Arthur Soffiati
Ao
partirem para a conquista do mundo, no século XV, os europeus sabiam da
existência de sociedades com cultura aprimorada na Índia, no Oriente Médio e
norte da África, na China e no Japão. A África era um continente a ter seus bens
e habitantes pilhados. Sabia-se apenas que o Egito fora o berço de uma
civilização e que a população da Etiópia era cristã, embora não seguisse o
papa.
Só
bem recentemente, pesquisas arqueológicas começaram a revelar pujantes
civilizações no território africano. Na América, pareceu impossível o
desenvolvimento das civilizações mexicana e andina pelos povos americanos,
considerados bárbaros. Os maias já haviam encerrado sua vida de civilização
antes da chegada dos europeus. Suas fantásticas realizações estavam cobertas
pelas florestas da América central.
Recorrendo
a Arnold Toynbee, no final da sua vida, ele reconheceu duas civilizações
independentes na América: a Andina (que comumente e equivocadamente chamamos de
Inca) com duas civilizações satélites orbitando em torno dela: uma ao sul e
outra ao norte; a Centro-Americana (que também erradamente chamamos de Asteca)
igualmente com duas civilizações satélites. E a maia.
Em
1964, com 17 anos, fiz um curso de arqueologia e me uni a um grupo de arqueólogos
amadores até 1969. Escolhi a cerâmica de Miracanguera para meu trabalho de
conclusão de curso. Estudar essa tradição cerâmica localizada nas proximidades
da cidade de Itacoatiara, no rio Amazonas, implicava em conhecer algo da
cerâmica marajoara, da cerâmica de maracá e da cerâmica de Santarém. Esta
última apresenta uma sofisticação de formas que pressupõe não apenas divisão
técnica, mas também divisão social do trabalho. Ou seja, devia haver um grupo
social dispensado do trabalho de sobrevivência para se dedicar à produção
cerâmica. Intuí que a Amazônia deveria ter abrigado uma civilização ou
civilizações, independentes ou interdependentes.
O
tempo passou e pesquisas recentes estão demonstrando que a região amazônica
abrigou povos com culturas refinadas nas terras não alagadas e não alagáveis.
Pelo menos, pouco alagáveis. Terras ao sul da Amazônia, entre as cabeceiras do
rio Tapajós e o Estado do Acre, foram colonizadas por um povo ou povos que
sabiam produzir terra preta. Eles construíam aldeias grandes e pequenas,
formando uma rede. Elas eram cercadas por fossos e provavelmente por diques nas
margens. Deviam ser também protegidas por estacas pontiagudas de pau.
Estima-se
que a Amazônia contasse com uma população de 10 milhões de habitantes. Essa
rede de aldeias podia comportar de 500 mil a um milhão de habitantes. Ou seja,
dos dez milhões de habitantes da Amazônia, a décima parte devia viver nessa
rede de aldeias ligadas por estradas e hierarquizadas. Havia locais de culto, locais
de cultivo e locais de moradia. “Tudo mantendo a floresta em pé?” Perguntam
aqueles que atribuem aos nativos a destruição do ambiente. Ainda existem
aqueles que lutam contra os defensores de uma natureza intocada, dizendo que
ela nunca existiu. Costumam ser antropólogos, sociólogos e historiadores. O que
vem a ser uma natureza intocada? Se remontarmos ao Mesozoico, podemos dizer que
a natureza era intocada porque os grandes animais, como os dinossauros, são
também natureza? No Paleozoico, a primeira era de organismos pluricelulares, os
trilobites alteraram a natureza? Não, diriam os cientistas sociais, porque só o
homem transforma a natureza.
Cerâmica Santarém
Primeiramente,
o ser humano e as culturas que ele produz têm uma origem natural. Assim,
poderíamos dizer que as transformações produzidas pelas culturas humanas não
são transformações porque naturais. Não cometerei este erro. As formigas mantêm
um padrão de transformação da natureza que não a compromete. Os seres humanos,
sim, podem desequilibrá-la. Conhecemos vários exemplos de sociedades que
ultrapassaram os limites naturais e sofreram consequências por isso. Estão aí
os habitantes da ilha de Páscoa, os povos do vale do Indo, os maias e a
civilização khmeriana.
Essa cultura ou civilização da Amazônia desmatava para construir suas aldeias e suas estradas, mas não era um desmatamento raso. É preciso conhecer os modos de produção para distinguirmos a intensidade do desmatamento ou das intervenções na natureza. Sabemos que os povos indígenas da Amazônia abriam clareiras com o fogo, mas não desmatavam como o agronegócio capitalista e como as cidades. A(s) civilização(ões) amazônica(s) que está (ão) sendo descoberta(s) pelos arqueólogos é um exemplo de como se pode viver em equilíbrio dinâmico com uma floresta tropical. Os apologistas do mundo ocidental precisam aprender a fazer esta distinção e deixar de atribuir aos ecologistas algo que eles não sustentam: que a natureza antes da globalização ocidental era intocada. Nunca esta afirmação foi feita por um ecologista sério. O que se afirma é que existem formas aceitáveis e formas incorretas de intervenção.