Arthur Soffiati
Há muitos anos, adotamos um cão da raça dobermann já idoso. Era muito manso e amoroso, contrariando o mito que pairava sobre esta raça. Ele tinha uma longa história de sofrimento, tendo passado de mão em mão até vir morar conosco. Certa vez, recebemos a visita de uma senhora. Ela teve medo do animal, mas ele a cheirou e abanou o rabo. A senhora acabou descobrindo que o cão já havia passado por sua fazenda anos antes. O animal a reconhecera porque qualquer animal tem memória, ainda que seja apenas corporal.
No humano, a memória é consciente. Lembro e sei que lembro. Nem todos estão preocupados com suas memórias. Um dos pilares da cultura global é viver o dia de hoje, num presentismo que nos leva a desprezar nossa história, ainda mais num universo embebido nas redes sociais. Faz tempo, li um romance de cujo título me esqueci. Foi o livro de estreia de uma escritora criada na década de 1990. Essa foi a década crucial na transição do mundo analógico para o mundo digital. As memórias da autora estavam relacionadas a shoppings, séries de televisão, filmes de época, música pop etc. Enfim, a ambientes fechados e a experiências com o mundo virtual.
Mesmo dentro da era digital, percebo mudanças que criam um mundo cada vez mais artificial. Não posso condenar aqueles que cresceram nesse mundo e que não se preocupam com a história de suas vidas. Posso apenas sustentar que as memórias de uma pessoa que se formou num ambiente analógico parecem ser mais humanas porque mais corporais e mais vividas graças à velocidade mais reduzida das transformações.
Meu exemplo de memorialismo é Proust, com “Em busca do tempo perdido”. Um acontecimento trivial em sua vida, abre uma caixa da qual saem as suas memórias. Ele não escreve um romance memorialista, mas memórias de forma romanceada. Ele não tenta completar a frase preenchendo lacunas, como a gente aprendia na escola. Suas memórias são incompletas. Mesmo assim, escreveu sete volumes com elas.
Sem pretender comparações, Renata Silva também tratou suas memórias de forma fragmentária, sem a pretensão de cobrir toda sua história de vida. Daí o título do seu livro: “Memórias avulsas” (Maringá: Viseu, 2024). Renata nasceu na década de 1970, já no fim do mundo analógico. Sua infância em Valença foi trazida para as páginas de seu livro. Nascer e viver num mundo analógico não é garantia de qualidade. A maioria das pessoas têm suas memórias, mas nem sempre consegue expressá-las por escrito. Renata, contudo, escreve muito bem. Não apenas. Ela é uma pessoa sensível e intimista. Julguei, por bom tempo, que esses traços caracterizassem o universo feminino, mas homens também podem se expressar de forma sensível. Seja como for, Renata sente o mundo como mulher.
Ela escreve que “de águas lodosas é possível encontrar a vida na sua forma mais límpida (...) a pureza está mesmo no universo das sensações, dos sentimentos instáveis e (...) o sentido do meu nome tem tudo a ver com o renascer das expressões, dos sentimentos, do pulsar, porque viver à flor da pele é o que há”.
A infância não morreu nela, como acontece com a maioria das pessoas: “a meninice que insiste em fazer morada em mim gera grandes desconfortos”. Mas gera também seu mundo particular ou o mundo em que viveu traduzido por sua sensibilidade. Ela verte o mundo que a cerca para seu mundo singular de modo a tocar pessoas que também viveram experiências semelhantes e se esqueceram delas. Ou não sabem como expressá-las: “... éramos absorvidos pela atmosfera quente das tardes amareladas, cortadas pelos ziguezagues das libélulas”. Esses extraordinários insetos estão sendo expulsos do nosso cotidiano, tornado nossa vida mais pobre.
E Renata se encanta com o mundo ao exclamar que “O admirável no fantástico é que ele é real e, por isso, perturbador.” Embora nascido três décadas antes de Renata, sinto seu mundo e me identifico com ele. A realidade, então, entrava em nós pelos olhos e ouvidos, mas também pelos pés e mãos, nariz e boca. Ela se lembra não apenas do que viu e ouviu, mas também das sensações tácteis, dos odores e sabores, traduzindo essas informações para seu mundo singular. “Eu sempre gostei de estar comigo mesma (...) eu abrigo vários eus (...) agrupo tudo que é verde, que é semente, broto, raiz, tudo que viceja.” Renata tem um universo próprio, e traduz para ele as vivências guardadas ao longo de sua trajetória. Esse mundo próprio, essa sensibilidade à flor da pele também se traduzem em poesia. Renata é poeta, é humana, é bicho, é planta, é terra, é água, é ar.
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