domingo, 4 de julho de 2021

RETORNO À ILHA DO MEL

 Arthur Soffiati

Conheci a Ilha do Mel em 1955. Meu pai era militar da Infantaria e foi designado para substituir o comandante do Forte Nossa Senhora dos Prazeres em suas férias. Consegui lembrar do ano em que passei um mês largado na vida, naquela ilha paradisíaca, graças a uma marchinha de carnaval. “Foi numa casca de banana que eu pisei...”. Ela foi lançada em 1955. Vivi uma vida inteira em um mês aos oito anos de idade. Lembro de um soldado que cantava a marchinha no forte.

Acabo de ler a entrevista de uma psicóloga dizendo que criança precisa ficar à toa. Fiquei à toa por nove anos. Meu pai não me mandou para a escola aos sete anos, como era comum naquele tempo. Ele achava que a família ensinava mais que a escola. Com ele, aprendi a ler e escrever em letra de forma. Minha mãe se curvava aos desejos dele. Se não fosse minha avó paterna, eu teria crescido sem passar por escolas e seria o que já sou: autodidata.

Ilha do Mel, que lugar mágico! O forte foi erguido entre 1767 e 1769, na administração do poderoso Marquês de Pombal. Hoje, sua construção consumiria uns dez anos, desviaria uma fortuna dos cofres públicos e ruiria em pouco tempo. A fortaleza fazia parte da política de defesa de Pombal, no meu entender, o administrador que concebeu um plano sólido para o Império Português, que se estendia do Brasil à Indonésia, passando pela África, Índia e China. Não deu certo.

É prazeroso me iludir, imaginando que o marquês tenha construído o forte para que eu vivesse o mês mais feliz da minha vida. Eu sabia ler e escrever, mas nada lia e escrevia. Eu não tinha planos para o futuro e, por isso, não ficava ansioso. Eu brincava e me divertia. Ainda não tinha amores platônicos por meninas mais velhas que eu. Portanto, não sofria com o desprezo delas. Por um mês, aquela ilha foi o meu universo.

No centro do terreno, ficava a sede do forte. A luz para os arredores era gerada pela unidade militar, que devia ter um comandante, um sargento, um cabo e dois soldados, todos sempre de calção de banho e descalços, como convém ao mais disciplinado militar que serve perto da praia. Meu pai era um comandante muito liberal, dando ele próprio o exemplo de como um militar deve se trajar numa praia. E aquela não era uma simples praia. Era a mais bela praia numa ilha perdida.

 

Fachada do Forte

No alto do forte, canhões do período colonial defendiam a Baía de Paranaguá de um ataque inimigo. Não havia mais tanto ouro para saquear. Mas novos inimigos podiam atacar, como a Alemanha de Hitler, por exemplo. No alto do morro do forte, havia uma bateria de quatro canhões 155 mm, com que ensaiei uma defesa da Barra da Tijuca em 1967, prestando serviço militar. Para chegar aos canhões, era preciso subir uma trilha proibida para menores sem a companhia de um adulto. Meu pai me levou lá apenas uma vez.

Mas o meu forte se restringia à parte baixa. De suas muralhas, eu contemplava, respirava e degustava o mar infinito, apenas interrompido pela Ilha das Peças. As outras ilhotas eram contornadas pelo meu olhar. Minha incumbência diária era buscar o almoço e o jantar numa casa adjacente ao forte. A comida era feita por uma senhora. Para tanto, eu descia uma escada de madeira situada no lado direito da muralha, cruzava um riacho com água vermelha e chegava à casa. Aquela água vermelha, como sangue aguado, causou-me forte impressão.

Depois das férias do nada em 1955, voltei à Ilha do Mel em 1974 com meus pais. Não fomos ao forte, muito distante e ainda quase inacessível para viajantes com pouco tempo. Já havia um povoado ao sul da ilha meridional. Fomos à ilha num barco, tiramos uma foto e voltamos a Paranaguá no mesmo barco. Não valeu a visita.

Agora, em 2016, 42 anos depois da segunda visita, minha mulher e eu passamos dois dias na ilha. Retornei ao forte, hoje administrado pelo IPHAN. Tudo está lá: as masmorras, as muralhas, a casa central, as dependências laterais, os canhões coloniais, os canhões no topo do morro, mas a alma do forte expirou. Não sei para onde foi. Dela, ficou a lembrança no meu coração. Agora, existem dois núcleos habitacionais. A ilha continua linda com suas colinas ao centro, descendo suave ou abruptamente até o mar, permitindo uma ligação contínua entre a mata atlântica e os manguezais.

 

Revisitando o Forte

A ilha tem o formato de duas ilhas ligadas por um istmo. O forte fica na parte norte, protegida por uma Estação Ecológica. A parte sul é protegida por um Parque cuja zona mais aberta abriga várias pousadas. Não sei se voltarei à ilha. Meu desejo agora é caminhar na sua orla interna e conhecer a Ilha das Peças. Hoje, guardo as memórias da minha infância na ilha em meu coração. O passado passou. A alma da ilha é outra, encarnada em outro corpo. 

                                                                                           


                 Mata na orla da Ilha do Mel

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