sábado, 11 de janeiro de 2025

SERTÕES DO NORTE FLUMINENSE

 Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 11 de janeiro de 2025

Sertões do Norte Fluminense

Arthur Soffiati

            Quer por Atafona, quer por Campo Limpo, a colonização contínua das atuais regiões Norte e Noroeste Fluminense começou pela baixada da zona costeira. Os historiadores regionalistas de São João da Barra sustentam que o pescador Lourenço do Espírito Santo, em 1622, encontrou em Atafona local adequado para um assentamento pesqueiro e se transferiu para lá com esposa e companheiros de profissão. Inconsolável com a morte da mulher por afogamento no rio Paraíba do Sul, transferiu-se mais para o interior, onde hoje é a cidade de São João da Barra.

            Já o bairrismo campista tem por certo que a colonização contínua do norte fluminense começou em 1632 com as três expedições empreendidas por sete fidalgos que ficaram conhecidos como Sete Capitães. A vantagem desses historiadores é contar com o famoso documento “Roteiro dos Sete Capitães”, que se comprovou autêntico. Antes de chegarem ao litoral ainda pouco conhecido de europeus, eles já eram donos da terra na forma de sesmarias, grandes lotes de terra concedidos gratuitamente pelas autoridades portuguesas. Eles instalaram currais em Campo Limpo, no Açu e nas cercanias da atual Barra do Furado (que ainda não existia).

            A primeira tentativa de instalar um assentamento europeu-português por Pero de Gois, em 1539, não deu certo. Portanto, a colonização portuguesa contínua da região, quer por São João da Barra, quer por Campo Limpo, começou no século XVII. Como dizia Everardo Backheuser, as baixadas foram os pontos de ancoragem da cultura europeia na América. Na verdade, em todos os continentes. No norte fluminense, os europeus tomaram o rio Paraíba do Sul e seu defluente córrego do Cula como eixos de colonização e chegaram a um ponto em que se fundou Campos, vila sede da Capitania de Paraíba do Sul e depois do Distrito de Campos dos Goitacazes.

            Campos ergueu-se na parte mais interior da planície fluviomarinha do rio Paraíba do Sul, na margem direita dele, numa mesopotâmia formada pelo mesmo rio com o córrego do Cula, que descia em direção a Santo Amaro. Durante 150 anos, os habitantes de Campos se sentiram num anfiteatro natural formado por terras altas e florestas. Eram os sertões. Palavra de origem incerta, sertão significa região afastada dos centros urbanos e do litoral. Para o europeu, tinha também o sentido de área perigosa por conta do difícil acesso, dos animais agressivos e dos povos “selvagens”. Não sem razão, a área montanhosa figurava nos mapas, até o fim do século XVIII, como “sertão de índios brabos”.

            Ainda no final do século XVIII, o famoso mapa desenhado pelo militar cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis (1785) nomeia os sertões que cercavam Campos e que ele não chegou a explorar mais a fundo por dificuldades de acesso e talvez por medo. Pelo rio Paraíba do Sul, ele chegou até a foz do rio Pomba e nele não penetrou por razões não detalhadas. Toda a área acima do salto de São Fidélis foi denominada por ele de sertão do Paraíba.

            Mas, na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, ele assinalava o Sertão das Cacimbas, cobrindo a área dos tabuleiros e a parte norte da restinga da planície goitacá. O militar a examinou presencialmente até a foz do rio Itabapoana, deixando as primeiras informações sobre ela. Ainda na margem esquerda, ele assinalou o Sertão do Muriaé, que explorou até a lagoa da Onça. No próprio mapa, ele registrou não ter ido mais adiante por conta de volumosas chuvas. Não chegou a entrar na região montanhosa. 

         À esquerda do sertão do Paraíba, olhando para o mapa, ele assinalou o sertão do Imbé, área então inexplorada correspondente à Serra do Mar (localmente conhecida como Serra das Almas), coberta por densa floresta e supostamente habitada por povos nativos agressivos. Mais à esquerda, ele assinala o Sertão de Macabu, que explorou posteriormente, deixando um texto de suma importância para os pesquisadores. Os manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis aguardam publicação pela importância de que se revestem. Antes, deverão passar por atualização de um paleógrafo.

            Mais adiante ainda, situava-se, no século XVIII, o Sertão de Macaé. Entre os rios Ururaí (correndo ainda não planície) e Macabu (com leito na zona serrana), existe uma área pouco conhecida ainda hoje. Na “Carta Corográfica” organizada pelos conceituados cartógrafos Pedro D’Alcantara Bellegarde e Conrado Jacob de Niemeyer por determinação do decreto de 30 de outubro de 1857 emitido pela Assembleia Provincial do Rio de Janeiro, essa área vem assinalada com o nome de Sertão de Quimbira. Palavra de origem africana, ela está associada a cemitério. O Sertão de Quimbira figurará em mapas posteriores até desparecer. Parece oportuno ressuscitar o sertão, examinando suas bases geológicas, a rede hídrica, a vegetação original, os povos nativos que o habitavam, a colonização em moldes europeus e o processo de urbanização.

Mapa de Manoel Martins do Couto Reis - 1785

Carta Corográfica - Pedro D’Alcantara Bellegarde e Conrado Jacob de Niemeyer - 1858/1861




sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

CRÍTICAS DE CINEMA DE EDGAR VIANNA DE ANDRADE EM 2024

 

            Comecei a publicar crítica de cinema na Folha da Manhã em 2005. Antes, eu escrevia eventualmente. A partir de 2005, meu compromisso com a crítica foi semanal. Não foi uma colaboração contínua. Houve algumas interrupções. Hoje, os textos figuram quinzenalmente. Em 2024, publiquei ao todo 26 críticas. Deixei de acompanhar os filmes lançados nos cinemas porque eles não têm me estimulado. Fiz uma espécie de divisão de trabalho: Filipe Fernandes, com quem me revezo na crítica, fica com o cinema e eu fico mais livre para comentar filmes em cartaz ou não. Reuni tudo o que escrevi sobre cinema em 2024 para alguém que tenha possível interesse em ler algum texto.

Arthur Soffiati, que se assina Edgar Vianna de Andrade

 

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 03 de janeiro de 2024

Napoleão

Edgar Vianna de Andrade

            Aluysio Abreu Barbosa, Felipe Fernandes e Edmundo Siqueira já comentaram “Napoleão”, mais recente filme de Ridley Scott, apontando seus acertos e desacertos. Concordo com eles. Não querendo repeti-los, noto que o grande e polêmico general francês exige tanto do cinema quanto um jogo de futebol, que os diretores costumam evitar pelas dificuldades de filmar. Uma biografia cinematográfica de Napoleão é um “tour de force” para quem faz o seu papel e para um diretor. Por isso, talvez, aspectos da vida de Napoleão figurem em seus filmes, mas não a sua biografia.

            Comentarei uma tentativa anterior de biografar Napoleão na telona. Trata-se de “Napoleão”, dirigido pelo francês Abel Gance em 1927. Ele foi lançado no ano em que o cinema começou a ganhar voz com “O cantor de jazz”, dirigido por Alan Crosland. Gance já era um renomado diretor. Em 1911, estreou com “O dique” e demonstrou ser um grande cineasta com “Eu acuso”, de 1919, e com “A roda”, de 1923.

            “Napoleão” tem quase quatro horas de duração divididas em duas partes. Produzir um filme tão longo em celuloide era caro na época. Uma lata de filme continha cerca de 13 minutos. Se levarmos em conta as perdas e a edição, mais de 20 latas foram usadas no filme. Gance era um inventor, e a arte cinematográfica lhe deve muito. Ele era um admirador da Revolução Francesa, no geral, e de Napoleão, em particular.

O filme começa com Napoleão ainda criança na escola já demonstrando seu sangue frio e sua liderança numa batalha de bolas de neve. Sua identificação com a águia. Sua altivez diante de professores e padres. É uma parte longa do filme seguida por outra parte longa, mostrando Napoleão retornando à Córsega. De volta, ele comanda o cerco de Toulon com frieza e inteligência. A primeira parte se encerra nesse ponto.

            A segunda parte mostra a Revolução Francesa e suas importantes personagens. Gance se inspira no quadro de David para representar a morte de Marat. Danton, Robespierre e Saint-Juste entram em cena e logo saem dela guilhotinados. Gance mostrou bem a era da guilhotina no período mais radical da revolução. Napoleão escapa dela por ação de amigos e admiradores. Volta à cena para vencer batalhas e se aproximar de Josefina, com quem se casa. A segunda parte é consumida pela campanha da Itália, em que Napoleão transforma um exército de esfarrapados e esfomeados no melhor exército do mundo. Mc Luhan parece ter razão em afirmar que Napoleão contribuiu para uniformizar a modernidade. Ele amarrava varas nos tornozelos dos soldados para sincronizar o passo de todos.

            O filme é também incompleto. As campanhas do Egito e da Rússia não são mostradas, assim como as duas derrotas do general frente aos quatro países que lhe ofereceram resistência (Rússia, Prússia, Áustria e Inglaterra). Aos olhos de Gance, Napoleão é um lídimo representante dos ideais revolucionários de 1789. O general não apenas é um herói nacional como um herói revolucionário.

            Em preto-e-branco, o filme tem matizes azuis, sépia e avermelhados, como era comum nas películas dessa fase. O diretor amplia paisagens e figurantes com o uso de espelhos. Hoje, há computadores que permitem essa façanha. Pensemos, contudo, nos anos de 1920. Gance era um experimentalista. O final é magistral, com a mesma cena sendo mostrada em três planos. As tropas marcham à direita, ao centro e à esquerda. Trata-se da mesma cena e de cenas diferentes. Assim, o diretor não apenas amplia as tomadas como cria a sensação de simultaneidade.

            Gance não se saiu bem na era do cinema falado. Ele refilmou “Napoleão” em 1935: (“Napoléon Bonaparte”) e fez um documentário com o título de “Quatorze juillet” (1953). Em 1960, lançou “Austerlitz”. “Valmy”, de 1967, ficou incompleto. Destinava-se à televisão e foi concluído por Jean Chérasse. Por fim, voltou a seu herói em 1971, com “Bonaparte et la révolution”. Este último filme eclipsou o de 1927, embora seja menos criativo. A culpa não é dos diretores, mas do personagem, um dos mais complexos da história. Perdoemos as lacunas e os erros dos cineastas.

 

https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/01/1296144-tumulo-vazio.html

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 17 de janeiro de 2024

Túmulo vazio

Edgar Vianna de Andrade

            Você se lembra do filme “O dia em que a Terra parou”, lançado em 1951 e refilmado posteriormente? Lembra de “Helena de Troia”, de 1955? Ou do famoso “Amor, sublime amor”, mais conhecido por “West side story”, seu nome original? De “A noviça rebelde” (1965), tenho certeza de que se lembra. Outros mais: “O enigma de Andrômeda” (1972) e “Jornada nas estrelas” (1979), talvez. Todos eles têm como diretor Robert Wise, que começou sua carreira no cinema como carregador de latas de filmes. Ganhou um Oscar como montador de “Cidadão Kane”, de Orson Welles, um dos mais cultuados filmes de todos os tempos.

            Wise começou modestamente como diretor em meados de 1940. Mas, desde o início de sua carreira, a marca de mestre está registrada indelevelmente. Fiz esta constatação ao assistir a “Túmulo vazio” (“The body snatcher”), de 1945. O filme se inspira na novela “O ladrão de cadáveres”, do famoso Robert Louis Stevenson, cuja obra mais conhecida é “O médico e o monstro”. Dentre todos os cientistas, o médico é identificado pelas pessoas como aquele que lida com a vida (prolongando-a o mais possível) e com a morte (encarando-a como natural). Para compreender os segredos da vida, o médico tem de dissecar cadáveres. O primeiro alerta quanto aos perigos da ciência foi escrito por uma pós-adolescente colocando um médico como personagem central. Falamos de “Frankenstein ou o Prometeu moderno”, romance de Mary Shelley publicado em 1818. Frankenstein é um médico que constrói um monstro com pedaços de cadáveres que rouba em cemitérios.

A obra mais famosa de Stevenson é “O médico e o monstro”, de 1886. Dr. Jekyll é um conceituado médico que faz experiências em si mesmo e se transforma em Mr. Hyde nas horas vagas, sendo um monstro sanguinário. Thomas Mann, o grande romancista alemão, parece não simpatizar muito com os médicos. Por mais que admita o conhecimento deles, insinua que a intimidade com a vida e a morte os torna frios. No famoso romance “A montanha mágica”, de 1924, Thomas Mann, seu autor, retrata o Dr. Berghof como um médico acima do bem e do mal, falando da vida e da morte com frieza. E na novela “O cisne negro”, do mesmo Mann, o que parecia o retorno de menstruação numa mulher de meia idade apaixonada por um jovem, é, na verdade, manifestação de um câncer mortal aos olhos dos médicos.

Em “The body snatcher”, a face assassina do médico inescrupuloso de passado sombrio é um homem rude que rouba cadáveres para vender. Na falta deles, o ladrão passa a assassinar pessoas. Ao médico, não importa a procedência dos corpos que ele compra para seus estudos e suas aulas. O papel de ladrão de cadáveres é magnificamente representado pelo eterno Boris Karloff, que trabalha ao lado de Bela Lugosi, em papel bastante apagado. Wise cria um clima gótico no filme. Em preto-e-branco, ele se vale de pouca luz, muitas sombras e insinuações. Numa cena em que o ladrão mata uma vítima, vê-se um gato assustado. Em outra, uma carruagem mergulha na escuridão, ouvindo-se um grito em seguida. Wise filma bem desde o princípio de sua carreira.

Não se trata de um filme que se possa rigorosamente inserir no gênero “terror”. Não há recurso ao sobrenatural, como também não acontece em “O médico e o monstro”. A história é lúgubre, macabra, fúnebre. Vive-se no submundo sombrio de um médico que mata o seu duplo e que é atormentado por ele e acaba também morrendo. Há delírios, mas não a objetivação do sobrenatural.

Mas a maioria dos médicos desconhece os romances e os filmes em que sua dupla condição é mostrada. Seria falta de tempo, desinteresse pela leitura de ficção ou simplesmente recusa em descer ao mundo dos pobres mortais?

 

https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/01/1296404-edgar-vianna-de-andrade-carnaval-das-almas.html?fbclid=IwAR2D6M2scx_0cU8WghFJDTLjOBtzdshcoVyfUYsEIzKomvNGihfS4nt56Tk

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 31 de janeiro de 2024

Carnaval das almas

Edgar Vianna de Andrade

            Sofri um acidente horrível. Eu estava num automóvel com duas amigas atravessando uma ponte quando ele caiu no rio. O veículo afundou e matou minhas amigas. Julgaram que eu também havia morrido, mas, passado algum tempo, retornei. Não quis mais ficar naquela cidade. Mudei-me para outra e passei a ser organista de uma igreja. Eu já havia conseguido o emprego e uma pensão para morar antes de me mudar. O padre gostou do meu empenho.

            A dona da pensão era muito gentil, mas havia um hóspede (ele e eu éramos os únicos) que começou a me assediar. Isso tudo aconteceu em 1962. Eu era nova e, dizem, bonita. Ele era um homem vulgar, sem nenhum tato para a conquista. Era nítido que ele só queria sexo. A questão preocupante era que, desde a chegada na cidade, eu via um homem com aspecto de zumbi. Ele aparecia e desaparecia sem me incomodar. Só me causava medo.

            Na nova cidade, um prédio abandonado na beira de um lago me chamou a atenção. Eu sentia uma grande atração por ele. O padre me levou para conhecê-lo. Havia algo de estranho no ar. Algo também inexplicável aconteceu comigo um dia. Fui fazer compras numa loja de roupa e tive a sensação de não ser vista por ninguém. Eu existia. As pessoas falavam comigo. Eu tomava banho e sentia a água. Eu me alimentava e sentia a mastigação. Eu tocava órgão e me ouviam. Naquele dia, porém, pareceu que me tornei invisível até sair para a rua e novamente avistar aquele homem macabro. Um médico que passava convidou-me para uma consulta. Era médico. Fez várias perguntas e se impressionou com minha segurança e independência. Disse-lhe que não sentia falta de ninguém. Era muito comum naquela época concluir que uma mulher como eu era histérica.

            Certo dia, durante uma cerimônia religiosa, minhas mãos ganharam autonomia no teclado e meus pés deslizaram sobre os pedais do órgão. Eu não tinha controle sobre meu corpo. O padre considerou aquilo um desrespeito e me despediu. Decidi deixar a cidade. Na partida, mais uma vez aconteceu de eu não ser vista, ouvida ou percebida pelas pessoas. O zumbi continuava a me perseguir. Como aquele fenômeno podia acontecer? Ora eu existia, ora não. Fugi como pude. De nada adiantou. Acabei no prédio à beira do lago. O zumbi voltou a aparecer, agora no meio de uma legião de zumbis. Fui perseguida. Acabei me afogando.

            Desta vez, não escapei da morte. Finalmente, o automóvel em que eu estava com minhas amigas foi encontrado. Eu e elas estávamos mortas. Não sei quem viveu na outra cidade, se meu corpo ou meu espírito. Talvez os dois, pois ora as pessoas me viam, ora não me viam. Foi uma história tão incomum que Herk Harvey dirigiu um filme com ela. John Clifford escreveu o roteiro. Em três semanas e com baixo orçamento, Herk concluiu o filme em preto-e-branco. Seu título é “Carnaval das almas” (“Carnival of Souls”). Lançado em 1962, tornou-se um clássico de terror cult independente. Eu, Candice Hilligoss, fiz o papel de Mary Henry, a moça que morreu pensando que ainda vivia. Todavia, eu, Candice, continuo viva. Tenho 88 anos de idade. O sucesso do filme foi tanto que mereceu uma refilmagem em 1988.

 

https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/02/1296714-cinema-um-filme-sensorial.html

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 14 de fevereiro de 2024

Um filme sensorial

Arthur Soffiati

            Ao assistir a “O massacre da serra elétrica”, do estreante Tobe Hooper (1974), minha sensação foi de repugnância. Várias cenas são chocantes, mas a que mais me tocou foi a do avô da família de sádicos sugando o sangue do dedo da única sobrevivente do massacre (Marilyn Burns). Sensível a sangue, tive vertigem e ameacei desmaiar. Instintivamente, levamos o dedo à boca quando sofremos um corte. Mas, no caso da família do assassino da serra elétrica (Leatherface), a cena é macabra.

            Quentin Tarantino considera “O massacre...”, segundo filme de Hooper, uma das raras obras perfeitas do cinema em “Especulações cinematográficas” (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2023). Mas não explica por que. Voltei a assistir ao filme. Passaram-se 50 anos do seu lançamento e o filme continua assustando. Ele não é um trabalho datado. Claro que a fotografia desbotou. Claro que muitos aspectos parecem ultrapassados. Mas consideremos que Hooper trabalhou com baixo orçamento e concluiu as filmagens em quatro semanas.

            Não cabe aqui resumir a história. Quem quiser que assista ao filme. Agora, com mais maturidade, observei detalhes. Não mais tive vertigem na cena do dedo. O que me chamou a atenção foi a capacidade do diretor de transcender o sentido da visão e de tocar os outros sentidos. Ainda no âmbito da visão, as paisagens do filme não são bonitas. Cinco pessoas viajam para o Texas a fim de saber se o túmulo do avô de um foi realmente violado, como informou uma emissora de rádio.

            A fotografia de qualidade inferior trabalha muito com o claro-escuro. Lembrei-me de Mário Bava nas cenas em que a câmara mostra um círculo desfocado. Ao ser colocada no foco, trata-se do sol ou da lua. Há outros desfoques-foques assim ao longo do filme. A trilha sonora, recheada de canções countries, ajuda a nos situar no Texas. Todos aqueles caipiras toscos também. O ambiente é árido. Sente-se calor. As conversas giram em torno de abatedouros bárbaros de gado, como a introduzir o espectador no que ele vai ver. Também há sangue em pequenas doses antecipando a sanguinolência da segunda metade do filme de apenas 84 minutos. Os cortes na mão e no braço tocam nosso tato. Parece que eles foram feitos em nosso corpo.

            Creio que o olfato é o sentido mais trabalhado por Hooper. O cheiro de carne deteriorada sentido pelos cinco passageiros da van é tão forte e tão bem descrito que o espectador também o sente. Ele se torna mais forte para cada uma das cinco pessoas que entram na casa. Carne deteriorada num canto, ossos de face, pernas, braços, mãos espalhados pela casa. Dentes pelo chão. Ganchos de açougue pendurados. Moscas. O quadro é de um açougue interditado pela fiscalização pública, mas muito pior. A sujeira domina o ambiente. Nosso olfato também assiste ao filme e se enoja.

            Tudo acontece rapidamente. O maníaco da serra elétrica aparece subitamente e mata o visitante incauto com uma marreta de abater boi ou com o uso de uma serra elétrica. A cena de uma pessoa tremendo a perna antes de morrer é impressionante. Mas não há espíritos transparentes que andam pelas paredes e tetos. Não existem portas para o inferno. Não se trata de um filme de terror. Ele é macabro, mas mostra uma família de açougueiros. Não há a presença do sobrenatural, embora ele tenha influenciado os filmes de terror lançados posteriormente, como “Sexta-Feira 13” e “A hora do pesadelo”.

            Tobe Hooper mostra as mortes e o cenário nauseabundo em que eles ocorrem com uma câmara nervosa e caótica até se fixar na última personagem, que consegue escapar. O espectador, então, pode se enojar com os detalhes daquele açougue doméstico. O filme é ímpar. As refilmagens jamais conseguiram superar a obra original.

 

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 28 de fevereiro de 2024

Um crocodilo no quintal

Edgar Vianna de Andrade

            Depois de “O massacre da serra elétrica” (1974), segundo filme de Tobe Hooper e um verdadeiro sucesso até hoje considerado como marco no gênero, ele dirigiu “Devorado vivo” (1976), um filme mais modesto, mas também muito elogiado. Quentin Tarantino diz que ficava difícil ultrapassar “O massacre...”. “Devorado vivo” centra-se num hotel de quinta categoria à beira de uma estrada que leva a uma cidade do interior. Seu dono (Neville Brand) faz tudo. Ele cria um crocodilo num lago ao lado do hotel caindo aos pedaços. Orgulha-se em dizer que se trata de um crocodilo, não de um aligátor. Em terra, o animal é tão veloz e feroz quanto na água. Logo se sabe como o dono alimenta seu pet: com os raros hóspedes que passam por lá.

            A primeira é uma moça que fugiu da casa de pai rico e acabou se tornando prostituta por falta de emprego na cidadezinha. Um cliente jovem, representado por Robert Englund no início de carreira, quer praticar sexo anal e ela se recusa veementemente. Aliás, o jovem tem um forte desejo anal na vida. Até para matar o crocodilo ele pensa numa banana de dinamite no tubo anal do bicho.

            Logo aparece um casal com uma filha e seu cãozinho. O marido deseja apenas usar o banheiro, mas hospeda-se no hotel quando o cachorrinho é papado pelo crocodilo. A menina chora muito. O pai toma de uma carabina e resolve liquidar o animal. O dono o mata e empurra para o lago. Antes, porém, recebe um tiro na perna. Ficamos, então, sabendo que ele usava uma perna de pau. O crocodilo de estimação a devorara. A esposa é amarrada à cama, esperando sua hora. A filha foge para o porão da casa e grita muito.

            Um novo hóspede chega ao hotel com sua filha. É representado por Mel Ferrer. Depois de estrelar filmes famosos como galã, ele está no fim de carreira. Aliás, tenho encontrado muita estrela famosa em fim de carreira trabalhando em filmes sofríveis, assim como estrelas que trabalharam em filmes de terceira classe e depois se tornaram famosas. Ainda escreverei sobre eles. Ferrer é um homem que se hospeda com a filha à procura da outra, ex-prostituta e devorada viva. O dono do hotel jura que nunca a viu. Os dois saem à procura do xerife.

            Creio que o ponto alto do filme é representado por Mel Ferrer nos dentes do crocodilo. Matá-lo na ficção é uma metáfora. Ali morre também um astro famoso. Mas o hotel foi usado pelo jovem Englund para praticar seu maior desejo: sexo anal com uma conhecida. Ele acaba nos dentes do crocodilo. Ela consegue fugir. Hooper tem consciência de fazer um filme barato voltado para o público adulto, sobretudo masculino. Daí o desfile de seios desnudos, com ou sem motivo. Mulher nova, bonita e graciosa entrou em cena tem de mostrar os seios nus. Ele bateu o recorde em nudez em “Força sinistra”, filme de 1985 em que a linda Mathilda Mayatua em plena nudez o tempo todo. Sua beleza perfeita certamente agradaria o público masculino.

            Mas o filme deve conter algum traço de punição ao mal. No caso, o perverso dono do hotel deve ser punido. Suas crueldades decorrem de um desequilíbrio mental. Ele chega a ser cômico e, de fato, é o centro do filme. Fico na dúvida se ele ou seu crocodilo ocupam esse centro. Bom, ele acaba caindo no lago e sendo devorado vivo. O animal rejeita apenas a parte do corpo que havia substituído a que fora comida antes: sua perna de pau.

            Seria impróprio o animal devorar a menina e as moças formosas. Elas são poupadas. A fotografia é desbotada, mas certos enquadramentos revelam o talento de Hooper. O filme começa com a câmara focada numa medalha. Ao se afastar, verifica-se que se trata da fivela do cinto de Englund. A trilha sonora é recheada de música countries. Os admiradores de Tarantino certamente não admiram o gosto do cineasta. Ele se formou nesse meio: filmes baratos.

 

https://opinioes.folha1.com.br/2024/03/13/arthur-soffiati-jacare-pega-onda-do-tubarao-no-cinema/

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 13 de março de 2024

Um jacaré no esgoto

Edgar Vianna de Andrade

            Em “Devorado vivo” (1976), de Tobe Hooper, o herói-bandido é o psicopata dono de hotel (Neville Brand) que mata os hóspedes para alimentar seu crocodilo. Em “Alligator, o jacaré gigante” (1980), de Lewis Teague, o herói é um jacaré americano. Pegando a onda criada por “Tubarão”, de Spielberg, o jacaré não pode ser mau porque os animais não são cruéis. Contudo, nos filmes, os animais acabam adquirindo personalidade humana. Eles representam o mal e seus caçadores são vistos como símbolo do bem, como heróis.

            Sinteticamente, o roteiro mostra um filhote de jacaré tirado do seu meio por uma menina e levado para Chicago como pet. O pai da menina descobre o bichinho e o lança no vaso sanitário. Adeus, jacaré? Não. Ele sobrevive na rede de esgotos da cidade, alimentado por animais mortos cheios de hormônios por um laboratório que faz experiências suspeitas. Pernas e braços começam a aparecer na estação de tratamento de esgoto. A polícia é chamada. Um investigador (Robert Forster) cuida do caso. Quem é o criminoso? Andando pelas galerias de esgoto, o investigador descobre logo tratar-se de um jacaré monstruoso, e não de um bandido. O filme se baseia numa lenda urbana muito popular nas décadas de 1970-80.

            Concluindo-se de que se trata de um jacaré, a polícia devia encerrar o caso e passá-lo para bombeiros ou cientistas. Mas as investigações policiais prosseguem com o detetive compulsivo. Os clichês começam a se definir. O policial perdeu um companheiro no passado e se sente culpado por isso. É um homem atormentado que perderá mais um colega para o cruel jacaré gigante. O chefe da delegacia é também típico na sua meia idade e rouquidão. Ambos procuram um especialista. O maior nome em herpetologia é ninguém menos que uma linda moça. O dono do laboratório é um empresário inescrupuloso que tem grande influência sobre o prefeito venal. Esse filme já foi visto várias vezes, trocando-se apenas o vilão e os personagens.

            É claro que haverá um romance entre o investigador e a cientista. É claro que haverá sexo, embora, no filme, ele seja discreto. Nem os seios da cientista completamente nus são exibidos. Mas o detetive comenta que ela é inteligente, bonita e tem peitos atraentes. É claro que o jacaré terá comportamento humano. Ele arrebenta o asfalto e avança pela superfície de Chicago, atacando pessoas e veículos. É um animal gigantesco. Parece que ele sabe quem é o homem mau e ataca a festa de casamento do seu filho, devorando muitos convidados e o próprio vilão.

            Afastado do caso por ordem do prefeito, o detetive continuará a agir por conta própria com ajuda da cientista. Também já assistimos a esse filme várias vezes. Ambos entram no covil do jacaré e o detonam com dinamite. Caso resolvido? Chicago pode descansar? O filme terminou? O jacaré deixou filhotes. Mas como? Ele era macho ou fêmea? Se macho, não havia como proliferar. Se fêmea, pode-se pensar em partenogênese. O instinto de reprodução é tão forte que algumas plantas, invertebrados, anfíbios e répteis dispensam parceiros machos e se reproduzem. Um caso é focalizado em “Jurassic Park”.

            Os jacarezinhos aparecem no final do filme, sugerindo continuação. Muitos filmes com jacarés foram produzidos depois e “Alligator”. Todos eles para caçar espectadores pouco exigentes. Contudo, devemos admitir que muitos filmes nessa linha fizeram sucesso. Não é preciso ir longe para saber que os estúdios dos Estados Unidos querem filmes comerciais que produzam bilheteria.

 

https://opinioes.folha1.com.br/2024/03/27/arthur-soffiati-pague-para-entrar-reze-para-sair-do-gosto-de-tarantino/

Assassinato no parque de diversões

Arthur Soffiati

            Entre os filmes que marcaram o jovem Quentin Tarantino entre 1968 e 1981, figuram “Bullit”, “Perseguidor implacável”, “Amargo pesadelo”, “Os implacáveis”, “A quadrilha”, “Irmãs diabólicas”, “Daisy Miller”, “Taxi driver”, “A outra face da violência”, “A taberna do inferno”, “Alcatraz: fuga impossível”, “Hardcore: no submundo do sexo” e “Pague para entrar e reze para sair”.

            Quero me deter no último, dirigido por Tobe Hooper e com lançamento em 1981. Ele já tinha lançado “O massacre da serra elétrica” (1974), que Tarantino considerou um filme perfeito, sem explicar seu conceito de perfeição, e “Devorado vivo”, de 1976, que também mereceu elogio do diretor de “Cães de aluguel” em seu livro “Especulações cinematográficas” (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2023). Para ele, o roteiro é excelente, mas a direção de Hooper merece rasgados elogios.

            Já nos créditos iniciais, Hooper desfila as figuras que costumavam ilustrar os parques de diversões antigamente. São figuras canhestras, primárias, mas, ao mesmo tempo, assustadoras. O início é marcado por um quarto com instrumentos de tortura e a exibição de “A noiva de Frankenstein”, de 1935, filme que surfou na onda de sucesso de “Frankenstein” (1931). Então, uma jovem entra no banheiro, tira a roupa e se prepara para o banho. Em termos de sexo, parece que seios femininos são a obsessão dos homens dos Estados Unidos. Hooper não exibiu seios nus em “O massacre”, mas não os economizou em “Devorado vivo”. Enquanto ela se banha, um mascarado invade o banheiro com uma faca e avança para ela tentando atingi-la. É a cena famosa do chuveiro de “Psicose”. Hitchcock está sendo homenageado. A moça consegue segurar o pulso do esfaqueador, mas ele alcança a barriga dela. A faca, de borracha, se curva. Era seu irmãozinho desejando assustá-la.

            É motivo suficiente para ela não levar mais o irmão ao parque. Na verdade, ela pretendia mesmo ir ao cinema com o namorado e um casal amigo. Mas acabam todos no parque. O irmão foge de casa e também vai ao parque. O filme mostra as diversões: roda gigante, carrossel, carrinhos que trombam, trem fantasma, vidente, animais com deformação, teste de força etc.

            Eles se divertem e decidem passar a noite escondidos naquele parque mambembe de última categoria, onde duas moças tinham sido assassinadas anteriormente sem que o assassino tivesse sido encontrado. No meu entendimento, este é o senão maior do roteiro. Uma coisa é os dois casais ficarem presos nos domínios do parque. Outra é escolher dormir num lugar escondido para se divertirem à noite, fumando maconha e transando. Novamente, seios aparecem. Mas os quatro acabam sendo também testemunhas de um assassinato. O simpático Frankenstein mascarado paga à vidente por um sexo rápido que se resume a uma masturbação. Por baixo da máscara, escondia-se uma aberração humana assustadora.

            O irmão da moça é salvo por um funcionário o parque, que telefona para seus pais. Mas os dois casais são perseguidos pelo “monstro” assassino a mando de seu pai. Os quatro vivem uma noite alucinante, em que um por um é assassinado sempre de forma bizarra. A gente já espera o final: todos morrerão, salvando-se apenas a mocinha, que deixa o parque de manhã, espandongada e descalça. A cena contrasta com a paz dos empregados desmontando o parque. O final pedia a moça chamando a polícia.

            “Pague para entrar em reze para sair” (“Funhouse”) é um típico filme B: baixo orçamento, artistas inexperientes, efeitos especiais não convincentes, fotografia meio desbotada. É um típico filme norte-americano para público pouco exigente. O que não significa que não tenha qualidades. Tobe Hooper trabalhava com baixo orçamento propositalmente. Ele foi reconhecido por seus pares como um grande diretor. Assisti a quase todos os seus filmes. Só gostaria de saber qual seria a reação de uma pessoa que eu convidasse a assistir a ele. Ou qual seria a postura de um admirador de Tarantino diante desse filme. Admiramos Tarantino, mas não o seu gosto.

 

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 10 de abril de 2024

Luta ridícula de gigantes

Edgar Vianna de Andrade

            Não ando muito animado com a programação dos cinemas de Campos nem da única plataforma digital a que tenho acesso. Sendo assim, recorro com frequência à minha enorme coleção de DVDs. No entanto, querendo elementos para comentar um filme em cartaz no momento, cometi o grande equívoco de assistir a “Godzilla vs Kong”, uma mistureba dirigida por Adam Wingard. O macaco gigante Kong figurou nas telas pela primeira vez 1933. Foi um sucesso. Ganhou refilmagens e desdobramentos. Godzilla estreou em 1954. O primeiro encontro dos dois ocorreu no filme “Godzilla vs Kong”, produção japonesa de 1963. Eiji Tsubaraya, o Ray Harryhausen do oriente, criou gigantes espetaculares, mas não conseguiu superar o mestre norte-americano. O filme visava bilheterias dos Estados Unidos. Godzilla resulta do cruzamento de um tiranossauro rex com um estegossauro bem antes do recurso à engenharia genética das ficções científicas de Michael Crichton.

            Kong, por sua vez, controlava uma ilha. Ele era adormecido pelo sumo do fruto de uma planta só encontrada lá. Quando Kong aparece, as mulheres bailam para ele. Kong gosta de mulher e de lugares altos. Tanto que uma virgem é sempre presenteada a ele. Esses filmes do passado precisavam recorrer à técnica de animação do stop-motion, pois ainda não havia efeitos especiais computadorizados. Gostamos de filmes com dinossauros, mas ignoramos o quão difícil era produzir esses animais extintos no passado. Os primeiros filmes com eles datam da segunda década do século XX. Geralmente, eram curtos pelos custos na produção de pequenos bonecos ampliados que contracenavam com humanos.

            A partir da década de 1980, os filmes de “monstros” ou “coisas” passaram a ser produzidos em computação gráfica. O grande exemplo é “Jurassik park”, de 1993, dirigido por Steven Spielberg. Ele suscitou uma franquia de mais cinco filmes. Todos sofríveis. Todos demonstração vazia de tecnologia. Muitos outros filmes no gênero de “Jurassik park” ganharam as telas. A maioria deixa a desejar.

            Voltando a “Godzilla vs Kong”, é de se supor que os grandes estúdios atuais têm dinheiro, mas as salas de cinema estão em franca decadência. O filme conta com boa fotografia, embora padronizada, e muitos efeitos especiais. Contudo, o roteiro é confuso, a trilha sonora é pasteurizada, o desempenho dos artistas é péssimo. Nem Michael Bay, Roland Emmerich e Guillermo del Toro em seus piores momentos (e foram muitos) conseguiriam a proeza de Adam Wingard. Ele dirige mecanicamente. Qualquer computador faria melhor. Os efeitos especiais são excessivamente surrados. Animais inventados aparecem gratuitamente. Trata-se de uma mistura de catástrofe e anedota. O filme beira às raias do ridículo. Kong mora num mundo maravilhoso que fica no interior da Terra, enquanto Godzilla repousa no Coliseu de Roma quando não está destruindo uma cidade ou um monumento. Eles saem dos seus redutos para lutar e destruir. Não foram poupadas as pirâmides do Egito e a praia de Copacabana sob as vistas do Cristo Redentor. A globalização mostrada é perversa e deseducativa. Enfim, o filme é perfeitamente dispensável.

 

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Formigas no esgoto

Edgar Vianna de Andrade

            Na década de 1960, os estúdios de Hollywood entraram em crise. Havia muita briga. Chefes de estúdios encomendavam roteiros originais ou adaptados a autores que não se davam com os diretores escolhidos. Havia também briga entre artistas que trabalhavam juntos. Um dirigente chegou a dizer que a atriz escolhida devia lhe provocar desejos sexuais. Foi então que entrou em cena um grupo de cineastas dispostos a renovar o cinema dos Estados Unidos. Eram chamados de “movie brats”. Quentin Tarantino escreve: “O que diferencia os ‘movie brats’ da geração de diretores que veio logo antes deles, mais do que a juventude e a formação em faculdades de cinema, é o fato de que eles eram (em sua ‘maioria’) fanáticos por cinema.”

            Seus nomes são por demais conhecidos atualmente: Spielberg, Scorsese, Lucas, De Palma, Hal Ashby, Terrence Malick e Ralph Bakshi. Eles curtiam filmes que os cineastas politizados da geração precedente consideravam horríveis pelo prisma estético e político. Os “movie brats” gostavam de televisão, de “Viagem ao centro da Terra”, de “20.000 léguas submarinas”, de “A máquina do tempo”, de “A cidadela dos Robinsons”, de “Os canhões de Navarone” e consideravam Roger Corman um verdadeiro ídolo com seus filmes B.

            Os “movie brats” não eram de produzir filmes “cabeça”. Eles sabiam muito bem que o cinema é uma arte voltada para o grande público. Isso não significa que eles produzissem filmes de qualidade inferior. Com bastante sensibilidade, eles combinavam a qualidade ao gosto popular. Eles foram a primeira geração de cineastas de ponta em Hollywood a assistir ao clássico de ficção de Gordon Douglas, “O mundo em perigo” (“Them”), de 1954. É difícil falar em primeira vez no cinema em se tratando dos Estados Unidos, mas este talvez seja o primeiro filme a declarar que a humanidade entrou em nova era (muito perigosa) com a detonação de duas bombas atômicas no Japão, em 1945.

            Admiro este filme, contextualizando-o devidamente. Antes de lançar as bombas, houve experiências no estado norte-americano do Novo México. Essas experiências causaram, no filme, efeitos que poderiam acabar com a humanidade, não fossem a inteligência a ação de um velho cientista. Uma menina é encontrada vagando pelo deserto em estado de choque. Um trailer foi destruído e o dono de um boteco foi morto. A polícia descarta roubo e não encontra explicação para crimes em que uma força descomunal foi usada.

            Além da polícia estadual, o FBI entra em cena e também não atina com a motivação do crime. Como o objetivo dos ataques parece ter sido a obtenção de açúcar, decide-se consultar o mais conceituado entomologista do país. Idoso, ele é especialista em formigas. Sua filha, (interpretada por Joan Weldon) é uma daquelas moças lindinhas do cinema norte-americano na década de 1950: alta, belo rosto, penteado da época, sorriso claro, vestido comprido com pregas, bem cintado para mostrar cintura, quadris e seios (tudo com recato). Ela também é iniciada nos mistérios das formigas. Aonde o pai não pode ir, ela vai.

            Usando a dedução, o velho cientista não custa a concluir que a experiência nuclear efetuada em 1945, no Novo México, pouco antes do lançamento das duas bombas atômicas sobre o Japão, havia afetado as formigas. A Experiência Trinity, que oficialmente inaugura a era nuclear da humanidade, havia ocorrido apenas nove anos no tempo do filme e estava ainda muito viva na lembrança das pessoas.

            Não apenas os japoneses foram vítimas da radiação nuclear. Os Estados Unidos estão ameaçados por formigas gigantes que podem exterminar os habitantes do país e a humanidade. É preciso detê-las. Dr. Medford, o velho cientista, convence policiais, forças armadas e governo federal a combater as formigas mutantes. Vitória da velhice e da ciência. Ele profere frases lapidares, como: “As formigas são as únicas criaturas, fora o Homem, que fazem guerra. Elas fazem campanha, são agressivas e escravizam as prisioneiras que não são mortas” Ou: “Podemos estar testemunhando uma profecia bíblica se realizando: a destruição e a escuridão descerão sobre o mundo e as feras reinarão sobre a Terra”.

Todos se curvam diante de sua sabedoria, iniciando-se uma guerra implacável contra as formigas gigantes. O comando geral está com o Dr. Medford. A batalha final é travada numa galeria de esgoto, onde o cientista faz uma proclamação frontal à era nuclear. Num mundo em que a energia nuclear foi liberada, tudo pode acontecer.

A fotografia em preto-e-branco é muito boa. Os enquadramentos e os planos-sequência estão nas mãos de um bom diretor. Gordon Douglas tinha um grande currículo. O filme se vale de efeitos especiais. Ele concorreu ao Oscar nesse quesito, mas perdeu para “20.000 léguas submarinas”. De fato, as formigas não são muito convincentes.

 

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Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 08 de maio de 2024

O infeliz retorno de Garfield

Edgar Vianna de Andrade

Em 2004, vinte anos passados, escrevi uma crítica a “Garfield – o filme” passando em revista outros gatos que mereceram filmes. O primeiro deles foi o enigmático Krazy Kat, criado por George Harriman em 1911. Numa paisagem inóspita e insólita, uma gata que se diz descendente da gata de Cleópatra, alimenta uma relação sadomasoquista com o rato Ignatz, que, não percebendo o amor de Krazy, tenta afastá-la com tijoladas. Em cena, entra ainda Ofissa, um cão policial que ama Krazy, fechando um triângulo amoroso invertido: uma gata amando um rato e amada por um cão. Esse gato nunca mereceu um filme e morreu com seu criador. Foi o mais enigmático dos gatos dos quadrinhos. Hoje, está quase esquecido.

Em 1921, aparece um gato pleno de lirismo criado por Pat Sullivan. Seu caminho foi inverso ao dos outros personagens: ele começou em desenhos de animação para ganhar os quadrinhos. Trata-se do Gato Félix. Além de solidarizar-se com pessoas hoje consideradas excluídas socialmente, Félix tem um desempenho altamente criativo com os elementos dos quadrinhos. É um gato que não se aperta diante das dificuldades, usando o balão da legenda para voar, os pontos de exclamação como tacape e as interrogações como ganchos. A metalinguagem é um traço dos mais originais em Sullivan.

O terceiro gato é Fritz, criado pelo quadrinista underground Robert Crumb, em 1970. Trata-se de um gato lascivo e devasso, que saiu dos quadrinhos para uma animação pornográfica. Crumb, mereceu, em 1994, um documentário sobre sua vida e obra com o título de “Anti-herói americano”, dirigido por Terry Zigwoff.

Por fim, o gato mais atual é o preguiçoso, guloso, egoísta, vaidoso, mal-humorado e individualista Garfield, criado por Jim Davis em 1978 e que ganhou tiras em vários jornais do mundo inteiro. Anti-herói, Garfield parece expressar a outra face do norte-americano médio. Depende, sem nenhum sentimento de culpa, de um dono meio medíocre e coexiste com Odie, um cachorro que considera imbecil. Garfield sofre de complexo de superioridade.

O sucesso das tiras levou o gato para o desenho animado. Em 2004, Peter Hewitt o levou para a computação gráfica. Humanos e animais são verdadeiros. Em “Garfield – o filme”, o gato comodista é filho do computador. Jon Arbuckle (Breckin Meyer), seu dono, está mais apalermado que nas tiras. Odie ficou mais retardado. A médica veterinária Liz (Jennifer Love Hewitt), namorada de Jon, parece ser a mais habilitada a lidar com o gato rabugento que detesta as segundas-feiras e adora se exibir nos muros à noite.

Um gato da estirpe de Garfield não poderia se envolver numa história tão tolamente norte-americana como a concebida para o filme. No final, Garfield se torna o contrário do que é: torna-se herói e dos mais padronizados. É preciso talento para tirar um gato do quadrinho e levá-lo para o cinema. Peter Hewitt não demonstrou este talento E agora, 20 anos depois, por imposição de sobrinha, volto ao cinema para assistir “Garfield: fora de casa”, dirigido por Mark Dindal. Nesse intervalo, não sei se o gato se apresentou na telona. O mundo mudou muito desde então. O cinema de shoppings matou o cinema de rua e as plataformas de streaming estão matando os cinemas de shopping. Em 2004, o cinema estava lotado de crianças. Em 2024, havia apenas 4 com os pais. Pelo visto, Garfiield não agrada com os muitos clichês que inundaram as animações. Da minha parte, as observações para o filme de 2024 são as mesmas de 2004.

 

https://opinioes.folha1.com.br/2024/05/22/arthur-soffiati-a-lenda-do-rei-do-filme-b-de-hollywood/?fbclid=IwZXh0bgNhZW0CMTEAAR2cgpRvEKJsa7mkgxs_aav1H_rEVQDhSuV6zfcFyx015ZfN5hcyubuBCSM_aem_AWY-Hnom0iGG0RZ3LMIlX4UeOTS8sjN_DPCj3dftyKTGWKfSm7OEeP2aWf1wSjACOew57zHepnUA3UCA9S4jrryB

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 22 de maio de 2024

A lenda Roger Corman

Edgar Vianna de Andrade

            Hollywood reuniu estúdios e se tornou o maior centro cinematográfico do mundo. Dali, saíram grandes filmes, diretores famosos e artistas glamorosos. Eles ganharam o mundo e, por um lado, levaram-nos encantamento. Por outro, motivaram críticas severas. O festival do Oscar é o que melhor representa Hollywood.

            Mas deixemos o palco da cidade do cinema e visitemos o porão. Lá não é apenas um lugar para guardar material usado e recordações. Encontraremos intensa vida ali: diretores, produtores, cinegrafistas, artistas, orçamentos baixos e a falta de glamour do andar de cima. Ou um glamour diferente daquele mais difundido e exibido nas grandes telas. É a Hollywood B, talvez a verdadeira face da capital mundial do cinema: a produção de filmes comerciais para o grande público. O cinema sem meias palavras para render dinheiro: gastar pouco e ganhar muito. É preciso descobrir esta faceta por trás do charme.

            Nesse sentido, a figura de Roger Corman talvez seja a mais representativa desse porão. Ele nasceu em 1926 e acaba de morrer aos 98 anos de idade. Corman fez de tudo no porão: carregou cenários, esteve atrás das câmaras, foi dublê, estreou como diretor em 1956, dirigiu muitos filmes nos mais distintos gêneros, vários deles não creditados, e se tornou um grande produtor mais pela quantidade que pela qualidade. Corman recebeu merecidamente o título de “Rei do filme B”. Em todos os gêneros, encontraremos filmes B, aqueles que são produzidos com baixo orçamento. Por isso, não podem contar com bons roteiristas, fotografia, artistas e outros traços mais que marcam a produção do andar superior de Hollywood. 

            Não se pode dizer que Corman estava despreparado culturalmente. Ele se formou em engenharia e estudou literatura. Era pau para toda obra. Precisa-se de um filme para a próxima semana. Chama o Corman. Parece que certo estúdio não cumprirá o contrato para nos entregar um filme A. Chama Corman depressa e encomenda um filme B. Como produtor, ele não se limitava em conseguir dinheiro para os filmes, senão que escolhia o livro a ser roteirizado, o roteirista, o diretor e os artistas. Ele deixou de dirigir em 1990, mas continuou como diretor indiretamente. E era grande seu tino para filmes voltados aos pequenos cinemas e ao público não exigente. Os homens americanos gostam de peitos femininos? Pois coloquemos mulheres bonitas que exibem seus peitos gratuitamente. Foi assim que ele filmou Dawn Dunlap, uma bela e pouco conhecida atriz. O público gosta de briga? Ofereçamos briga a eles. E nada de filme-cabeça.

            Assim, Corman adquiriu notoriedade e respeitabilidade do andar de cima. Ele se tornou um grande conselheiro dos jovens diretores, como Francis Coppola, Martin Scorserse, James Cameron, Tim Burton, John Landis, Joe Dante, Peter Bogdanovich, Jonathan Demme. Ele lançou artistas que se tornaram célebres mais tarde, como Jack Nicholson, e trouxe às telas artistas que estavam sendo esquecidos, como Peter Lorre e Boris Karloff. Foi ele que consagrou o nome de Vincent Price. Ele ganhou dinheiro com esses filmes baratos e simples de ficção científica, comédias macabras, faroeste, mitologia, dinossauros, máfia e tantos mais em que esteve por trás como diretor e produtor. Segundo ele, só teve prejuízo com um. Em 2009, ele recebeu o Oscar honorário.

            Numa de suas muitas entrevistas, ele disse que não se deve abusar do virtuosismo com a câmara. Até certo ponto, ele podia fazer experiências, mas desagradar o público simples jamais. Pelo conjunto da obra, pela revelação de artistas, pela oportunidade que deu aos astros devorados por Hollywood e pela influência exercida sobre jovens cineastas, hoje famosos, Corman bem merece uma homenagem. Mas é de se perguntar quem estaria disposto a assistir a “O monstro de um milhão de olhos”, “O emissário do outro mundo”, “O ataque dos caranguejos monstruosos”, “Um balde de sangue” (genial), “A mulher vespa” “A pequena loja dos horrores” (sua mais conhecida obra), “O homem dos olhos de raio-X” e “Frankenstein, o monstro das trevas”? 

 

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 05-07 de junho de 2024

Corman diretor

Edgar Vianna de Andrade

Tomo um filme para exemplificar a personalidade de Roger Corman como diretor: “Um balde de sangue”, de 1959. Poderia ser outro, mas este revela Corman em sua alegria, simpatia, ironia e bom humor. Além de alto tino para a arte cinematográfica, Corman era generoso com novos e velhos, dando chance aos jovens diretores e artistas. Daí ser admirado por ambos.

Em “Um balde de sangue” e “A pequena loja de horrores” (1960), Corman e Charles B. Griffith formaram uma dupla bem-sucedida. Griffith no roteiro e Corman na direção. Nos dois filmes, a figura central é um jovem comum que tem um emprego simples. Em “Um balde de sangue”, trata-se de um garçom (Dick Miller) trabalhando numa casa noturna frequentada por rapazes e moças da geração beat. Seu sonho é ser escultor e impressionar Carla (Barboura Morris). Os frequentadores do bar declamam poemas e executam músicas. Todos se acham importantes. Corman satiriza a geração de jovens que se consideram intelectuais e artistas improvisando poemas e músicas.

            O jovem garçom gosta do ambiente. Ele desejaria ser um de seus frequentadores, mas não tem talento. Carla o admira sem pretender passar disso. O jovem mora na pensão de uma velha senhora. Uma noite, ela lhe pede que encontre seu gato e o alimente. No seu quarto, ele ouve miados atrás de uma parede. Pareceu referência a um conhecido conto de Poe. Para livrá-lo, o jovem tenta quebrar a parede com uma faca e mata o gato sem querer. Para esconder o gato morto, ele o cobre de massa e o mostra ao patrão e à moça por quem é apaixonado. A moça fica embevecida. Corman ri da mediocridade da arte praticada e admirada pelos frequentadores da casa noturna.

            Todos eles elogiam a obra do garçom. Há policiais disfarçados de frequentadores investigando o uso de drogas. Um deles segue o jovem escultor até sua casa, suspeitando que ele seja fornecedor ou interceptador de drogas. Os dois discutem. O jovem se defende com uma frigideira e mata o policial. Mais um a ter o corpo coberto de massa e a ser transformado em estátua. Nova obra do jovem garçom a ser admirada pelos frequentadores do bar. A próxima vítima é uma modelo. Assim, o jovem escultor descobre que sua obra depende de assassinatos. Suas obras passam a valer fortunas no mercado. É um novo realismo. Seu patrão e Carla descobrem que as esculturas escondem seres mortos. A polícia o persegue. A fuga é sensacional. A trilha sonora idem. O final é quase previsível.

            “Um balde de sangue” é um filme de humor negro com cerca de 60 minutos. Produção de baixíssimo orçamento, a filmagem exigiu apenas cinco dias. Os cenários dele serão aproveitados em “A pequena loja dos horrores”. Corman imprime um ritmo perfeito ao filme. A fotografia em preto-e-branco é ótima em seus claros-escuros. Ele filma bem. Seus enquadramentos são geniais. O filme vem agradando aqueles que apreciam cinema.

 

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 03 a 05 de junho de 2024

Einstein e os macacos

Edgar Vianna de Andrade

            Estudos sobre o comportamento social de uma espécie de macaco do Japão revelaram o que acontece com quase todas as espécies de símios no mundo: um macho alfa procura monopolizar todas as fêmeas adultas e formar um harém. Os outros machos vivem em torno dele e praticam pequenas traições, que são perdoadas pelo chefe se o traidor se submeter simbolicamente. Afastados do núcleo, ficam os macacos jovens. Mais afastados ainda ficam os macacos marginais. A novidade é que, entre os afastados e marginais, o ambiente para inovações é considerável. Essa espécie de macaco japonês se alimenta de um tubérculo do qual a terra é tirada com a mão. Certo dia, um macaco jovem deixou cair o tubérculo no mar e descobriu que a água tirava a terra do alimento e ainda o temperava. A inovação foi adotada pelos demais jovens e, quando um deles assumiu o comando do grupo, ela foi imposta ao demais.

            Tem-se essa concepção dos jovens humanos: as inovações são mais comuns entre os jovens por serem eles mais curiosos e arrojados. O roteiro do filme “Além da escuridão” (“Teenage Caveman”), dirigido por Roger Corman e lançado em 1958, tem como centro a curiosidade juvenil. Trata-se de um filme de baixo orçamento, como a maioria dos filmes dirigidos pelo rei do filme B. Robert Vaughn, em início de carreira, representa um jovem rebelde que transgride as normas do grupo, levando outros jovens com ele.

            O filme é ambientado num passado confuso. Onde estamos? Pela briga de dois animais que nunca existiram, estaríamos no tempo dos dinossauros. Um parece um lagartão e o outro é uma mistura de dimetrodonte com crocodilo. Mas, pela presença de humanos que vivem da caça e habitam cavernas, trata-se do paleolítico. Ao mesmo tempo, o conhecimento da roda nos remete ao neolítico. A mistureba de idades só nos permite afirmar que o filme se passa nos primórdios da história humana e pré-humana. E ainda há cães e cavalos que aparecem desnecessariamente. O jovem quer conhecer a região proibida, que fica além de um rio. Ele passa a fronteira interditada e é julgado pela transgressão. O pai o defende. A mocinha (ainda namorada ou esposa?) anda apreensiva com ele. O chefe da tribo (?) o perdoa, mas que a desobediência não se repita.

            Tudo inútil. A curiosidade do jovem é incontrolável. Observe-se que o filme a valoriza. Afinal, ele foi produzido no tempo da juventude transviada. Ser jovem era algo a ser valorizado. Finalmente o rapaz desobediente descobre o mistério: o território proibido era habitado por um monstro. Não. Tratava-se de um homem sob uma pele de animal ou coisa parecida. Um jovem mais afoito o mata com uma lança. Então, aparece algo muito estranho para aquele tempo: um álbum de fotografias. Elas retratavam uma guerra atômica. Certa vez, perguntaram a Einstein como seria uma terceira guerra mundial. Ele respondeu que só sabia como seria a quarta: com arco-e-flecha.

            A surpresa do filme fica por conta do seu final. Ele não é ambientado no passado, mas no futuro. O roteiro mostra uma sociedade vivendo depois de uma guerra nuclear e não mais se lembrando dela. Novamente, Corman produz um libelo contra a energia nuclear usada para fins bélicos, como fez em “O ataque dos caranguejos monstruosos”, também dirigido por ele e lançado em 1957.

            Ressalte-se a capacidade de Corman em filmar bem com baixo orçamento. Ele é criativo, visando sempre o público comum. Nada de muita arte num filme que, afinal, tem qualidades artísticas.

 

Edgar Vianna de Andrade - Presença de Jacques Tati Folha1 - Artigos

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 17 de julho de 2024

Presença de Jacques Tati

Edgar Vianna de Andrade

            Jacques Tati (1907-1982) parece ter tentado criar um personagem de humor como Carlitos, Buster Keaton e Harold Lloyd. Seria a França dando a sua contribuição para a comédia no cinema. Ele chegou tarde e não conseguiu o sucesso alcançado pelos Estados Unidos. Os curtas “On demande une brute” (1934), “Gai dimanche” (1935), “Cuida da tua esquerda” (1936) e “Escola de carteiros” (1947) não criaram um personagem. Mas revelaram seu caráter de mímico e a grande agilidade de Tati.

            “Carrossel da esperança” (1949), seu primeiro longa, retoma o personagem do carteiro diligente e atrapalhado que se esforça por imitar um carteiro norte-americano. Algumas cenas de “Escola de carteiros” são retomadas no filme. Tati começa a revelar suas qualidades de comediante e diretor. “Carrossel da esperança” foi filmado em preto-e-branco e em cores. Esta segunda versão foi encontrada muitos anos depois. Foi o primeiro filme em cores da França. A restauração foi um trabalho de pesquisa e de artesanato. Mas Tati ainda não encontrara seu lugar.

            Finalmente, em “As férias do senhor Hulot” (1953), ele cria um personagem que vai imortalizá-lo como um dos grandes comediantes do cinema. Hulot é um homem desajeitado e trapalhão fora do seu tempo. Ele não faz crítica explicita à modernidade, mas, com simplicidade, mostra que os tempos modernos excluem o ser humano. Hulot vive o presente como se estivesse no passado. Daí as situações cômicas que ele cria.

            Em “Meu tio” (1958), Hulot alcança seu momento mais lírico. O filme tem um roteiro explicito. É claro o contraste de uma França antiga e uma França que se americaniza. Hulot vive uma vida simples, morando numa casa com acesso complicado. Sua irmã casou-se com o executivo de uma empresa de tubos de borracha que, para demonstrar sua posição social, tem uma casa toda automatizada e um automóvel moderno. O filho do casal gosta do tio porque ele representa a liberdade e a simplicidade. Até mesmo o cachorro do casal gosta da liberdade que Hulot lhe proporciona de viver entre vira-latas.

            Mas o executivo considera Hulot um vagabundo e mau exemplo para o filho, conseguindo-lhe um emprego na fábrica de tubos. As cenas decorrentes de um desajeitado tentando um emprego moderno são impagáveis. O filme mereceu um Oscar e rendeu recursos de bilheteria.

            Num esforço descomunal, Tati reuniu todos os seus recursos para “Playtime” (1967), filme ambicioso. Para tal, construiu uma cidade a fim de fazer um filme “limpo”, em que entrasse apenas o que o diretor desejava. Mais uma vez, Hulot se movimenta num mundo moderno de modo antigo. Não há crítica explícita à modernidade, como em “Tempos modernos”, de Chaplin. Hulot se limita a criar situações impagáveis num mundo dominado por uma tecnologia que ultrapassa a escala humana. Quem se formou num mundo analógico entenderá bem as dificuldades de Hulot num tempo que ainda não é digital.     

            O filme não foi bem de bilheteria. Começa o declínio de Tati, que morrerá endividado. O curta “Aula noturna”, de 1967, nada acrescenta à sua filmografia, sendo mesmo uma espécie de retorno a seus primórdios. Mas seu personagem marcante retorna em “As aventuras do sr. Hulot no tráfego louco” (1971). Ele não mais financia seus filmes, mas continua a viver à moda antiga num mundo novo. Um traço que observei na filmografia de Hulot e que ainda não encontrei comentado: sua relação com as mulheres. Elas são moças esbeltas e discretas que entram na vida do comediante, produzindo uma forma de encantamento. Mas não existe aproximação mais íntima.

Por fim, “Parada” (1974), seu canto do cisne. O centro do filme não é mais o senhor Hulot, mas o próprio Jacques Tati, que, aos 67anos, demonstra toda sua agilidade e capacidade mímica. Ele volta aos tempos em que imitava lutadores de boxe e tenistas, além de outros. O filme foi produzido na Suécia. É pequena a filmografia do grande diretor e ator francês.

 

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Folha da Manhã, 31 de julho de 2024

Homem Cinema

Edgar Vianna de Andrade

            Concluindo a homenagem a Roger Corman, recentemente falecido aos 98 anos, não sem razão ele foi admirado pelos maiores diretores de Hollywood. Corman começou no porão dos estúdios. Carregava cenários, varria sets de filmagens, atuava em caso de necessidade, produzia e dirigia filmes, lançava atrizes, atores e diretores. Era alegre, sorridente, simpático e generoso. Imortalizou-se dirigindo filmes com baixo orçamento, mas era capaz de dirigir bem filmes com altos orçamentos.

            Até quanto a sua origem como diretor, paira divergência. As páginas oficiais dizem que seu primeiro filme foi “O monstro de um milhão de olhos”, de 1956 e não creditado. Outros mencionam “Cinco revólveres mercenários”, de 1955. Em seis anos, entre 1955 e 1960, ele dirigiu 28 filmes, todos considerados filmes B. Ele se movimenta em todos os tempos e espaços e se sai bem em todos os gêneros. Os básicos são drama e comédia, que ele frequenta com desenvoltura. Faz filmes ambientados nos dias de hoje e no planeta Terra, mas pode ir ao passado para filmar mulheres e homens vikings ameaçados por um monstro marinho. Retrata a juventude em filmes de costumes. Vai ao espaço registrar uma guerra de satélites ou focar um invasor espacial. Retorna ao passado humano remoto, que, na verdade, é o futuro da humanidade depois de nova guerra atômica. Mostra o perigo das experiências científicas, sobretudo as com energia nuclear.

            Mostra como fazer humor negro em “Um balde de sangue” e “A pequena loja de horrores”. Ambas com baixíssimo orçamento e produzidos em uma semana. Até 1960, seus filmes estão voltados para os cinemas baratos e para o público pouco exigente. Este também merece atenção e respeito. Mas, em todos, deixa sua marca de cineasta, marca esta reconhecida logo depois por grandes diretores. Corman vai ao cerne dos interesses norte-americanos médios.

Na década de 1960, grande é sua dedicação a filmes de terror com base em Edgar Alan Poe, autor que muito admirava. Os filmes ganham uma roupagem que os caracterizariam como góticos, embora essa expressão não seja das melhores. No entanto, é agraciado com grande orçamento para dirigir “O massacre de Chicago”, em 1967. A reconstituição dos anos 1920 é perfeita. A luta entre mafiosos pelo poder é documental. Cada membro da máfia merece pequena biografia de um narrador. O filme culmina com o massacre de São Valentin, pelos capangas de Al Capone. Logo em seguida, em outro filme de alto orçamento, ele lança “O cinco de Chicago”, (“Bloody mama”), com antológica interpretação de Shelley Winters, contracenando com Robert de Niro num de seus primeiros filmes.

Depois de dirigir “Frankenstein - terror das trevas”, em 1990, Roger Corman torna-se apenas produtor. Nesta condição, ele não deixa de também dirigir, pois escolhia o livro a ser roteirizado, o diretor do filme, o cinegrafista e os artistas. Procura seguir as ondas do momento, como animais monstruosos e ameaçadores do presente, dinossauros, aventuras espaciais, super-heróis etc. E sexo, na medida do necessário. Além de ser um professor de cinema, Corman foi o próprio cinema. Foi um ícone, uma lenda admirada por muitos.   

 

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Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 14 de agosto de 2024

Um diretor minimalista

Edgar Vianna de Andrade

            Robert Bresson nasceu em Bromont-Lamothe, em 1901, e morreu em Paris, em 1999. Até aí, nada demais. Todos nascem e morrem. Ele foi longevo, algo não muito comum no século XX. Poucos outros tiveram uma vida longa, como ele. Bresson foi diretor de cinema. Nada de novo também, pois muitas pessoas foram e são diretores. O número só aumenta no nosso mundo virtual.

O diferencial é que Robert Bresson foi um grande diretor. Sua filmografia se limita a 14 filmes. Ele começou sua carreira em 1934, com o média metragem “Os negócios públicos” (“Les affaires publiques”) e a concluiu em 1983, com “L’argent”. Contava, então, com 82 anos. Ele estudou artes plásticas e filosofia, mas se interessou por cinema, começando sua carreira como roteirista. Durante a Segunda Guerra mundial, Bresson foi prisioneiro num campo de concentração nazista. Essa experiência marcou sua carreira de cineasta. Sua postura ascética e seu interesse por literatura marcaram sua obra. Entendendo o cinema como um movimento interior, ele não tinha a preocupação de se comunicar com o público. Daí sua obra intimista elogiada pela crítica e desprezada pelas pessoas acostumadas a filmes populares. Ele não queria ser incomunicável, mas apenas expressar suas concepções existenciais e estéticas.

Bresson tinha uma forte marca do catolicismo, mas seu ascetismo levou a crítica a chamá-lo de jansenista, postura católica do século XVII e XVIII, na França, que se aproximava do calvinismo em sua atitude moral. No cinema, Bresson traduz essa postura no minimalismo. Não se trata de um gênero ou de uma escola, como um crítico de cinema já propôs, mas de uma forma de conceber a obra. Bresson trabalhava com atores e atrizes não profissionais. Seus roteiros e fotografia são enxutos. Os filmes são curtos, com cortes e montagem incisivos, fixando-se no essencial, segundo sua concepção. A fotografia é seca. Ele se expressa de forma magnífica no preto-e-branco.

Em 1945, Bresson se afirmou como cineasta importante ao lançar “As damas do bois de Bologne”, com roteiro de Jean Cocteau. O filme se baseia em “Jacques, o fatalista”, de Denis Diderot, e foi elogiado por François Truffaut. Mas ainda não estamos diante do enxuto cinema de Bresson. Seu minimalismo aparecerá em “Diário de um padre” (1951), “um condenado à morte escapou” (1956), “Batedor de carteiras” (“Pickpockt”- 1959) e “O processo de Joana D’Arc” (1962), em que ele mostra, em 60 minutos, a paixão da santa francesa a partir do processo de sua condenação.

De todos, eu seleciono “Batedor de carteiras”, filme curto em que toda sua técnica de filmar está presente. Ele exigia que atores não profissionais repetissem as cenas à exaustão para alcançar o resultado esperado. Alguns de seus filmes foram incluídos em listas dos melhores do mundo. Embora não integrando o movimento “Nouvelle vague”, Truffaut e Godard o consideravam uma espécie de pioneiro no novo cinema francês. Eu não hesitaria em incluí-lo nesse movimento de renovação, recomendando “Pickpockt” como exemplo de sua técnica primorosa.

 

Edgar Vianna de Andrade - A singularidade de Ozu Folha1 - Artigos

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 28 de agosto de 2024

A singularidade de Ozu

Edgar Vianna de Andrade

            O mais conhecido filme de Yasugiro Ozu é “Era uma vez em Tóquio”, de 1953. Quem assiste a esse filme e percebe algo de diferente no diretor contenta-se com ele. Ozu começou a filmar em 1927. Todos os filmes desse ano e de 1928 se perderam. Restou apenas “Dias de juventude”. Outros de anos posteriores também se perderam, assim como, de alguns, restaram fragmentos. Filmes em película se perdem facilmente por falta de conservação. Fungos costumam destruí-los. Além do mais, nos primórdios do cinema, ainda não havia instituições para reuni-los, organizá-los e conservá-los.

            Mas, entre “Dias de juventude” e “A rotina tem seu encanto”, seu último filme, datado de 1962, pode-se acompanhar a carreira cinematográfica desse grande diretor japonês, que ombreia com Akira Kuruzawa e com Kenji Mizoguchi. Ozu é um intimista. Kurosawa é um épico. Mizoguchi um crítico da sociedade japonesa. Cada um expressa uma face da cultura japonesa contemporânea.

            Ozu firma, na década de 1930, a estética que o imortalizará. Em “Dias de juventude”, ele filma como um ocidental: câmara em movimento com muita gente em cena. Muita ação.  Em “Filho único” (“Hitori musuku”), de 1936, seu estilo já está definido: câmara parada e baixa, registrando o movimento dos artistas. A paisagem é também assim enfocada: de baixo para cima. Assim como se consolidou o plano americano (enfoque de pessoas da cintura para cima), Ozu se projetou com o plano tatame (câmara parada na altura do chão).

            Há cortes na filmagem, mas passando-se de uma câmara para outra sempre posicionadas no chão e paradas. Movem-se apenas as pessoas. No geral, o que importa a Ozu é o cotidiano. Nada de dramas, de cenas grandiosas. Tudo transcorre como acontece no dia-a-dia. Existem dois mundos interligados: o Japão fora de casa, que já está ocidentalizado, e o Japão doméstico. No mundo exterior, as pessoas se comportam como ocidentais. Os homens usam terno e gravata, praticam tênis, golfe e basebol. Trabalham em escritórios. Entram nos ambientes de trabalho com sapatos. As mulheres ou se vestem à moda ocidental ou ainda com roupas tradicionais do Japão.

            Mas, ao entrarem no lar, homens e mulheres tiram os sapatos e ficam descalços ou de meia. O solo do lar é sagrado. Geralmente, homens e mulheres vestem quimonos no ambiente doméstico. A família é muito considerada e respeitada. Mas as mulheres não aceitam as imposições dos homens, pelo menos como no passado. Elas opinam, discutem, não aceitam passivamente a posição do pai, do irmão e do marido.

            O casamento da mulher ainda é uma questão crucial numa família. Pais e irmãos esperam que a mulher se case, mesmo que ela não queira. No final, ela aceita sugestões de bons partidos. Mas há uma espécie de complexo de Electra em vários filmes de Ozu: a filha gosta da família ou do pai (sobretudo se é viúvo) e não quer deixá-los. São os casos de “Pai e filha” (1949), “Também fomos felizes” (1951) e de “A rotina tem seu encanto” (1962). Mas há o caso de os pais se queixarem dos filhos, como “Era uma vez em Tóquio” (1953). Envelhecimento, atenção, gentileza e casamento são temas constantes em Ozu. Ele era alcoólatra e essa particularidade é levada para seus filmes. É muito comum os amigos se reunirem para beber fora de casa. E acabam embriagados, recebendo reprimendas de esposas e filhas.

            A adoção do filme em cores não afetou a qualidade da produção de Ozu, como aconteceu com Robert Bresson. A estética do japonês não era incompatível com o filme colorido. O primeiro filme em cores foi “A flor do equinócio” (1956). Ele terminou sua carreira de diretor em 1962, com “A rotina tem seu encanto”, também em cores. Ozu deixou marcas no cinema oriental com seus roteiros que nada dizem de especial. Ele não conta nada de extraordinário além do cotidiano que todos nós podemos viver. No cinema, costumamos procurar ação, o diferente da nossa vida. Ozu não nos dá esse prazer.

 

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Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 11 de setembro de 2024

O monumentalismo de Visconti

Edgar Vianna de Andrade

            Acompanho Luchino Visconti desde a década de 1960. Assistir a um filme dele hoje e outro anos depois não nos permite tão bem apreciar a sua arte no conjunto. Como o próprio diretor fez no fim da vida, assisti toda a sua obra recentemente. De fato, Visconti foi um dos grandes diretores de todos os tempos. Ele é, sem dúvida, o pioneiro do neorrealismo italiano com “Obsessão” (1943). Num ambiente de pobreza, um aventureiro se envolve com uma mulher casada. Ambos matam o marido. O fascismo ainda dominava a Itália. O filme escandalizou. Ele se afirma no neorrealismo com “A terra treme” (1948), filmado no sul da Itália numa vila de pescadores. O diretor recorre aos próprios pescadores como artistas. Integrando uma família italiana nobre, Visconti parecia renunciar as suas origens, aderindo ao marxismo. Ele continua na trilha do realismo em “Belíssima” (1951), agora contando com a atriz Anna Magnani para sustentar o filme.

            Três anos depois, ele filma “Sedução da carne”, anunciando o rumo de sua carreira cinematográfica daí em diante: o monumentalismo, a decadência da aristocracia, dos valores da alta burguesia, da família tradicional. Ambientado no contexto da unificação da Itália, no século XIX, uma nobre casada se apaixona por um militar austríaco que integrava as tropas invasores do norte do país. O militar era um vigarista. Visconti mostra o declínio da aristocrata. Mas exercita, no filme, seu gosto pelo luxo dos ambientes, pelos detalhes de roupas, joias, teatros, palácios, casas de campo. Ele foi acusado de trair o ideário neorrealista e de revelar suas raízes sociais aristocratas.

            Homossexual assumido, Visconti era um homem culto. Gostava de literatura, artes plásticas e música erudita. Em 1957, lançou “Noites brancas”, com base em história de Dostoievski. Em “Rocco e seus irmãos” (1960), ele volta rapidamente ao neorrealismo pobre, mostrando a mudança de uma viúva com cinco filhos para que eles melhorassem de vida. Fica evidente o contraste entre campo e cidade. Uma das obras primas do cineasta é “O leopardo” (1963). Da minha parte, é o filme que mais me encanta por seu roteiro, pelos atores, pelo contraste entre ricos e pobres, entre uma Itália dividida que se unia, entre nobreza decadente e burguesia ascendente. O roteiro baseia-se em “Il gattopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lapendusa. Burt Lancaster está soberbo no papel de Dom Fabrizio Salina, príncipe no reino das Duas Sicílias que está prestes a ser incorporado à Itália unificada pelo Piemonte. Ele se destaca por seu realismo e pragmatismo. Ele sabe que as grandes mudanças mantêm o status quo de outra maneira. É tocante a sua sabedoria política. Claudia Cardinale também tem um excelente desempenho no papel de filha linda de um burguês, disponível a se casar por acordo. O monumentalismo do filme impressiona. Visconti cuida de todos os detalhes.

            Em “As vagas estrelas da Ursa” (1965), o diretor parte para montagens ousadas, enfocando mais uma vez a decadência da aristocracia e da burguesia. Visconti combina declínio geológico, urbano e social num claro-escuro que explora os expressivos olhos de Claudia Cardinale. Em “O estrangeiro” (1967), ele se vale de Camus para compor o roteiro. Visconti não mais disfarça sua vasta e refinada cultura. Começa, então, a trilogia alemã, com “Os deuses malditos” (1969), sobre o nazismo. Na busca de locações para o filme, na Alemanha, ele encontra paisagens em que ambientará o mais ambicioso filme de sua carreira: “Ludwig” (1973). O rei da Baviera gostava de artes e de rapazes. O detalhismo do diretor alcança o auge com figurinos perfeitos e refinada reconstituição de época. Antes, porém, ele filmou “Morte em Veneza” (1971), filme que mais o revela.

            Burt Lancaster está de volta, mais uma vez de forma estupenda, em “Violência e paixão” (1974), filme que enfoca o contraste da vida culturalmente solitária de um homem rico com a vulgaridade dos novos tempos. Por fim, “O Inocente” (1976). Visconti já estava bastante doente quando concluiu este filme, ficando a nos dever um sobre Proust.

 

Edgar Vianna de Andrade - Os fantasmas sempre se divertirão Folha1 - Cultura & Lazer

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 25 de setembro de 2024

TRÊS MATEUSINHOS

Os fantasmas sempre se divertirão

Edgar Vianna de Andrade

            Depois do desastrado “Dumbo” (2019), produzido para a Disney, Tim Burton pensou em se aposentar. O filme foi um fracasso. Todo o universo mágico criado pelo diretor estava ausente no filme. Logo depois, ele dirigiu o seriado “Wandinha”, cujo papel principal fica por conta de Jenna Ortega, e começou a se reerguer.

Ele volta agora com “Os fantasmas ainda se divertem”, retomando seu humor negro, seu traço gótico (adjetivo que não me agrada muito) e a homenagem a estilos e diretores, o que ele havia feito em “Ed Wood”, considerado o pior diretor de todos os tempos. Ele se destacou como cineasta com “Os fantasmas se divertem” (1988), seu segundo filme. Vieram depois produções que levaram Burton a ocupar um lugar ímpar no cinema dos Estados Unidos e do mundo, tais como “Batman” (1989), “Edward mãos de tesoura” (1990), “A lenda do cavaleiro sem cabeça” (1999), “A noiva-cadáver” (2004), “A fantástica fábrica de chocolate” (2005) e “Alice no país das maravilhas” (2010). “A noiva-cadáver” é, por exemplo, uma animação à altura das primeiras produções da Disney, de Hayao Miyazaki e de Gore Verbinski.

Em “Os fantasmas ainda se divertem”, Burton volta às origens, dando continuidade ao roteiro de 1988. São quase os mesmos personagens, mas agora envelhecidos e com novos que nasceram depois. Ele se vale da animação “stop motion”, em que as figuras são filmadas em posições distintas e depois reunidas para obter movimento. E o humor transborda. Ele coloca em primeiro plano Winona Ryder, uma mulher que faz um programa de televisão acerca do sobrenatural, mas sua hipersensibilidade a leva a ver fantasmas, e Jenna Ortega, sua filha, adolescente materialista. O filme gira em torno das duas.

Burton usa cenários que evocam o expressionismo alemão. Em alguns momentos do filme, ele se vale de cenários que parecem saídos de “O gabinete do Dr. Caligari”. Homenageia também o terror gótico do cineasta italiano Mario Bava, um dos mestres do cinema de baixo orçamento. O centro do filme é a casa em que se reúnem três gerações da família Deetz. Lydia Deetz (Winona Ryder), agora adulta, é mãe da adolescente Astrid (Jenna Ortega) e a avó Delia Deetz (Catherine O'Hara) Duas viúvas e uma solteira. Esse trio de mulheres domina o filme. No mundo dos mortos, o bem-humorado fantasma Beetlejuice (Michael Keaton) rouba a cena. Ele é invocado no sótão do soturno casarão. É o caminho que ele encontra para fugir da noiva Delores (Monica Bellucci), que evoca Morticia Addams. Embora fantasma, Bellucci monta seu corpo esquartejado com um grampeador e procura Beetlejuice para se vingar. Já com meia idade, Bellucci estampa sua beleza italiana. Desempenha bem o papel de perseguidora, mas aparece pouco no filme. O mesmo pode ser dito a respeito do onipresente Willem Dafoe, que represente um detetive do mundo dos mortos.

A retomada do universo mágico de Burton recoloca no cinema a estética que tão bem caracteriza o diretor. É algo só dele reunir sobrenatural, humor, fantástico e tecnologias já superadas pelo cinema, dando aos filmes um toque de magia. Pena que ele tenha lidado com muitas histórias paralelas com personagens interessantes. Eles mereceriam filmes futuros, como o caso de Bellucci evocando Anjelica Hustoun, com seu corpo opulento e sinuoso, e Willem Dafoe.

Pelas mãos de Burton, os fantasmas sempre se divertirão.

 

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 09 de outubro de 2024

(TRÊS MATEUSINHOS)

Acaso repetido

Edgar Vianna de Andrade

            Woody Allen foi um dos meus cineastas favoritos por muitos anos. Desde seu primeiro filme, em que atuou como roteirista e ator, a história (literatura) ocupa o primeiro plano. Ele filma bem, mas não ultrapassa muito o roteiro, sempre bastante inteligente, mesmo depois de parecer cansado com a idade e com as acusações de pedofilia por sua ex-mulher. Essas acusações dispensam provas e podem acabar com a vida de uma pessoa.

            Allen foi cancelado por algum tempo. Atores e atrizes politicamente corretos não queriam mais trabalhar com ele. Mesmo assim, o diretor continuou dirigindo filmes geralmente financiados por governos de outros países. Andou pela Inglaterra, França, Itália e Espanha, prometendo filmar no Brasil. Ficou só na promessa.

            Seu mais recente filme, lançado neste 2024, foi rodado na França em 2023. Trata-se de “Golpe de sorte em Paris”, um típico filme do cineasta, hoje com 88 anos de idade. Allen destacou-se mais com o gênero comédia que com o drama, mas trabalhou bem com os dois. Os casamentos do diretor sempre envolvem traição à moda antiga. Fanny (Lou de Laâge) e Jean (Melvi Poupaud) parecem um casal perfeito. Ele é um homem de sucesso cujo caráter está acima de qualquer suspeita. Mas não é bem assim. Olhemos os bastidores. Fanny encontra Alain (Niels Schneider) um ex-colega de colégio, agora escritor. Ela não resiste ao jogo de sedução dele. O romance de ambos é previsível. Ele precisa acontecer para que o roteiro possa se desenvolver.

            E, como em “Match point” (2005), um grande drama de Allen, o acaso entra em cena. Por mais que o filme se pareça com uma tragédia grega, a imprevisibilidade coloca a história no contexto do princípio da incerteza, formulado por Heisenberg na década de 1920. Por ele, nunca se sabe qual será exatamente a reação a uma ação. Em “Match point”, um homem casado se envolve com uma linda mulher. Ela fica grávida, comprometendo o casamento dele, que lhe proporcionou ascensão profissional. Só lhe resta uma saída: matar a amante. Para tanto, ele se vê obrigado a matar uma senhora que nada tem a ver com o drama. Efeito colateral, como ele define. A prova do crime é um anel lançado no rio Tâmisa, mas que bate na proteção marginal, como uma bola de tênis bate na rede, não se podendo definir se cairá no campo adversário ou no campo do lançador. O detetive que cuida do caso elucida o crime num sonho, mas o anel foi encontrado por um mendigo, que passa a ser acusado pelos dois assassinatos. O assassino está salvo.

            Em “Golpe de sorte em Paris”, há muito golpe e pouca sorte. O marido milionário é um assassino de casaca. Matou seu sócio e o amante da mulher em crimes que parecem perfeitos. Suspeitando de coincidências, sua sogra (sempre elas) entra em cena. Ela está muito perto da verdade. Deverá ser a próxima vítima em mais um assassinato perfeito. Mas, dessa vez, a bola de tênis cai no campo do lançador. O acaso transformará o assassino em vítima. Woody Allen se repete, demonstrando seu cansaço. É difícil uma pessoa criativa aceitar o momento de parar.

 

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 23 de outubro de 2024

O pior cineasta do mundo

Edgar Vianna de Andrade

            À procura de cineastas que criaram linguagem estética própria, assisti a vários filmes de Tim Burton. Entre eles, “Ed Wood”, de 1994, estrelado por Johnny Depp, seu ator predileto. De fato, Ed Wood dirigiu filmes péssimos, mas conheço coisas piores. “A geladeira diabólica” (1992), “O horror vem do espaço” (1958), “O ataque das sanguessugas gigantes” (1959), “As felinas da Lua” (1953) e o insuperável “Manos: as mãos do destino” (1966). O apreciador de filme B ou de “trash” está desafiado a assistir a esses filmes, que vi em 2020, por ocasião da reclusão provocada pela pandemia causada pela Covid-19.

            De todos os filmes dirigidos por Ed Wood, considero “Glen ou Glenda” (EUA, 1953) uma produção muito corajosa para a época. Tendo Bela Lugosi, seu artista predileto, como uma espécie de comandante dos destinos humanos, Wood mostra o seu próprio drama. Embora fosse heterossexual, ele gostava de se vestir de mulher. Daniel Davis faz o seu papel e Dolores Fuller o de sua mulher, ela que foi a primeira esposa do cineasta. O filme promove uma discussão sobre as diferenças entre travesti, homossexual e hermafrodita. Seu caráter didático compromete a narrativa fílmica, quase beirando o documentário. Gêneros que não o masculino e o feminino eram, na época, considerados crime ou pecado, como se tratasse de uma perversão praticada por escolha pessoal.

            “A face do crime” (EUA, 1954) conta novamente com Dolores Fuller e marca a estreia de Steve Reeves, mostrando o físico que o celebraria depois no papel de Hércules e de outros heróis musculosos. Lugosi não está presente neste. O roteiro gira em torno de ladrões assassinos e de cirurgias plásticas feitas de improviso na casa do paciente, contando apenas com um médico e uma enfermeira.

            Em “A noive do mostro” (EUA, 1955), Lugosi retorna como cientista maluco. Na verdade, a noiva seria do átomo não se sabe como. Dolores Fuller mais uma vez comparece. Tor Johnson é o mostro. Um fiel servidor de Lugosi, o cientista maluco e ambicioso que mora num casarão abandonado no campo. O cartaz do filme é típico da época: um homem com fisionomia de louco carregando nos braços uma mocinha desmaiada, vestida com uma combinação sensual que realça os seios.

            O mais conhecido e cultuado filme de Wood é “Plano 9 do espaço sideral” (EUA, 1959), que ele considerava a sua obra prima e o seu “Cidadão Kane”. De todos, é o mais desastrado, mas também o mais cultuado. Lugosi morreu no início das filmagens e será substituído por um ator que precisa esconder o rosto com um pano estendido no braço. Os discos voadores sobre Hollywood são manejados como marionetes e oscilam pra cima e pra baixo. Seus tripulantes têm o poder de ressuscitar mortos recentes. O substituto de Lugosi é um deles, assim como Vampira e Tor Johnson. A cabine de um avião é improvisada, parecendo um banheiro. Os diálogos são artificiais. O roteiro não fecha. Não se sabe o que os ETs desejam. Parece que apenas o reconhecimento de que existem pelos terráqueos. Não se sabe também exatamente como são derrotados.

            No entanto, o filme se tornou um clássico na categoria B, ou seja, de baixo orçamento.

 

https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/11/1303530-edgar-vianna-de-andrade-a-invencao-do-cinema.html

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 06 de novembro de 2024

A invenção do cinema

Edgar Vianna de Andrade

Por volta de 30 mil anos passados, os hominídeos, já na sua feição sapiens, começaram a desenhar e a pintar. A arte era bastante analítica, dando ideia de movimento. As sociedades neolíticas conferiram um traçado geométrico ao desenho e à pintura, conferindo-lhes formalismo. As diversas civilizações criaram imagens de acordo com sua visão de mundo. O renascimento, um dos primeiros momentos da globalização ocidental, inventou a perspectiva aérea combinada com a perspectiva linear. Ou seja, a noção de volume e de profundidade. Três dimensões em duas. Enganava-se o espaço e o apreciador.

Em 1827, a fotografia já tinha sido inventada. A imagem quer ganhar movimento de verdade. O primeiro passo para isso foi dado pelo suíço Rudolphe Töpffer, que criou a primeira história em quadrinhos, que se saiba até aqui. O personagem principal chamava-se Monsieur Jabot. O desenho era ainda tosco, com as legendas escritas ao pé dos quadros. Onde estava a novidade? Na ideia de sequência. Entre um quadrinho e outro, pressupunha-se outros, que não apareciam.

Muitos inventores estavam correndo para criar a imagem em movimento. Entre eles, Thomas Edison, George Eastman, W.K.L. Dickson, Louis Le Prince, Louis e Auguste Lumière, R. W. Paul, Georges Meliès, Francis Dublier, G. A. Smith, William Friese-Greene e Thomas Ince.

Em 1884, George Eastman inventou o filme de rolo em Nova Iorque. Na mesma década, Edison e W.K.L. Dickson criaram um modo de girar uma série de imagens estáticas numa caixa, dando a ilusão de movimento. Estava inventado o cinetoscópio. No fim da década de 1880, na Inglaterra, Le Prince patenteou um engenho bastante promissor para os primórdios da imagem em movimento. Georges Eastaman inventou o filme com furos nas margens, prendendo um rolo dele na câmera. Graças ao concurso desses homens todos, a fotografia em movimento foi inventada.

É muito comum sustentar-se que o primeiro filme da história foi criado pelos irmãos Lumière. A data oficialmente tomada para a história do cinema foi o dia 28 de dezembro de 1895, quando os irmãos exibiram suas experiências cinematográficas, entre elas o famoso filme num só plano “A chegada de um trem à estação de La Ciotat”. Em dois anos, o filme correu o mundo e assustou muita gente, por se supor tratar-se da verdade em movimento. Assistir a um filme exigiu uma grande aprendizagem, pois era uma nova linguagem técnica e artística. As três primeiras décadas do século XX foram cruciais para consolidar essa linguagem.

Embora não se possa negligenciar a importância dos Lumière, descobriu-se recentemente que o primeiro inventor a conferir movimento à fotografia foi Louis Aimé Augustin Le Prince. Em outubro de 1888, ele filmou imagens em movimento que originaram os filmes mais antigos por enquanto conhecidos. Foram “Cena no jardim Roundhay” (“Roundhay garden scene”) e “Cruzamento de trânsito Leeds Bridge” (“Traffic crossing Leeds Bridge”), usando uma câmera de lente única com uma película de papel. Só recentemente foi reconhecido o pioneirismo de Le Prince.

 

https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/11/1303844-edgar-vianna-de-andrade-roteiro-e-atuacao.html

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 20 de novembro de 2024

Roteiro e atuação

Edgar Vianna de Andrade

            Desde sua origem, cinema foi mais visto como entretenimento do que como arte. A locomotiva dos Irmãos Lumière valeu mais pelo susto causado no auditório do que pela inovação técnica que inaugurava uma nova arte. Claro que muitos diretores e estudiosos viram na fotografia em movimento um grande potencial artístico. E ele foi desenvolvido por vários artistas em vários países, criando estilos estéticos.

            Mas, no fim, prevaleceram os interesses comerciais de oferecer ao público um divertimento que se resume em valer-se de artistas e de roteiro. O cinema, assim, reduz-se ao teatro e à literatura. Se existe algum uso artístico da fotografia em movimento (da fotografia estática, pode existir com mais frequência), ele é quase despercebido. Se é frequente, o filme acaba não agradando.

            Assim, o cinema se traduziu num entretenimento em que a literatura (roteiro) e atuação (teatro) não precisam e não devem ser complexos. Entende-se perfeitamente a exigência da maioria que frequenta cinemas ou vai para a televisão em busca de filmes palatáveis. E não é só apenas o grande público, mas também o crítico de cinema, que também acaba comentando o roteiro e a atuação.

            Depois de ganhar o Osella de Ouro de Melhor Roteiro no Festival de Veneza, “Ainda estou aqui”, dirigido por Walter Salles, pareceu ser um filme convencional que aborda um tema polêmico nos dias de hoje: a trajetória do engenheiro Rubem Paiva depois de voltar ao Brasil, já tendo sido cassado como deputado federal pelo regime militar instalado em 1964. Polêmico porque o mundo e o Brasil estão polarizados entre democratas e autoritários. Os primeiros entendem que o regime militar chegou ao poder por um golpe e se manteve nele por uma ditadura. Os segundos fazem a apologia dele, dizendo que a intenção era estrangular o perigo do comunismo. O argumento talvez se sustentasse na época. Hoje não mais. E o filme mostra uma família comum de classe média. Como a maioria das famílias que frequenta o cinema.

            Baseado no livro de Marcelo Rubem Paiva com o mesmo título do filme, “Ainda estou aqui” não se resume ao excelente desempenho do elenco, tendo à frente Fernanda Torres, nem ao roteiro enxuto (não li o livro), merecendo destaque o trabalho da câmara. Na primeira parte do filme, ela se movimenta de maneira frenética, com closes dinâmicos, com aproximações e afastamentos, com luz e penumbra. Não apenas o roteiro fala de um momento de medo e ansiedade. O movimento da câmara reforça a fala e o silêncio.

            E, na segunda parte do filme, com o crime quase resolvido, a câmara passa a se movimentar de forma equilibrada, mostrando que os tempos mudaram.

            E o que me chamou a atenção, por fim, foi o interesse das pessoas pelo filme. Sei que a propaganda pela televisão ajudou muito. Mesmo assim, eu não esperava uma procura tão grande. Tive dificuldade de conseguir ingresso. Embora não recorrendo a cenas explícitas de tortura, como acontece em outros filmes, a sutileza com que a violência é apresentada atraiu a atenção de muita gente que não viveu nos anos de chumbo. A maioria nem sabe por alto o que aconteceu. Rubem Paiva teve um filho escritor que narrou sua trágica história. Imaginem os muitos que sofreram e apenas são lembrados pela família...

 

https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/12/1304203-edgar-vianna-de-andrade-o-primeiro-filme-sobre-frankenstein.html

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 04 de dezembro de 2024

O primeiro filme sobre Frankenstein

Edgar Vianna de Andrade

Temos entusiasmo e medo da ciência por se crer que ela ajudará a humanidade, mas, ao mesmo tempo, separou-se da religião e da ética. Todas as culturas desenvolvem ciência porque é necessário conhecer o mundo para viver nele. Os etólogos (estudiosos do comportamento animal) sustentam até que qualquer ser vivo, do uni ao pluricelular, precisa de alguma forma aprender a viver em seu meio. O conhecimento que as civilizações anteriores à atual globalização desenvolveram estava subordinado à religião e à ética. O saber dos seres vivos não vai além dos seus limites naturais. Uma ariranha nunca aprenderá a ser corrupta. No século XV e XVI, o processo de globalização, ou seja, de expansão do ocidente capitalista pelo mundo, já havia começado, mas havia ainda medo de uma ciência livre de freios religiosos e éticos. Nos seus escritos, Américo Vespúcio revela um excesso de conhecimento adquirido em várias viagens pelo “novo mundo”, mas alertava que havia limite ao saber.

Com René Descartes, a ciência se liberta da religião e da ética. O filme “O outro lado da nobreza” (1995) retrata bem o clima ainda reinante na Idade Moderna quanto ao corpo humano. Ele era sagrado e não podia ser mutilado por qualquer cirurgia. No filme, um médico toca no coração de um homem cujo peito estava aberto por ferimento de guerra. Os colegas se espantam com a ousadia do médico. Ele estava transgredindo o sagrado. Ele estava profanando o centro da vida. Esse médico se movimentava no ambiente cartesiano.

Mas a ambiguidade diante da ciência continuou depois da revolução científica do século XVII. As pessoas se dividiam entre idolatrar e temer a ciência. O romance gótico “Frankenstein ou o moderno Prometeu”, de Mary Shelley, externa esse medo. Para os apressados, o monstro criado pelo Dr. Frankenstein, que acabou por receber o nome do seu criador, enquadra-se no gênero “terror”, como todos os filmes a que ele deu origem. Considero-o ficção científica tanto quanto os filmes que ele originou. Um médico reúne partes de cadáveres humanos e monta um corpo que ganha vida com a energia elétrica dos raios. Ele encarna a própria ciência e os males que ela pode produzir. Ele tem boa índole inclusive. Era bom. Mas sente falta de pais, assim como uma criança gerada por espermatozoide de banco de esperma pode sentir. Ele se juga monstruoso, assim como uma criança vítima da talidomida ou da radiação nuclear. E tudo por causa da ciência. Ao ser destruído o monstro, a própria ciência é destruída. Vivemos esse dilema nos dias atuais com os frutos da genética, por exemplo.

Talvez nem a própria Mary Shelley tivesse consciência do alcance do seu livro, que se tornou famoso. Ela era uma pós-adolescente que escreveu o livro numa aposta de quatro pessoas, inclusive seu marido. Só ela levou a aposta a sério. Assim, nasceu um dos mais populares alertas quanto à ciência descontrolada. O mesmo pode-se afirmar de “O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, de Robert Louis Stenvenson, conhecido como “O médico e o monstro”, publicado depois do romance de Mary Shelley, na segunda metade do século XIX.

Ambos foram muito popularizados por uma série de filmes. O medo expresso pelos dois livros tornou-se apenas um bom tema para o cinema. O primeiro filme sobre a história do monstro criado pelo Dr. Frankenstein data de 1910. Ele foi dirigido por J. Searle Dawley para os Estúdios Edison, dos Estados Unidos. Como o cinema ainda não contava com muitos recursos técnicos, a história tomou os momentos mais significativos do livro e os levou ao filme de celuloide. Ele foi produzido em três dias em Nova York.

Nos seus 12:20 minutos, ele retrata o dr. Frankenstein viajando para estudar; ele já formado promovendo pesquisas; a criação do monstro; seu retorno para casa; seu casamento; a chegada da criatura à procura do criador; sua aparição à noiva e finalmente seu desaparecimento ao entrar num espelho.

Os créditos são divulgados no final. O principal nome é o de Mary Fuller, que começou no cinema em 1907. Em 1910, foi contratada para o papel da noiva do dr. Frankenstein. Ela atuou em mais de duzentos filmes e encerrou sua carreira em 1917, antes da fase áurea do cinema. Mary morreu em 1973 e se tornou bastante popular por atuar em “What happened to Mary”.

Mas a figura do monstro de Frankenstein só se popularizou mesmo com o filme “Frankenstein”, dirigido por James Whale em 1931. Ele abriu a porta para uma série de filmes desdobrando a figura do monstro, que, no filme de 1931, foi representado por Boris Karloff. Vindo do cinema mudo, o artista se imortalizou.

 

https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/12/1304488-edgar-vianna-de-andrade-primordios-da-comedia-romantica.html

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 18 de dezembro de 2024

Primórdios da comédia romântica

Edgar Vianna de Andrade

Alguns esboços de comédia romântica e da emancipação feminina no cinema podem ser encontrados nas origens da nova arte. No entanto, creio que nenhum outro filme da época foi mais explícito quanto “Eu não quero ser um homem” (no original, “Ich möchte kein mann sein”), do genial Ernst Lubitsch, de 1918. O cineasta ainda vivia na Alemanha, de onde se transferiria para os Estados Unidos na década de 1920, tornando-se um dos maiores cineastas de todos os tempos.

            Não sei se movimento passageiro ou progressivo, o feminismo devia olhar para esse filme de 45 minutos produzido há mais de um século, no último ano da Primeira Guerra Mundial. Lubitsch escalou a atriz Ossi Oswalda para o papel de mocinha rebelde. Oswalda e Pola Negri serão suas prediletas na fase alemã. Ambas figuraram em várias produções do diretor.

            O filme começa com a moça jogando e fumando entre homens. A criada da família a repreende por seus modos liberais e masculinos. No entanto, a criada experimenta o cigarro na sua solidão. Em casa, Ossi entorna um cálice de bebida. O pai a surpreende e a adverte. Longe de qualquer olhar, o pai faz o mesmo. Além de mostrar a emancipação feminina, já em curso naquele tempo, o filme mostra também a hipocrisia dos mais velhos. O fim da Belle Époque começou a liberar as mulheres.

            Para controlar a menina levada, sua mãe contrata um preceptor a fim de domar a filha e formar uma dama de sociedade. Curt Goetz faz o papel do professor autoritário. Oswalda se pergunta por que nasceu mulher. Ela gostaria de ser um homem para gozar de mais liberdade. Então, decide se travestir. Não se trata de transexualidade, mas de experimentar o papel masculino. É antigo o tema de mulher vestida de homem. Ele está presente na cultura popular e erudita. Vejam-se os casos de Joana D’Arc e do romance entre Diadorim e Riobaldo em “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa.

            Disfarçada de homem, Oswalda frequenta um bar superlotado de homens e mulheres de má reputação. Ela não convence o espectador de hoje quanto ao seu papel masculino. Lá, ela encontra seu professor e acaba se envolvendo amorosamente com ele. Em vários filmes de Lubitsch, os homens se beijam, mas não de forma erótica. Aqui, temos um homem já embriagado com uma mulher, também embriagada, que ele julga ser um homem de verdade. Pode-se recorrer à interpretação de que bêbado beija até cachorro. Trata-se de um caso de homossexualismo retratado com ousadia no longínquo ano de 1918, mas de forma tal que o público da época não censuraria. Afinal, ele está embriagado e sua masculinidade percebe uma mulher dentro de trajes femininos. O diretor trabalha bem o relacionamento. Goetz não sabe que o homem com quem troca carícias eróticas é uma mulher, mas o espectador sabe.

            Nos anos de 1950, Alfred Kinsey divulgou sua famosa escala de orientações sexuais com sete posições. No zero, está o exclusivamente heterossexual. No 6, está o exclusivamente homossexual. No meio, há várias combinações. Há situações em que o mais convicto heterossexual tem descuidos homossexuais, como na embriaguez, por exemplo. Ele fica vulnerável com outro heterossexual, trocando abraços e carícias. Lubitsch fugiu da crítica exatamente colocando dois homens nessa situação, sendo que um deles é uma mulher disfarçada.

            No filme, há ainda a antológica cena de homens sob a sacada de Ossi, desejando lhe fazer uma serenata. Com suas bengalas usadas como símbolo fálico, eles sugerem o que desejam com a moça. Por fim, ela e Goetz se enamoram. Ela não gostou do papel de homem. Cabe uma leitura conservadora também: “É bom ser homem por alguns momentos, mas é melhor ser mulher.”

 

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Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 31 de dezembro de 2024

Lenin – Trotsky – Stalin

Edgar Vianna de Andrade

Yakov Protazonov pode ter atuado como ator e ter dirigido muitos filmes na era do cinema mudo, mas o trabalho que o tornou conhecido foi, sem dúvida, “Aelita, a rainha de Marte”, de 1924. A princípio, o espectador pode pensar que se trata de uma comédia futurista. Ao assistir ao filme, depara-se com um drama, ou mais de um, vivido na construção do socialismo. A Rússia se recuperava ainda da revolução de 1917, do cerco promovido pelo ocidente (Cordão Sanitário) e da contrarrevolução dos russos brancos.

            Nesse contexto, Protazonov mistura realidade, fantasia, sonho e receios. Um cientista conceituado trabalha num projeto de construção de uma nave espacial. Sua ambição é chegar a Marte. No final, ele acaba sozinho, pois acredita que foi traído e mata sua esposa. A revolução não acabou com os dramas burgueses. Pelo contrário, eles duraram por todo o tempo da União Soviética. O filme traduz também um conflito entre o passado e o presente. Seu melhor amigo deixa a Rússia em nome do passado. Sonho ou realidade, a rainha de Marte descobre o cientista com um possante telescópio. Ele é flagrado beijando a mulher e, desde então, a rainha sonha com um beijo como aquele, esse pecado capitalista.

Sucede que, em Marte – sonho ou realidade –, a monarquia alcançou alto grau de desenvolvimento científico e tecnológico. Os prédios e as roupas são concebidos em desenhos construtivistas. A influência de “O gabinete do Dr. Caligari”, filme do alemão Robert Wiene, datado de 1919, é evidente. O sonho do cientista é trotskista. Ele acabara envolvido com uma revolução leninista para libertar trabalhadores em regime feudal e criar um estado socialista em Marte. Não é mais apenas a revolução mundial, como desejava Trotsky, mas a revolução interplanetária. A semelhança com “Metropolis”, de Fritz Lang, também é notória, muito embora este filme date de 1926.

Parece que a atmosfera da época contamina filmes do Japão aos Estados Unidos. Não há dúvida a este respeito quanto à linguagem do cinema. O mundo capitalista influenciou muito o cinema soviético, embora ele ganhasse vida própria. Da mesma forma, cineastas soviéticos ou influenciaram o cinema ocidental ou foram mesmo trabalhar nos Estados Unidos, por mais desconforto que se sentissem na meca do capital.

Nesse clima de sonho e realidade, o cientista está de volta à Terra ou dela nunca se afastou. Está de volta à Rússia socialista ou jamais a deixou, a não ser em sonho. Ele assenta os pés no chão, reconcilia-se com a mulher, que, à moda burguesa, sempre lhe foi fiel. Ele imaginou coisas. Olha para seu país em construção e faz uma opção stalinista de permanecer nele. Protazonov antecipa J. Posadas, o marxista espacial com sua revolução comunista promovida por seres vindos de outro planeta.

 

MORTO QUE VIVE

  Edgar Vianna de Andrade Michael Curtiz  nasceu em Budapeste, numa família judaica, com o nome de Manó Kertész Kaminer . Assim como Ernst...