Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 01 de fevereiro de 2025
Povoados mediterrânicos
Arthur Soffiati
Em Faro, sul de Portugal, embarquei
num autocarro (ônibus) rumo a Beja, onde eu seguiria para Barrancos, fronteira
com a Espanha. Entraram atrás de mim, uma mãe e três filhos menores. Eram duas
meninas e um menino com idades próximas. Talvez 8, 7 e 6 anos. Ela era branca e
os filhos pardos. A presença de negros e asiáticos aumenta na Europa. Os
casamentos inter-raciais também. Devia ser o caso da mãe.
Eles ocuparam quatro poltronas no
autocarro. Uma menina dormia. Logo, o menino pediu seu telemóvel (celular). A
mãe respondeu que não era o momento de usar o aparelho e lhe ofereceu uma
banana. Ele respondeu que banana não. Queria seu telemóvel. Começou a chorar. A
mãe lhe ofereceu laranja. “Quero meu telemóvel”, insistiu ele chorando. A mãe
ameaçou lhe dar palmadas, mas se conteve. Ela estava sob os olhares de outros
passageiros. Não resistindo ao choro do menino, ela se deu por vencida e
entregou o telemóvel ao filho.
As duas meninas sentaram-se à minha frente
e começaram a olhar para mim pelo intervalo entre as duas poltronas. Olhavam,
riam e voltavam ao normal. Repetiram o gesto várias vezes. Uma delas se pôs de
joelho na poltrona, olhou para mim por cima dela e perguntou meu nome. Respondi
“Arthur”. Ela disse que tinha um primo com esse nome e puxou conversa me
tratando de “você”. A mãe lhe chamou atenção, observando que a filha devia me
chamar de “senhor” por conta da minha idade e por eu ser um rei. Agora, as duas
conversavam comigo. “Você é rei?”. A mãe atalhava: “você não. Senhor”.
Expliquei que a mãe delas não disse
que eu era rei, mas tinha nome de um rei antigo. Elas ponderaram que o primo
também se chamava Arthur e não era rei. Finalmente, sossegaram e dormiram.
A viagem prosseguia. O ônibus
entrava em tudo que era povoado para deixar ou apanhar passageiros. Chelote,
Almodôvar, Rosário, Castro Verde (com maior porte), Albernoa, Santa Clara de
Louredo... Eram pequenos lugares com casas baixas pintadas de branco, bem ao
estilo mediterrânico, ruas estreitas e tortuosas. Eu tinha a impressão de que o
ônibus (autocarro) iria trombar com alguma casa ou raspar numa. Mas o
motorista, com grande habilidade em volante, fazia malabarismos e chegava ao
ponto, geralmente uma pracinha.
Finalmente, chegamos a Beja, de onde
embarquei, no dia seguinte, para Barrancos. E novamente entramos em povoados
com o mesmo traço urbanístico dos outros. Ou seja: nenhum. As mesmas ruas
tortuosas, as mesmas casas antigas, baixas e brancas. Baleizão, Pias, Moura
(este maior que os outros). Daí até Barrancos, também um povoado no alto de um
morro, passamos por Safara. Na periferia desses povoados, até podem se erguer
grandes fábricas. Parece que elas não podem descaracterizar os núcleos urbanos.
Mais afastados, ficam as lavouras e os pastos.
De volta a Beja, segui para Évora, a
bela cidade do Alentejo. E mais povoados, sempre com nomes sonoros: Vidigueira,
Alvito, Viana do Alentejo, Aguiar. Meu desejo era passar um dia em cada lugar
daqueles. Eu via muitos idosos: homens e mulheres. Eles encurvados, barba
áspera, cabelos curtos e desalinhados. Elas de roupas escuras. O preto é muito
comum em mulheres idosas e jovens.
Particularmente, um habitante de um
desses povoados secos me chamou a atenção. Ele ainda era jovem, mas tinha a
aparência de envelhecido. Curvo, ele caminhava por uma das ruas estreitas.
Parecia afetado por alguma anomalia cerebral. Talvez não tivesse consciência de
existir. Talvez não conseguisse refletir sobre a vida. No final, morreria e
seria sepultado num cemitério católico. Nós outros, que refletimos sobre a
existência, podemos repudiar a morte, mas se trata de uma luta de antemão
perdida. Melhor mesmo não poder pensar sobre o sentido da vida.