlândia e na costa norte da América, mas fracassaram na sua empresa no século XV, quando os europeus latinos alcançavam a América com Cristóvão Colombo, em 1492. Conquanto os escandinavos fossem guerreiros, eles ainda não contavam com armas de fogo. Os povos pioneiros da América tinham armas tão eficientes quanto a dos escandinavos e os enfrentaram de igual para igual. A saída do Mediterrâneo para o Atlântico já havia sido empreendida pelos egípcios, fenícios, gregos e romanos. Heródoto escreveu com desconfiança que o faraó Necau II (660 a.C.- 593 a.C.) patrocinou uma expedição fenícia para circundar a África, partindo do mar Vermelho, contornando o cabo da Boa Esperança (que ainda não tinha esse nome), navegando a costa ocidental da África e alcançando o delta do Nilo pelo mar Mediterrâneo. Uma expedição fenícia saída de Cartago, no século XXX, sob comando de Hanon, teria saído do Mediterrâneo e costeado a África ocidental por considerável extensão. É o que nos conta o “Périplo de Hanon” (Périplo de Hanão com estudo introdutório, tradução do grego e notas de Victor Jabuille. Lisboa: Editorial Inquérito, 1994). A cartografia grega mostra que o mundo atlântico já era bem conhecido, embora nele, claro, ainda não figurassem as Américas. Uma obra poética do latino Avieno, que viveu no século IV a.C., narra a viagem, provavelmente empreendida pelo cartaginês Himilcan no século V a. C. (Orla marítima. Introdução, tradução do latim e notas de José Ribeiro Ferreira. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1985). É quase certo que fenícios e romanos tenham atingido os arquipélagos das Canárias e da Madeira. Quem sai do mar Mediterrâneo pelo estreito de Gibraltar, encontra várias ilhas de origem vulcânica entre a costa atual do Marrocos e do Senegal. Mais distantes, situam-se ilhas que constituem picos da cadeia montanhosa que atravessa todo o oceano Atlântico de sul a norte. Fenícios, gregos e latinos já conheciam ilhas próximas ao litoral. Ponderadamente, Manuel Rufino Teixeira defende a tese de que não se pode identificar um descobridor para essas ilhas (“Um olhar pelos primórdios da Capitania de Machico e das suas gentes”. Machico: Câmara Municipal, 2004). Mas elas só se tornaram importantes com a expansão marítima da civilização europeia ocidental, a partir do século XV da era cristã. Desde a antiguidade, todas elas eram conhecidas como Ilhas Afortunadas (Macaronésia). A Espanha apoderou-se de um conjunto delas, dando-lhes o nome de Canárias. Portugal apossou-se dos outros três conjuntos, dando-lhes o nome de arquipélago da Madeira, de Cabo Verde e dos Açores. Oficialmente, a expansão marítima portuguesa começa com a conquista de Ceuta aos muçulmanos no norte da África em 1415. Em 1418, João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira alcançam a ilha de Porto Santo, integrante do arquipélago da Madeira. Em 1419, os dois navegadores acompanhados de Bartolomeu Perestrelo chegam à ilha da Madeira. Logo os três pilotos perceberam as diferenças entre Porto Santo e Madeira. Enquanto a primeira é pequena e tende à aridez, a segunda conta com comprimento máximo (oeste-este) de 53,90 km e uma largura máxima (norte-sul) de 23 km. De perfil, ela tem o formato de um trapézio abaulado com elevações no centro. Seu ponto culminante é o Pico Ruivo, com 1862 metros, logo seguido pelo Pico das Torres, com 1853 metros. Dentro da base dela, existe uma enorme cisterna de água potável. Nas altitudes, existem nascentes que formam pequenos cursos d’água que recebem o nome de ribeiras. A declividade deles é muito acentuada, favorecendo enxurradas em tempos de chuva e acentuadas estiagens em período de seca. As principais ribeiras são a da Janela, com 21.987 metros de extensão e com nascente a 1.564 m), Seixal (10.472 m/1.569 a.), São Vicente (10.291 m/1.640 a.), Porco (10.245 m/1.485 a.), São Jorge (10.409 m/1.399 a.), Faial(14.526 m/1.493 a.), Machico (12.384 m/1.035 a.), João Gomes (6 km), Santa Luzia (11,5 km/1.650 a), São João (12 km), Socorridos (16.766 m/1.633 a), Brava (13.643 m/1.540 a), Ponta do Sol (11.842 m/1.566 a), São Bartolomeu (6.775 m/1.201 a), Porto Novo (12.913 m/1.379 a), São Boaventura (10.626 m/1.350 a), Santa Cruz (10.329 m/1.273 a.), Tábua (7.604 m./1.505 a.), Madalena (6.545 m./1.396 a.). As mais conhecidas são as de João Gomes, Santa Luzia e São João por terem sido envolvidas pela vila/cidade de Funchal, a mais importante da ilha. O que controlava o regime hídrico das nascentes e da vasão da ribeiras eram as densas florestas que cobriam a ilha. Daí ser batizada de ilha da Madeira. A família vegetal predominante era a laurácea. Por isso o nome de floresta laurissilva. Logo, foram percebidas a importância estratégica do arquipélago e suas potencialidades econômicas. Essas ilhas, sobretudo a da Madeira, abria caminho para as Índias orientais. A colonização delas se iniciou por iniciativa de D. João I ou do Infante D. Henrique em torno de 1425. A Coroa portuguesa adotou o sistema de capitanias hereditárias a partir de 1440. Tristão Vaz Teixeira foi investido como donatário da Capitania de Machico (ilha da Madeira). Em 1446, Bartolomeu Perestrelo tomou posse como donatário do Porto Santo. Finalmente em 1450, João Gonçalves Zarco recebeu a donataria de Funchal, também na ilha da Madeira. Houve experiências com o plantio de trigo, mas logo a cana-de-açúcar, originária da Índia e cultivada na ilha da Sicília, Itália, foi transplantada com sucesso para a Madeira. Tanto a Madeira quanto Porto Santo e as Canárias foram palco de experiências desastrosas que se repetiriam muitas vezes no mundo globalizado pelo ocidente. Ainda hoje, elas ocorrem cada vez com maior intensidade. Em Porto Santo, Bartolomeu Perestrelo soltou uma coelha grávida, cujos filhotes cresceram e proliferaram comendo toda espécie de vegetal e tornando a ilha inabitável por humanos. O cronista Jerónimo Dias Leite, cônego da Sé de Funchal, escreveu em “Descobrimento da Ilha da Madeira”, datado de 1579: “Saídos todos em terra pareceo bem a Bartolameu Palestrello ha desposição della por ser fresca de bõs ares, sadia, e começou ha pouoala, e tirou em terra ha gente que quis ficar, e animaes, galinhas e coelhos, hos quaes multiplicarão depois nesta ilha do Porto Sancto de maneira em quantidade, que foi ha maior praga, que houue na terra, porque não deixauão criar herua uerde na ilha, que ha não comessem, e com paaos, e has maos hos matauão, sem hos poderem desinçar. E inda hoje em dia haa tantos principalmente num grande Ilhéo que apegado com ha ilha estaa, que dos muitos que se nelle crião tem ho nome dos coelhos, e que he ho melhor refresco da terra, donde uai muita gente folgar, e dia se faz que se matão dozentos sem hos acabarem de destroir.” (Introdução e notas de João Franco Machado. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1947. Manteve-se a grafia original). A segunda prática desastrosa, exportada principalmente para o Brasil, foram as queimadas. Na Madeira, uma queimada chegou a durar sete anos, como relata ainda Jerónimo Dias Leite, na obra citada: “Daqui acordou ho Capitão, que não se podia com ho trabalho dos homes desfazer tanto arvoredo que estava des ho começo do mundo nesta ilha, e pera ho consumir para se laurarem has terras, e aproueitar-se delas era necessario poerlhe ho fogo. E como quer que com ho muito arvoredo pella muita antiguidade, estaua dele derribado pelo chão, e outro seco em pee, apagou ho fogo de maneira neste valle do Funchal que era tam brauo, que quando uentaua de sobre terra, não se podia sofrer ha chama, e quentura dele, e muitas ueses se acolhia ha gente ahos ilheos, e ahos nauios ate ho tempo se mudar, e por se ho valle mui espesso, assi do muito funcho, como de arvoredo, ateouse de maneira ho fogo que andou sete anos apegado pelas aruores, e troncos, e raizes debaixo do chão, que senão podia apagar, e fez grande destruição na Madeira, assi no Funchal como em ho mais da ilha ao longo do mar na costa da banda do Sul donde determinou rosar e aproueitar.” (grafia da época). A terceira prática desastrosa ocorreu no arquipélago das Canárias. Todos os povos europeus a praticaram sem piedade ou com o entendimento da época. Foi o massacre dos povos nativos, considerados atrasados e bárbaros. Agora, devolvemos a palavra ao historiador Alfred W. Crosby: “Os guanchos merecem mais atenção do que têm recebido. Com a possível exceção dos aruaques das Antilhas, eles foram o primeiro dos povos levados à extinção pelo imperialismo moderno. Seus ancestrais tinham chegado às Canárias, procedentes do continente africano, ao longo de um período de muitos séculos, iniciado a partir do segundo milênio antes da era cristã. O rude processo da conquista europeia começou em 1402, data que podemos adotar como a do nascimento do moderno imperialismo europeu.” (Imperialismo ecológico – a expansão biológica da Europa: 900-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 1993). Mesmo inferiores aos europeus em armas e desunidos, os guanchos resistiram até o final do século XV. Não apenas as armas os massacraram, mas também as doenças dos europeus, que eles desconheciam. A grande arma para a conquista das ilhas afortunadas (os arquipélagos do Atlântico central) foi a agropecuária. As ilhas já eram conhecidas desde o século XIII mas não colonizadas. Os portugueses encontraram as ilhas do arquipélago da Madeira e dos Açores despovoadas. Nem animais perigosos viviam nelas. Os guanchos representaram a maior resistência para os espanhóis. Eles já estavam no nível do neolítico euroasiático, mas a fartura das ilhas os levaram a abandonar práticas neolíticas, como a agricultura, o pastoreio e o emprego de metais, se é que chegaram a conhecer esses últimos. Todo ser humano é capaz de dar resposta semelhante ao mesmo desafio. A natureza luxuriante das ilhas Canárias era também um desafio ao contrário. Ela não exigia o desenvolvimento da agricultura e do pastoreio. O isolamento era uma proteção que não exigia armas. Vencidos os guanchos pelas armas e a natureza pelo fogo e pela introdução de espécies vegetais e animais exóticas, os europeus instalaram uma economia que lhes era familiar. A cana, já cultivada nas ilhas do Mediterrâneo, foi fundamental no processo colonizador. Homens e mulheres africanos foram escravizados e postos a trabalhar. As ilhas foram doadas a título de capitania hereditária. O tripé colonial estava montado: grandes glebas de terra doadas, agricultura para exportação com um produto vegetal dominante e escravização de africanos. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes (RJ), de 27/01 a 10/02/2021

domingo, 7 de fevereiro de 2021

O CHOCALHO DA CASCAVEL - VAGINA DENTADA

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 03 de fevereiro de 2021 O chocalho da cascavel Edgar Vianna de Andrade Numa escola conservadora de uma pequena e também conservadora cidade dos Estados Unidos, uma professora de biologia ensina que, pela perspectiva evolucionista, a cascavel desenvolveu um chocalho para alertar os animais grandes a não pisarem nela. Esse guizo pode ter aparecido de forma completa como resultado de uma mutação genética que se mostrou útil ao animal e foi repassada a outras gerações. A moça loira e bonitinha ouve tudo em silêncio. Quando pequena, brincando com seu irmão também criança, ela lhe cortou a ponta do dedo de forma misteriosa. Eles cresceram. Ela sintonizou-se com o moralismo da cidade e da escola, tornando-se defensora da virgindade antes do casamento. Deve-se usar um anel preto no anular esquerdo até que ele seja substituído definitivamente por uma aliança de ouro. Em palestras para jovens, ela defende a pureza para moças e rapazes. Por outro lado, seu irmão se tornou um devasso. Mas, sentir atração, namorar e trocar uns beijinhos pode. É o que acontece quando ela conhece um rapaz. Ele se passa por moralista para enganar a moça e ter com ela relação sexual. Numa caverna às margens de um lago, ela mesma atrai o rapaz desejando apenas namorar. Ele deixa cair a máscara e tenta estuprá-la. Mas algo terrível acontece: o pênis do rapaz é decepado e ele foge para nunca mais ser visto. A moça corre apavorada e começa a buscar uma explicação para o acontecido. Os livros de educação sexual da escola traziam a foto de vaginas com uma tarja colada. A moça coloca o livro n’água e desprende a tarja para conhecer algo que ela tem no corpo mas nunca viu. No computador, ela encontra o mito bastante difundido da vagina dentada. O homem que vencer aquela outra boca será considerado um herói e conseguirá ter relações sexuais com a moça sem risco. Ela volta a caverna e encontra o pênis sendo comido por um caranguejo assim como, num filme a que a mãe assistia, um escorpião gigante captura um homem. Buscando pela primeira vez um ginecologista, ela corta quatro dedos dele quando a examinava e foge apavorada, disposta a se entregar à polícia. Mas sua mãe é internada e acaba morrendo. Seu irmão tem um desentendimento com o pai e lança seu cão bravio sobre ele. O pai acaba com um grave ferimento no pescoço. A moça busca o conselho de um amigo que lhe dá uma droga e esconde suas roupas. Meio grogue, ela aceita bebida do rapaz e acaba na cama com ele, acreditando em suas belas palavras. Nada acontece quando ela se sente amada, mas quando ela descobre que o rapaz apostou com outro que conseguiria seduzi-la, a boca de cima diz o que fará a boca de baixo. Mais um pênis decepado. Falta apenas o irmão, que também acaba perdendo o seu. Numa passagem hilária, seu cão come o que foi cortado. Fugindo de tudo numa bicicleta, aparece um defeito e ela é obrigada a pedir carona. Um homem idoso para o carro. A idade é garantia de que nada ocorrerá, mas ele quer sexo oral com ela. Presa dentro do carro, ela não oferece resistência e esboça um sorriso maligno. O velho terá sua língua decepada. Dawn O'Keefe, a moça loira, é como a cascavel. A mutação criou nela uma vagina diferente. Algo novo que não precisa ser aperfeiçoado aos poucos. Não pisem nela. É perigoso para cobras invasoras. Em síntese, esse é o enredo de “A vagina dentada” (“Teeth”), dirigido Mitchell Lichtenstein e lançado em 2007. Por nenhum critério, ele pode ser considerado um filme B ou trash, embora realizado com baixo orçamento. Jess Weixler, atriz protagonista, cresce como artista à medida em que descobre seu mistério. No princípio sentindo-se culpada pela reação involuntária do seu corpo, ela passa a usar sua cartilagem afiada para castigar os homens que só desejam sexo. Já existe, inclusive, o Rapex, um preservativo feminino antiviolação que agride o pênis indesejado. O filme pode muito bem merecer continuação. Ele e a atriz foram premiados. Eu não teria restrições em exibi-lo num cineclube.

MISS MOSCA

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 27 de janeiro de 2021 Miss mosca Edgar Vianna de Andrade Insetos são inimigos perfeitos no cinema. Constituindo o grupo mais inteligente entre os artrópodes, eles tanto podem usar sua inteligência natural contra humanos, tal qual no filme “O ataque das formigas” (2008), como podem emergir do passado geológico, a exemplo do que acontece em “O ataque dos insetos” (2003). Mas eles podem se tornar uma ameaça por conta de desequilíbrios ecológicos ou de experiências científicas. Os cinco filmes sobre a mosca mutante versam sobre experiências científicas. Em “A mosca da cabeça branca” (1958), uma experiência de desintegração da matéria (viva ou não) para teletransporte com reintegração quase instantânea leva o cientista acompanhado de uma imperceptível mosca na cabine a se reintegrar com a cabeça e uma pata trocadas. Ele sai com a cabeça de mosca e esta sai com a cabeça do cientista. Ambos acabam mortos. Lembrei do breve romance “As cabeças trocadas”, de Thomas Mann. Aqui, quem promove a troca das cabeças é a deusa Kali. No segundo filme – “O monstro de mil olhos” –, de 1959, o filho do cientista do filme anterior retoma as experiências do pai. Agora, aos perigos da ciência, misturam-se o roubo industrial e o assassinato. O homem-mosca tem uma enorme cabeça, um braço e mão, uma perna e pé de inseto, enquanto que a mosca tem apenas uma cabeça humana. No final, o tio do jovem cientista consegue reverter a mutação e tudo acaba bem para o homem e para a mosca. Tudo indica que ele ficará com a filha da criada (que, como toda boa mocinha da época, é bonitinha, tem cintura fina, usa saia plissada e emite gritos agudos). Os maus também são castigados pelo homem-mosca, que, sem piedade, mata dois vigaristas e criminosos. Em “A maldição da mosca” (1965), não há mosca. O jovem cientista do segundo filme tem agora dois filhos e mutilou sua esposa numa experiência de teletransporte. Legalmente casado, ele se torna bígamo. Tudo acaba mal com ele e com os filhos. Como dizia seu tio nos dois filmes anteriores, não se deve passar dos limites estabelecidos por Deus. A proibição foi feita diretamente por Deus a Adão e Eva, mas o casal a desrespeitou. O resultado nós conhecemos muito bem. O quarto filme foi dirigido pelo genial David Cronenberg, em 1986, com o título lacônico de “A mosca”. Não se trata mais de um alerta quanto aos perigos de ultrapassar limites com experiências científicas, mas de homenagear “A mosca da cabeça branca”, o primeiro da sequência. Não se trata também de uma refilmagem, mas de uma recriação. O roteiro é semelhante ao primeiro, mas no centro não está mais um casal feliz no casamento e sim um cientista, uma jornalista e um jornalista. Triângulo amoroso que acaba em gravidez, gancho para continuação. O cientista acaba virando mosca, mas não se sabe de mosca virando homem. “A mosca II”, dirigido por Chris Walas e lançado em 1989, é um filme por demais protocolar. O filho do cientista-mosca, como no segundo filme, transforma-se num exemplar do inseto, agora de forma completa. Mas retorna à condição humana no fim. Há vários problemas no filme que não foram resolvidos. Em todos os cinco filmes, onde está a mosca a merecer o título de “miss”? No primeiro, o homem-mosca tem apenas a cabeça e um braço do inseto. Ela parece mais uma fantasia de carnaval. Sem contar com o gênio de Ray Harryhausen, foi o que se pôde fazer. A mosca de “O monstro de mil olhos” não difere muito da primeira. Ela tem um cabeção, um braço e uma perna de mosca, mas não tem o charme da primeira. Como já visto, no terceiro filme, só aparece a foto de uma mosca. No filme de Cronenberg, os efeitos especiais já haviam avançado bastante em relação à década de 1950. Aqui, eles ficam por conta de Chris Walas, que, se não foi bom diretor, foi excelente criador de monstros. A mosca de Cronenberg é uma das mais repugnantes criaturas do cinema. É pegajosa e horripilante. Sua gosma ácida dissolveu a mão e separou o pé da perna do jornalista rival. Por fim, era de se esperar que Walas produzisse uma mosca mais assustadora para a continuação que dirigiu. Não aconteceu isso. Assim, a mosca de Cronenberg fica com o título de miss mosca, título ainda não tirado dela.

A SAGA DA MOSCA

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 20 de janeiro de 2020 A saga da mosca Edgar Vianna de Andrade Lembro de ter sido um impacto forte para mim assistir, aos 12 anos, a um filme proibido (não apenas impróprio) para menores de 18 anos. Tratava-se de “A mosca da cabeça branca”, de 1958. Ele foi exibido no Clube da Vila Militar, no Rio de Janeiro, do qual meu pai era sócio. Lembro de ter ficado muito impressionado com as cenas inicial e final. O filme principia com a esposa esmagando a cabeça e o braço do marido numa prensa industrial e termina com um inspetor de polícia matando uma mosca com cabeça humana prestes a ser atacada por uma aranha. O miolo do filme mostra um casal feliz com um filho pequeno. Ele é um cientista empenhado numa experiência revolucionária: desintegrar corpos físicos e biológicos num lugar para reintegrá-los noutro. Se desse certo, a experiência representaria um fantástico avanço em termos de meio de transporte. Ela é uma típica esposa dos anos 1950: bela, fiel, dedicada ao lar, amorosa. Acompanha as pesquisas do marido de longe e cuida bem do filho. Alerta quanto aos perigos da pesquisa, embora não a compreenda bem. Certo dia, o marido a leva ao laboratório para que ela assista a uma experiência. Ele vai teletransportar um objeto de uma cabine para outra. Foi um sucesso. Mas não tanto com um gato, que se desintegra e não se reintegra. Seus miados são ouvidos no espaço. Por fim, o marido se torna cobaia de si mesmo. Ao se teletransportar, uma mosca entra na cabine sem ser vista. Ao se reintegrar, ele sai com a cabeça e uma pata da mosca e esta sai com sua cabeça. Ele revela o resultado à esposa e lhe pede que procure a mosca rapidamente para efetuar a troca a fim de ter sua humanidade recuperada. Os gritos da mulher ao ver o marido transformado são típicos da época. As artistas deveriam saber gritar. Tanto ela quanto o filho passaram perto da mosca da cabeça branca, mas a perderam. Não resta à esposa senão atender à súplica do marido: matá-lo antes que ele se torne uma ameaça às pessoas. Nem seu cunhado (Vincent Price) nem o inspetor acreditam em história tão absurda. Ela será condenada à morte possivelmente. Mas a verdade aparece no momento final, com a localização da mosca pedindo socorro ao cair numa teia de aranha e ser morta pelo investigador. Se a esposa assassinou o marido-mosca, o delegado assassinou uma mosca-humana. Ambos são assassinos. O fim do filme é rápido, como acontecia nos filmes daquele tempo. “A mosca da cabeça branca” tem direção de Kurt Neumann e é estrelado por Vincent Price (François Delambre), David Hedison (André Delambre) e Patricia Owens (Hélène Delambre). Na época, foi um filme de bastante sucesso. Hoje, exemplifica bem um filme B, embora não saibamos caracterizar esta classificação. O êxito de bilheteria foi estrondoso e motivou continuação típica de uma franquia atual. O segundo filme da trilogia – O monstro de mil olhos (Return of the fly) – foi lançado em 1959. Dirigido por Edward Bernds, o centro das atenções agora é o filho de André Delambre, Philippe Delambre (Brett Halsey). Vincent Price é o único do primeiro elenco e permanecer no segundo filme, que apelou bastante para os resultados das experiência de teletransporte, pois elas representaram o sucesso do primeiro filme. Se a primeira película foi filmada em cores, a segunda foi em preto-e-branco. O terceiro filme da saga é “A maldição da mosca”, dirigido por Don Sharp e lançado em 1965. Agora, não apenas o filho de André Delambre, como também os dos netos, continuam tentando criar um meio de transporte rápido e seguro para a humanidade. O filme começa com uma cena antológica: uma vidraça se espatifa em mil pedaços e os cacos se espalham em câmara lenta. Da janela, sai uma mulher em trajes íntimos que foge também em câmara lenta. Ela será encontrada seminua por um dos netos de Delambre e rapidamente se casará com ele. Aos poucos, a mulher evadida de um clínica para tratamento de doentes mentais descobre as experiências de seu marido e sogro e seus resultados. Entre a Inglaterra e o Canadá, pessoas são transportadas e sofrem mutilações. Da trilogia, este é o filme mais pálido, destoando dos dois primeiros. Na década de 1980, David Cronenberg, com sua originalidade, refilmará o primeiro da trilogia, criando a mais asquerosa das criaturas do cinema. Ele terá continuação logo depois. Mas aí já é outra história.

TEMPO, TEMPO, TEMPO, TEMPO

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 16 de janeiro de 2021 Tempo, tempo, tempo, tempo Arthur Soffiati Não se trata de refletir sobre o tempo da canção de Caetano Veloso, mas de imaginar um tempo em que não existia o tempo. Os cientistas identificam quatro forças no Universo, ainda mesmo quando ele não existia. Ou seja, se é possível conceber um espaço vazio, sem nenhuma matéria, essas forças já existiam. Uma delas é a força de gravidade, que atuará sobre a matéria a povoar o espaço depois da Grande Explosão (Big-Bang). A força eletromagnética exerce atração ou repulsão entre corpos, como acontece com a agulha da bússola. Ainda não existia matéria no Universo, muito menos bússola, e a força magnética já estava esperando para atuar. A força nuclear fraca desenvolve-se entre léptons e hadrons. Não tenho a mínima ideia do que seja, assim como nada tenho a dizer sobre a força nuclear forte, que mantém a coesão e a união entre os quarks. As quatro forças já existiam quando o Universo começou a se formar, há cerca de 14 bilhões de anos. Elas é que irão orientar a expansão do Universo, a formação das galáxias, dos sistemas planetários, dos corpos celestes e dos buracos negros. Na origem, existia um ponto com forte energia que, adquirindo atividade cada vez mais intensa, acaba gerando uma grande explosão que origina o Universo. Nasce, então, o tempo. Como assim, o tempo não é eterno? perguntarão alguns. No espaço primordial, com forças básicas presentes, mas não em movimento, não se pode marcar o tempo, pois este só existe com movimento e transformação. A grande explosão é o ponto zero. Assim que ela ocorre, pode-se definir o momento em que o tempo passa a existir. A energia-matéria lançada no espaço se transforma em corpos físicos e em corpos vivos. O movimento dos astros em torno de si mesmos ou de outros permitirá que tenhamos pontos de referência para contar o tempo. As diversas culturas basearam-se em algum movimento celeste para marcar o tempo. A concepção do ocidente, hoje universalizada, usa a rotação da Terra em torno do seu eixo e dela em torno do Sol. A primeira rotação serviu para criar-se a noção de dia. A segunda permitiu marcar o ano. Esses tempos são divididos em frações menores. Por outro lado, os seres vivos nascem, crescem e morrem. Combinando esse processo de transformação com o processo de movimento, podemos dizer que cada organismo tem tempos próprios de vida. O tempo médio de vida de um humano oscila entre 70 e 80 anos atualmente. A expectativa já foi bem menor. Pode se tornar maior. Um tubarão-da-Groenlândia pode atingir 400 translações da Terra em torno do Sol. Uma tartaruga-gigante-de-Galápagos chega a 175. Uma baleia-azul a 110. Os historiadores consideram sem pensar muito que o tempo é propriedade da ciência História, a única entre as ciências – naturais ou não – a considerar o tempo. Trata-se uma concepção vã. O tempo começou com a Grande Explosão e permite à Cosmologia estudar a história do Universo. O ponto zero, ou seja, o Big-Bang, é início do Universo ou o fim de um Universo anterior? Os buracos negros sugam matéria e até mesmo a luz, tal a velocidade de seu vórtice. Sugará também o tempo? A paleontologia vale-se do tempo para estudar a origem dos seres vivos e seu tempo de vida enquanto espécie. Mas uma espécie nem sempre pode viver, através de seus representantes, um tempo natural de vida, que o paleontólogo Stephen Jay Gould calculou em cerca de dez milhões de anos num de seus livros. Elas podem desaparecer por ação de uma catástrofe global, como aconteceu com os grandes dinossauros. A história é, das ciências sociais, a que mais privilegia o tempo, mas não detém o monopólio dele. As outras ciências podem se valer da dimensão temporal eventualmente. Já a história ambiental – que costumo chamar de eco-história – cria um novo objeto: o das relações das sociedades humanas com o lugar, os biomas, os ecossistemas, as espécies etc. Nesse encontro, o eco-historiador confrontará dois tempos: o tempo da natureza e o tempo dos grupos humanos. O tempo dos povos pioneiros da América não causava grandes impactos ao tempo dos lugares, biomas, ecossistemas e espécies. Já o tempo do mundo ocidental acelera-se rápido e entra em colisão com o tempo da natureza. Vejamos o tempo em que a civilização ocidental na América levou para reduzir o bioma atlântico a amostras vestigiais. Notemos o tempo em que ela extingue espécies. Observemos o tempo dispensado para substituir sistemas naturais por sistemas antrópicos. As velocidades dos tempos antrópico ocidental e dos tempos naturais dos biomas e espécies foi esboçado por Toynbee em seu último e derradeiro livro. Já Emmanuel Le Roy Ladurie ousa invadir o território de outras ciências diacrônicas ao estudar as mudanças climáticas recorrendo a documentos produzidos por humanos e pela natureza, como os anéis das árvores, o movimento das geleiras e a meteorologia. Como eco-historiador, gosto de trabalhar com os dois tempos: o da natureza e o das sociedades humanas.

REFILMAGENS

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 06 de janeiro de 2021 Refilmagens Edgar Vianna de Andrade Quando a gente pensa que um filme péssimo, ao ser refilmado, não pode ficar pior que o original, vem a surpresa. Pode. Geralmente, as refilmagens não costumam superar filmes bons, mas superam filmes ruins. Foi o que aconteceu com “O ataque das sanguessugas gigantes”, filme de 1959 refilmado em 2008. Ficou pior em roteiro, elenco e atuação. Melhorou um pouco nos efeitos especiais. Mesmo assim, ficou aquém de outros filmes ruins do seu tempo. Até mesmo a sofrível Yvette Vickers foi superada em mediocridade por outra atriz. Vickers foi insuperável nos papeis de periguetes. Já não se pode dizer o mesmo da refilmagem de “O ataque da mulher de 15 metros”, em 1993, agora com o título de “15 metros de mulher”. O novo roteiro ficou a cargo de Joseph Dougherty, várias vezes ganhador dos prêmios Emmy e Humanitas. A direção coube a Christopher Guest, que não tem nenhum título célebre a seu favor, mas é um experiente representante de Hollywood. Para o papel principal, foi convidada a controversa Daryl Hannah, que se tornou conhecida ao contracenar com o iniciante Tom Hanks, em “Splash: uma sereia em minha vida”, de 1984. Por sua atuação neste filme, Hannah ganhou o prêmio Saturno de melhor atriz. Mas ela também recebeu o prêmio Framboesa de ouro em “Wall street” e em “Alto astral” como pior atriz coadjuvante. Ao longo de sua carreira, ela foi considerada uma das cem mulheres mais sexys do cinema. A novo versão da enorme mulher ganha agora um caráter nitidamente feminista. A narrativa também se mostra mais elaborada que a do original. O começo é uma visita de turistas a um museu dedicado à heroína da cidade Nancy Archer por tudo que viveu. Ela era uma linda mulher, cordata, fiel, apaixonada pela marido, mas vista por ele e pelo pai não apenas como herdeira da grande fortuna da mãe, como também de seus desequilíbrios nervosos. Nancy se trata com uma psiquiatra. Ela sabe que é diferente e sabe que os outros a consideram diferente. Por mais que o marido tenha um caso declarado com uma manicure, Nancy acredita em suas mentiras e espera viver bem com ele. O pai explora sua fortuna se aproveitando do seu desinteresse por negócios. Certo dia, dirigindo seu carro numa estrada que corta o deserto, um disco voador lhe aparece a lança um jato sobre um brilhante que ele usa no colar. A partir de antão, Nancy fica mais diferente ainda. Ao narrar o fato, sua reputação de pessoa desequilibrada aumenta. Mas ela convence o marido a examinar o local em que a nave lhe apareceu. Era tudo verdade. Nancy, porém, é abduzida pela nave e, ao voltar, seu corpo estava gigantesco. O marido vê nessa estatura descomunal uma oportunidade de lhe causar um ataque cardíaco que a levasse à morte, pois seu coração precisava sustentar um corpo de dimensões de uma girafa. Mas Nancy muda também por dentro. Ela propõe ao marido um relacionamento avançado. Ele recusa. Nancy procura por ele com sua amante e estimula esta a se emancipar do marido e dos homens. Desobedece ao pai. Deixa de ser uma mulher cordata. Perseguida por helicópteros, ela toca numa rede de alta tensão e parece morrer. Nesse momento, o disco voador retorna e a resgata. Ela vive, mas agora num mundo mais de acordo com sua postura feminista. A trajetória de Daryl Hannah no cinema é singular. Alta, esguia, loura, bela e sensual, ela trabalhou ao lado de artistas famosos e sob a batuta de diretores conceituados como Brian de Palma, Ridley Scott, Oliver Stone e Quentin Tarantino. Destacou-se em alguns papeis, mas nunca foi considerada uma atriz talentosa. Sua beleza parece ter atrapalhado atuações marcantes. No seu currículo nem sempre aparece “Quinze metros de mulher”, filme em que atua por alguma necessidade financeira ou mesmo por alguma razão menor. Não haveria motivo para rejeitar esse filme, já que ela atuou em outros piores.

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...