Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 15 de março de 2025
Arthur Soffiati
Entre 1997 e 2001, vivi em vários
arquivos públicos e no campo para colher subsídios que permitissem redigir
minha tese de doutorado. Escrevo a palavra sem vaidade e orgulho. Está no meu
currículo como minha primeira publicação, em 1974. O tema escolhido para a tese
foi a relação das sociedades humanas em seus diversos níveis com os manguezais
do trecho costeiro que se estende do rio Itapemirim, no Espírito Santo e ao rio
Macaé, no Rio de Janeiro. Pensei no processo erosivo que assola o noroeste
fluminense, mas minha orientadora entendeu que o tema poderia não ser bem
aceito por historiadores limitados a seres humanos. Trocar erosão por manguezal
trouxe o mesmo resultado.
Examinando o litoral existente
entre os dois rios mencionados, percebi que ele não conta com nenhuma formação
pedregosa natural. As que existem resultam de intervenções humanas. Não havia
novidade em tal descoberta. Em 1848, José Saturnino da Costa Pereira teve a
mesma percepção e a registrou em “Apontamentos
para a formação de um roteiro das costas do Brasil com algumas reflexões sobre
o interior das províncias do litoral e suas produções” (Rio
de Janeiro: Tipografia Nacional, 1848).
Se
José Saturnino se deteve em mapas da época para perceber a peculiaridade de uma
costa que estendeu até o rio Benevente, além de mapas, eu percorri toda essa
extensão costeira a pé. Evidentemente que por etapas. De rio a rio, de vila a
vila, de cidade a cidade. Ao mesmo tempo que tomava registros fotográficos,
também entrevistava pessoas que dependiam dos manguezais para viver. Pessoas
que moravam em suas adjacências. Pessoas que viviam distantes desse ecossistema
e o ignorava ou desprezava e estudiosos acadêmicos que o pesquisavam.
Nos arquivos, eu encontrava
jornais com informações sobre a destruição dessas florestas à beira-mar ou com
medidas governamentais para sua proteção, geralmente ignoradas. Levantava
também mapas antigos, documentos raros, livros esquecidos. Com a devida
seleção, as informações contribuíam para minha investigação.
Ao chegar a meu limite meridional,
no rio Macaé, entendi que cabia examinar a faixa costeira até o rio São João e
a incluí na tese. Enfrentei dificuldades com uma pesquisa de história ambiental
no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCS) da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Minha investigação ficaria melhor num curso de biologia ou de
geografia, diziam os professores. Atualmente, eu não encontraria essas dificuldades,
pois a instituição se abriu a este ramo da história.
Relendo a tese um quarto de século
depois da sua defesa, senti aquele misto de emoções que um pesquisador dedicado
sente ao examinar sua vida. Trata-se de um trabalho pioneiro que não perdeu de
todo a atualidade. Alguns outros foram elaborados posteriormente, mas sempre de
forma pontual. E, preferencialmente, na área das ciências biológicas. Não houve
muito interesse sobre o assunto da parte de cientistas sociais.
Entendi que, além de conservar
alguma atualidade, a tese transformou-se – ela mesma – num documento. Vários
trabalhos meus publicados ulteriormente não pretenderam alcançar sua
consistência em termos de pesquisa. Ela não se concentra apenas nas relações de
sociedades humanas com manguezais, senão que também faz referências à
colonização da costa por povoados, vilas e cidades. Todos cresceram nesses 25
anos. Os manguezais, por sua vez, perderam terreno.
A tese passa de 500 páginas em dois
volumes. Voltando a ela, concordo que o resultado de cinco anos de pesquisa é
meio intragável até para cientistas interessados. A parte que, porventura, pode
mais interessar aos pesquisadores das instituições acadêmicas de municípios
costeiros, como Campos, São João da Barra e Quissamã corresponde à restinga
formada pelo rio Paraíba do Sul, entre o rio Guaxindiba e o canal da Flecha.
Essa restinga forma uma meia-lua entre o rio Guaxindiba e a lagoa do Açu. A
partir de então estreita-se num cordão arenoso de 28 quilômetros resultante da
luta entre o rio Paraíba do Sul e o mar.
Em quase todos os manguezais que se formaram nessa restinga, contei com a colaboração da bióloga Norma Crud de corpo presente. Não apenas passei a atentar para os detalhes que ela me apontava, como também ela pareceu ter prazer em, mais uma vez, percorrer a extensão da restinga e além dela, como eu passei a atentar para detalhes que me passariam despercebidos. Ela não está mais entre nós, mas sua memória acompanha muitas pessoas que a conheceram pessoalmente ou a respeitam pelo legado de compromisso ético e pelo profissionalismo que se traduzia em paixão pelo conhecimento.