segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

POVOADOS MEDITERRÂNICOS

 Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 01 de fevereiro de 2025

Povoados mediterrânicos

Arthur Soffiati

            Em Faro, sul de Portugal, embarquei num autocarro (ônibus) rumo a Beja, onde eu seguiria para Barrancos, fronteira com a Espanha. Entraram atrás de mim, uma mãe e três filhos menores. Eram duas meninas e um menino com idades próximas. Talvez 8, 7 e 6 anos. Ela era branca e os filhos pardos. A presença de negros e asiáticos aumenta na Europa. Os casamentos inter-raciais também. Devia ser o caso da mãe.

            Eles ocuparam quatro poltronas no autocarro. Uma menina dormia. Logo, o menino pediu seu telemóvel (celular). A mãe respondeu que não era o momento de usar o aparelho e lhe ofereceu uma banana. Ele respondeu que banana não. Queria seu telemóvel. Começou a chorar. A mãe lhe ofereceu laranja. “Quero meu telemóvel”, insistiu ele chorando. A mãe ameaçou lhe dar palmadas, mas se conteve. Ela estava sob os olhares de outros passageiros. Não resistindo ao choro do menino, ela se deu por vencida e entregou o telemóvel ao filho.

            As duas meninas sentaram-se à minha frente e começaram a olhar para mim pelo intervalo entre as duas poltronas. Olhavam, riam e voltavam ao normal. Repetiram o gesto várias vezes. Uma delas se pôs de joelho na poltrona, olhou para mim por cima dela e perguntou meu nome. Respondi “Arthur”. Ela disse que tinha um primo com esse nome e puxou conversa me tratando de “você”. A mãe lhe chamou atenção, observando que a filha devia me chamar de “senhor” por conta da minha idade e por eu ser um rei. Agora, as duas conversavam comigo. “Você é rei?”. A mãe atalhava: “você não. Senhor”.

            Expliquei que a mãe delas não disse que eu era rei, mas tinha nome de um rei antigo. Elas ponderaram que o primo também se chamava Arthur e não era rei. Finalmente, sossegaram e dormiram.

            A viagem prosseguia. O ônibus entrava em tudo que era povoado para deixar ou apanhar passageiros. Chelote, Almodôvar, Rosário, Castro Verde (com maior porte), Albernoa, Santa Clara de Louredo... Eram pequenos lugares com casas baixas pintadas de branco, bem ao estilo mediterrânico, ruas estreitas e tortuosas. Eu tinha a impressão de que o ônibus (autocarro) iria trombar com alguma casa ou raspar numa. Mas o motorista, com grande habilidade em volante, fazia malabarismos e chegava ao ponto, geralmente uma pracinha.

            Finalmente, chegamos a Beja, de onde embarquei, no dia seguinte, para Barrancos. E novamente entramos em povoados com o mesmo traço urbanístico dos outros. Ou seja: nenhum. As mesmas ruas tortuosas, as mesmas casas antigas, baixas e brancas. Baleizão, Pias, Moura (este maior que os outros). Daí até Barrancos, também um povoado no alto de um morro, passamos por Safara. Na periferia desses povoados, até podem se erguer grandes fábricas. Parece que elas não podem descaracterizar os núcleos urbanos. Mais afastados, ficam as lavouras e os pastos.

            De volta a Beja, segui para Évora, a bela cidade do Alentejo. E mais povoados, sempre com nomes sonoros: Vidigueira, Alvito, Viana do Alentejo, Aguiar. Meu desejo era passar um dia em cada lugar daqueles. Eu via muitos idosos: homens e mulheres. Eles encurvados, barba áspera, cabelos curtos e desalinhados. Elas de roupas escuras. O preto é muito comum em mulheres idosas e jovens.

            Algumas vendas e bares. Grupos de pessoas conversando, falando alto. As paradas eram rápidas para que eu entendesse o que diziam. Conversavam nos falares alentejano e algarvio? Português do povo, como no Brasil. Eram pessoas nascidas naqueles povoados. Pessoas que sempre viveram neles. Pessoas nem pobres nem ricas, a julgar pelas vestimentas. Pessoas que trabalharam no campo, no pequeno comércio, em serviços e em outras atividades. Pessoas que dever ter saído pouco dos lugares em que vivem. Pessoas que não pensavam na vida e que se conformavam com o que tinham. Pessoas que não se preocupavam com a morte e que conviviam bem com ela. Pessoas religiosas que frequentavam igrejas e acompanhavam missas. Pessoas com devoção a algum santo. Enfim, pessoas que acompanhavam enterros de vizinhos e amigos, conformando-se com a morte e com seu sepultamento nos pequenos cemitérios locais, todos eles simpáticos e acolhedores sem causar espanto em ninguém.

            Particularmente, um habitante de um desses povoados secos me chamou a atenção. Ele ainda era jovem, mas tinha a aparência de envelhecido. Curvo, ele caminhava por uma das ruas estreitas. Parecia afetado por alguma anomalia cerebral. Talvez não tivesse consciência de existir. Talvez não conseguisse refletir sobre a vida. No final, morreria e seria sepultado num cemitério católico. Nós outros, que refletimos sobre a existência, podemos repudiar a morte, mas se trata de uma luta de antemão perdida. Melhor mesmo não poder pensar sobre o sentido da vida.



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