Arthur Soffiati
No final da vida, Arnold Toynbee
acreditava que uma civilização nasce de um sonho, de um desejo de elevação
espiritual de um membro seu ou de toda a comunidade. Essa concepção era bem
contrária a que ele formulara antes: as civilizações se confundem com
violência. Há muito sangue em suas origens e em toda a sua trajetória. Dirão os
simplistas que o homem é violento por natureza. Admitamos que sim, que ele, em
seus primórdios, era como um felino, que precisava matar para comer. Que
precisava lutar contra integrantes de outros grupos humanos por territórios
necessários à sua sobrevivência. Perto da guerra da Síria, para só tomar um
conflito atual, essas escaramuças paleolíticas eram insignificantes.
Com a invenção da agricultura e do
pastoreio, passo decisivo para as primeiras civilizações, os conflitos
tornaram-se mais mortíferos. Os povos sedentarizados pela domesticação de
plantas e animais lutavam contra outros nas mesmas condições e contra aqueles
que continuaram extraindo seu alimento da natureza. As armas se desenvolveram
com o nascimento das civilizações. O próprio Toynbee mostrou o papel das
guerras para as civilizações no livro “Guerra e civilização”. Ele mesmo ficou
chocado com as representações visuais de Eanatum, rei de Lagash, contra a
cidade de Umma, na Suméria, e de Naran-Sin, de Acad, contra os povos da
montanha. Ele condenou como imoral o saque do fundo de Delos por Atenas para se
tornar a capital grega da cultura. O fundo tinha por finalidade fornecer
recursos para a defesa do mundo grego contra os ataques persas. Um professor
meu no curso de história dizia que o roubo do fundo por Atenas tinha um bom
propósito: desenvolver a cultura. Valeu a pena. Esse professor se dizia
marxista.
Mas o sangue não escorre apenas dos
corpos dos inimigos, como também daqueles inimigos que foram capturados e
escravizados. Esparta se transformou numa verdadeira máquina de guerra por ter
vencido e escravizado outros povos da península do Peloponeso. A vigilância
sobre eles exigiu dos espartanos um regime militarista. A construção das
pirâmides do Egito implicou na morte de muitos egípcios pobres. O sangue foi a
argamassa de muitas obras de arte, sobretudo urbanísticas e arquitetônicas.
Mas Toynbee, como muitas outras
pessoas, acabam reconhecendo a beleza de obras culturais que, para serem
produzidas, exigiram destruição da natureza, exploração da população,
escravização e mortes. Gosto da civilização chinesa. Sua cultura tradicional
transpira paz e tranquilidade. Contudo, por trás dessa serenidade, pulsa a
violência. E, em todas as civilizações, emergem vozes defendendo a paz, a
reconciliação, o perdão, a elevação espiritual.
O budismo se levantou contra o
sistema hinduísta de castas e se tornou uma religião oficial da China, do Japão
e de outros países do oriente. Hoje, ele prega a felicidade individual e a
prosperidade material. O jainismo manteve-se na Índia, procurando uma
reconciliação de humanos e natureza, sobretudo animais. Exigiu sacrifícios
humanos para a construção de seus templos. O budismo tibetano também. Não
sacrificava uma minhoca por ser uma criatura com alma. No entanto, os palácios
e os templos custaram sacrifícios e mortes. O taoísmo é um dos protestos mais
sublimes contra a destruição da natureza, contra a exploração dos humanos e a
favor da paz. No entanto, houve imperadores e guerreiros taoístas.
No mundo romano, a dor
espiritual causada pelo choque de culturas levou pensadores a refletir sobre o
mundo. Pirron concluiu que não existe verdade metafísica. Cada povo cria a sua
religião e acredita nela. Nenhuma, porém, consegue demonstrar que detém a
verdade. Sejamos céticos, portanto. Epicuro chegou à conclusão de que não se
deve dar murros em ponta de faca. A vida é só uma. A amizade, portanto, é o
maior bem que se pode cultivar. Se não podemos convencer governantes e
governados quanto à inutilidade de um mundo de conflitos, que os pacifistas
construam seu próprio mundo em retiros. Que criem jardins de recolhimento. A
mais sublime concepção oriunda do belicismo de Alexandre foi o estoicismo,
fundado por Zenon. Devemos atravessar a vida sem grandes paixões. Nada de
orgulho pelo eu fizemos. Suportemos a dor. Morramos com dignidade. Não sem
razão, o estoicismo foi um dos principais alvos do cristianismo. Ele era
entendido pelos cristãos como uma postura passiva e pessimista diante do mundo.
Mas não havia o que temer do estoicismo. Ele não conquistou as massas como o
cristianismo. Ficou restrito a homens de letras, a pensadores, a filósofos. O
único livro de autoajuda que me sensibilizada é “Meditações”, do imperador
romano Marco Aurélio. Ele não escreveu para os outros, mas para si mesmo, como
um manual de como viver bem. No entanto, como imperador, ele cumpriu
estoicamente seu dever de conquistar e matar.
Violência, exploração,
escravização e morte são a argamassa das civilizações e eu, como historiador,
não sei o que fazer com tanto sofrimento. As maravilhas que me encantam podiam
me encantar mais se não me viesse à mente toda a dor que elas provocaram. E
terá valido tanto sofrimento para a criação de obras que estão se deteriorando
pela ação do tempo de mãos humanas? De todas as civilizações, nenhuma superou a
ocidental a partir do século XV da era cristã.
Já em seu período de formação, a
civilização ocidental cristã tentou se expandir. A primeira onda expansionista
foi promovida pelos escandinavos entre os séculos VIII e
XI. Tendo como base o norte da Europa, esses povos ligados por uma cultura
própria bastante forte e ainda não muito cristianizados conquistaram terras
dentro do próprio continente europeu, na Rússia e na África, chegando mesmo à
América do Norte, onde instalaram colônias na Groenlândia e no Canadá. Houve
guerra. Como ainda não havia arma de fogo, eles foram expulsos da América pelos
povos nativos.
A segunda onda expansionista
processou-se com as Cruzadas, entre os séculos XI e XIII, em direção ao Oriente
Médio, ocupado pelos muçulmanos. Pretexto: libertar o Santo Sepulcro do domínio
islâmico, o que significava um grande apelo popular. Motivo real: romper o
monopólio do comércio oriental pelo Islã. Veneza foi a grande beneficiária do
movimento cruzático. Se os cristãos conseguissem manter seu domínio na
Palestina, o caminho para a Índia poderia ter sido alcançado por terra. Houve
guerras e os europeus perderam.
A terceira tentativa começou em 1402
com o início da conquista do arquipélago das Canárias pelo espanhóis. As ilhas
foram secularmente colonizadas pelos guanchos, povo em fase neolítica que
alcançou as ilhas a partir do norte da África. Embora não contando com as armas
europeias, os guanchos resistiram por quase um século aos invasores espanhóis.
Essa luta continha todos os ingredientes das conquistas europeias posteriores:
crença na superioridade do europeu sobre a natureza e sobre outras culturas,
monocultura, grande propriedade e escravização de outros povos.
Os portugueses iniciaram sua
expansão em 1415, com a conquista de Ceuta no norte da África. Assim, seguindo
rotas diferentes, espanhóis e portugueses abriram caminho para a dominação
europeia do mundo e para a construção da maior globalização conhecida pela
humanidade. Houve muita violência física e simbólica. Tomando apenas o caso de
Vasco da Gama como exemplo, ele castigava povos de outras culturas lhes
cortando orelhas, narizes, mão e pés. Afundou um navio repleto de homens,
mulheres e crianças que voltavam de Meca. Por outro lado, a imposição do
cristianismo também violentava as outras culturas. França, Holanda e Inglaterra
lutaram contra espanhóis e portugueses para tomar suas conquistas. Então, havia
violência contra povos não europeus e violência entre os europeus.
Poucos contemporâneos dessa primeira
fase da globalização ocidental entendiam como violentos esses métodos. Bartolomeu
de las Casas condenou o genocídio dos nativos americanos praticado pelos
espanhóis. No seu relativismo, Montaigne reconheceu que as culturas diferentes
da cristã ocidental deveriam ser respeitadas. Os jesuítas protegiam os
indígenas dos escravistas, mas procuravam cristianizá-los para inseri-los na
economia de mercado europeu. Era natural que povos com cultura distinta da
europeia adotassem a cultura imposta apenas na superfície e continuassem a
praticar a sua. Manoel da Nóbrega queixou-se que nativos brasileiros
frequentavam a missa, comungavam, iam para sua aldeia e participavam de rituais
antropofágicos. Esse dualismo cultural será observado em vários lugares. E
todas as nações europeias foram violentas.
Tomo dois exemplos que parecem
incompatíveis, mas não são. O bispo José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho,
no século XVIII, contestava Montesquieu com sua própria argumentação. O
pensador francês afirmava que a superioridade dos europeus residia no seu
espírito associativista e na sua organização social regida por leis. Azeredo
Coutinho contestava o pensador sustentando que plantas, animais e humanos
tropicais eram superiores ao europeu porque arrostavam as ameaças de forma
solitária. No entanto, entendia que os povos não europeus deveriam ser
civilizados pela cultura europeia. Ou seja, que todos eles deveriam ser
europeizados. Mas defendia caminhos diversos para a aculturação. Os nativos da
América deveriam ser incorporados ao mundo europeu pelo desmatamento e pela
pesca, atividades que já conheciam. Os africanos, por seu turno, deveriam ser
europeizados pela escravização. Azeredo Coutinho era considerado um intelectual
no mundo europeu periférico.
O segundo exemplo vem da posição de
Marx sobre a rebelião dos sipaios sob a dominação britânica na Índia. Os
sipaios eram soldados indianos que serviam no exército da Companhia das Índias
Orientais sob a ordens de oficiais britânicos. A rebelião desses soldados
expressava o descontentamento dos indianos em geral com a dominação. Ouvi de
professores conservadores, em Campos, que os sipaios cortavam os seios de
mulheres ocidentais em rodela. A rebelião foi massacrada pelos britânicos com o
apoio de Marx. O pensador escreveu que só se consegue atingir o comunismo
partindo de um contexto ocidental ou ocidentalizado e que a burguesia prepara o
terreno para o comunismo ao construir uma base ocidental. Marx entendia que os
indianos eram ainda muito atrasados por adorarem macacos e outros animais. O
exército britânico deveria mesmo massacrar os revoltosos. Embora perdão apenas
não baste, o papa vem condenando os excessos cometidos por cristãos no passado.
Os marxistas estariam dispostos a pedir perdão em nome de Marx?
Novamente, vem minha
pergunta: como me posiciono diante de tanta incompreensão, de tanta injustiça e
de tanta violência cometida no passado por todas as civilizações e
principalmente pelo ocidente? O ocidente demonstrou desprezo pelas culturas de
outros povos, com raras exceções. Escravizou outros povos com o apoio de quase
todos, inclusive da Igreja. Até mesmo negros escravizados chegaram a praticar a
escravização. Os europeus forçaram os povos pioneiros, em todo o mundo, a
abandonar suas culturas ancestrais em nome da cultura ocidental. Até mesmo
culturas resistentes, como a japonesa, a chinesa, a hinduísta e a islâmica
converteram-se ao ocidente de alguma forma.
Hoje,
num mundo globalizado pelo ocidente, os próprios dominados assumiram posturas
ocidentais. O governo chinês sufoca culturas diferentes dentro do seu domínio
político, como nos casos do Tibete, dos Hui e Iugures. Dentro da África, as
pré-ocidentais guerras de etnias ganharam violência inaudita, como no caso da
guerra de Ruanda. Lembro o livro “Floresta é o nome do mundo”, de Ursula K. Le
Guin. Nele, os humanos invadem um planeta, depois de destruir a Terra, habitado
por um povo pacífico que desconhecia a guerra e cultuava as florestas. Os
humanos começaram a destruir as florestas, a estuprar as fêmeas (vistas como
animais) e a matar os machos. Os nativos do planeta aprenderam a ser violentos
com os terráqueos e passaram a atacá-los.
Todos
nós, hoje, somos herdeiros de um mundo preconceituoso, escravizador e violento.
Portugal vive atualmente mais um momento de questionamento sobre seu passado
colonial. A morte recente de Marcelino da Mata reabriu a ferida. Nascido em
Guiné-Bissau, ele lutou ao lado dos portugueses contra a descolonização e
cometeu muitos crimes. Ele foi condecorado como um dos maiores heróis de
guerra. Para seus inimigos, o vírus sars-cov 2 praticou justiça ao matá-lo. Por
esses dias, li uma reportagem sobre a matança praticada por jovens moçambicanos
que se intitulam guerreiros do Estado Islâmico na província de Cabo Delgado,
extremo norte de Moçambique. Especialistas dizem se tratar de uma pseudo-guerra
religiosa, sendo, na verdade, resultado da ausência de Estado. Logo apareceram
saudosos do colonialismo defendendo o papel exercido por Portugal.
O
que fazer com o passado do ocidente? O que fazer com o passado dos povos
ocidentalizados? Existe uma linha que deseja a desglobalização, com os países
voltando ao que eram antes da expansão europeia. Esta posição é defendida por
ultraconservadores e reacionários, como Olavo de Carvalho e Ernesto Araújo,
saudosos de um cristianismo católico medieval (o termo não me agrada). Desglobalizar
a esse ponto significa devolver o Brasil aos povos pioneiros. Além de ser algo
inviável, trata-se de uma contradição. A maioria entende que a globalização é
irreversível, mesmo reconhecendo todos os seus males. Japão, China e Índia não
querem voltar ao estado em que existiam antes da dominação ocidental. Basta
atentar para a vitória de Nehru sobre as ideias de Gandhi. Existe ainda a
proposta promissora de Edgar Morin sobre a desglobalização parcial. Há um
excesso de globalização. Os países podiam promover uma desglobalização parcial
de seus países.
Mas
resta ainda o peso do passado. Hoje, condenamos a opressão sofrida pelas
mulheres, algo que ainda está muito presente. Condenamos a escravização de
africanos e reconhecemos a dívida que existe em relação a negros pobres e
ricos. Condenamos o extermínio de povos pioneiros e a expropriação de suas
terras, embora as poucas nações pioneiras que ainda existem já estejam bastante
aculturadas e continuem a sofrer ameaças de perdas que vão das terras à vida.
Não podemos apagar o passado. Hoje, reconhecemos que o diferente do europeu é
humano. Mas ainda existem os defensores da supremacia branca. Reconhecemos as
atrocidades cometidas pelas religiões, sobretudo as monoteístas. Mas ainda
existem aqueles que consideram a sua religião como superior as outras e negam a
ciência.
Constitui-se
agora um novo sujeito sistematicamente massacrado: a natureza. Ela sofreu
agressões de todas as civilizações, mas nenhuma foi e é mais agressiva que a
ocidental globalizada. Os humanistas, que defendem os direitos da mulher, dos
negros, dos pobres e dos inúmeros gêneros hoje reconhecidos, ainda continuam
com uma visão triunfalista sobre a natureza. Condenamos o passado, embora não
possamos regressar no tempo e mudá-lo, mas cultivamos também as nossas
crueldades. Somos individualistas, imediatistas e consumistas. Em momentos de
crise global, como o que vivemos, adotamos a postura mesquinha do nacionalismo.
E estamos perdendo a integridade. Sentimos vergonha da nossa postura, mas não a
mudamos.
Reconhecemos
hoje as injustiças e as violências cometidas no passado. Não podemos interferir
nele, mas podemos combater o que dele chegou até nós. Podemos evitar novas
injustiças e crueldades. Mas devemos conhecer a realidade em que vivemos e
tomar ciência de que se trata de um estrutura gigantesca e resistente contra a
qual devemos travar luta sem trégua. Acima de tudo, devemos também cultivar a
capacidade de compreender e trabalhar para promover mudanças sempre
reconhecendo nossos limites. As gerações futuras também nos julgarão.
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 03, 10 e
17 de abril de 2021
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