Comecei
a publicar crítica de cinema na Folha da Manhã em 2005. Antes, eu escrevia
eventualmente. A partir de 2005, meu compromisso com a crítica foi semanal. Não
foi uma colaboração contínua. Houve algumas interrupções. Hoje, os textos
figuram quinzenalmente. Em 2024, publiquei ao todo 26 críticas. Deixei de acompanhar
os filmes lançados nos cinemas porque eles não têm me estimulado. Fiz uma
espécie de divisão de trabalho: Filipe Fernandes, com quem me revezo na crítica,
fica com o cinema e eu fico mais livre para comentar filmes em cartaz ou não. Reuni
tudo o que escrevi sobre cinema em 2024 para alguém que tenha possível interesse
em ler algum texto.
Arthur Soffiati, que se assina Edgar Vianna de
Andrade
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 03 de janeiro
de 2024
Napoleão
Edgar Vianna de Andrade
Aluysio
Abreu Barbosa, Felipe Fernandes e Edmundo Siqueira já comentaram “Napoleão”,
mais recente filme de Ridley Scott, apontando seus acertos e desacertos. Concordo
com eles. Não querendo repeti-los, noto que o grande e polêmico general francês
exige tanto do cinema quanto um jogo de futebol, que os diretores costumam
evitar pelas dificuldades de filmar. Uma biografia cinematográfica de Napoleão
é um “tour de force” para quem faz o seu papel e para um diretor. Por isso,
talvez, aspectos da vida de Napoleão figurem em seus filmes, mas não a sua
biografia.
Comentarei
uma tentativa anterior de biografar Napoleão na telona. Trata-se de “Napoleão”,
dirigido pelo francês Abel Gance em 1927. Ele foi lançado no ano em que o
cinema começou a ganhar voz com “O cantor de jazz”, dirigido por Alan Crosland. Gance já era um renomado diretor. Em 1911,
estreou com “O dique” e
demonstrou ser um grande cineasta com “Eu acuso”, de 1919, e com “A roda”, de
1923.
“Napoleão”
tem quase quatro horas de duração divididas em duas partes. Produzir um filme
tão longo em celuloide era caro na época. Uma lata de filme continha cerca de
13 minutos. Se levarmos em conta as perdas e a edição, mais de 20 latas foram
usadas no filme. Gance era um inventor, e a arte cinematográfica lhe deve
muito. Ele era um admirador da Revolução Francesa, no geral, e de Napoleão, em
particular.
O filme começa com
Napoleão ainda criança na escola já demonstrando seu sangue frio e sua
liderança numa batalha de bolas de neve. Sua identificação com a águia. Sua
altivez diante de professores e padres. É uma parte longa do filme seguida por
outra parte longa, mostrando Napoleão retornando à Córsega. De volta, ele comanda
o cerco de Toulon com frieza e inteligência. A primeira parte se encerra nesse
ponto.
A
segunda parte mostra a Revolução Francesa e suas importantes personagens. Gance
se inspira no quadro de David para representar a morte de Marat. Danton,
Robespierre e Saint-Juste entram em cena e logo saem dela guilhotinados. Gance
mostrou bem a era da guilhotina no período mais radical da revolução. Napoleão
escapa dela por ação de amigos e admiradores. Volta à cena para vencer batalhas
e se aproximar de Josefina, com quem se casa. A segunda parte é consumida pela
campanha da Itália, em que Napoleão transforma um exército de esfarrapados e
esfomeados no melhor exército do mundo. Mc Luhan parece ter razão em afirmar
que Napoleão contribuiu para uniformizar a modernidade. Ele amarrava varas nos
tornozelos dos soldados para sincronizar o passo de todos.
O
filme é também incompleto. As campanhas do Egito e da Rússia não são mostradas,
assim como as duas derrotas do general frente aos quatro países que lhe
ofereceram resistência (Rússia, Prússia, Áustria e Inglaterra). Aos olhos de
Gance, Napoleão é um lídimo representante dos ideais revolucionários de 1789. O
general não apenas é um herói nacional como um herói revolucionário.
Em
preto-e-branco, o filme tem matizes azuis, sépia e avermelhados, como era comum
nas películas dessa fase. O diretor amplia paisagens e figurantes com o uso de
espelhos. Hoje, há computadores que permitem essa façanha. Pensemos, contudo,
nos anos de 1920. Gance era um experimentalista. O final é magistral, com a
mesma cena sendo mostrada em três planos. As tropas marcham à direita, ao
centro e à esquerda. Trata-se da mesma cena e de cenas diferentes. Assim, o
diretor não apenas amplia as tomadas como cria a sensação de simultaneidade.
Gance
não se saiu bem na era do cinema falado. Ele refilmou “Napoleão” em 1935: (“Napoléon Bonaparte”) e fez um documentário
com o título de “Quatorze juillet” (1953). Em 1960, lançou
“Austerlitz”. “Valmy”, de 1967, ficou incompleto. Destinava-se à televisão e
foi concluído por Jean Chérasse. Por fim, voltou a seu herói em 1971, com “Bonaparte et la révolution”. Este último
filme eclipsou o de 1927, embora seja menos criativo. A culpa não é dos
diretores, mas do personagem, um dos mais complexos da história. Perdoemos as
lacunas e os erros dos cineastas.
https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/01/1296144-tumulo-vazio.html
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 17 de janeiro de 2024
Túmulo vazio
Edgar Vianna de Andrade
Você se lembra do filme “O dia em
que a Terra parou”, lançado em 1951 e refilmado posteriormente? Lembra de
“Helena de Troia”, de 1955? Ou do famoso “Amor, sublime amor”, mais conhecido
por “West side story”, seu nome original? De “A noviça rebelde” (1965), tenho
certeza de que se lembra. Outros mais: “O enigma de Andrômeda” (1972) e
“Jornada nas estrelas” (1979), talvez. Todos eles têm como diretor Robert Wise,
que começou sua carreira no cinema como carregador de latas de filmes. Ganhou
um Oscar como montador de “Cidadão Kane”, de Orson Welles, um dos mais
cultuados filmes de todos os tempos.
Wise começou modestamente como
diretor em meados de 1940. Mas, desde o início de sua carreira, a marca de
mestre está registrada indelevelmente. Fiz esta constatação ao assistir a
“Túmulo vazio” (“The body snatcher”), de 1945. O filme se inspira na novela “O
ladrão de cadáveres”, do famoso Robert Louis Stevenson, cuja obra mais
conhecida é “O médico e o monstro”. Dentre todos os cientistas, o médico é
identificado pelas pessoas como aquele que lida com a vida (prolongando-a o
mais possível) e com a morte (encarando-a como natural). Para compreender os
segredos da vida, o médico tem de dissecar cadáveres. O primeiro alerta quanto
aos perigos da ciência foi escrito por uma pós-adolescente colocando um médico como
personagem central. Falamos de “Frankenstein ou o Prometeu moderno”, romance
de Mary Shelley publicado em 1818.
Frankenstein é um médico que constrói um monstro com pedaços de cadáveres que
rouba em cemitérios.
A obra mais famosa de Stevenson é “O
médico e o monstro”, de 1886. Dr. Jekyll é um conceituado médico que faz
experiências em si mesmo e se transforma em Mr. Hyde nas horas vagas, sendo um
monstro sanguinário. Thomas Mann, o grande romancista alemão, parece não
simpatizar muito com os médicos. Por mais que admita o conhecimento deles,
insinua que a intimidade com a vida e a morte os torna frios. No famoso romance
“A montanha mágica”, de 1924, Thomas Mann, seu autor, retrata o Dr. Berghof como um médico acima do bem e do mal,
falando da vida e da morte com frieza. E na novela “O cisne negro”, do mesmo
Mann, o que parecia o retorno de menstruação numa mulher de meia idade
apaixonada por um jovem, é, na verdade, manifestação de um câncer mortal aos
olhos dos médicos.
Em “The body
snatcher”, a face assassina do médico inescrupuloso de passado sombrio é um
homem rude que rouba cadáveres para vender. Na falta deles, o ladrão passa a
assassinar pessoas. Ao médico, não importa a procedência dos corpos que ele
compra para seus estudos e suas aulas. O papel de ladrão de cadáveres é
magnificamente representado pelo eterno Boris Karloff, que trabalha ao lado de
Bela Lugosi, em papel bastante apagado. Wise cria um clima gótico no filme. Em
preto-e-branco, ele se vale de pouca luz, muitas sombras e insinuações. Numa
cena em que o ladrão mata uma vítima, vê-se um gato assustado. Em outra, uma
carruagem mergulha na escuridão, ouvindo-se um grito em seguida. Wise filma bem
desde o princípio de sua carreira.
Não se trata de um filme que se possa
rigorosamente inserir no gênero “terror”. Não há recurso ao sobrenatural, como
também não acontece em “O médico e o monstro”. A história é lúgubre, macabra,
fúnebre. Vive-se no submundo sombrio de um médico que mata o seu duplo e que é
atormentado por ele e acaba também morrendo. Há delírios, mas não a objetivação
do sobrenatural.
Mas a maioria dos médicos desconhece
os romances e os filmes em que sua dupla condição é mostrada. Seria falta de
tempo, desinteresse pela leitura de ficção ou simplesmente recusa em descer ao
mundo dos pobres mortais?
https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/01/1296404-edgar-vianna-de-andrade-carnaval-das-almas.html?fbclid=IwAR2D6M2scx_0cU8WghFJDTLjOBtzdshcoVyfUYsEIzKomvNGihfS4nt56Tk
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 31 de janeiro de
2024
Carnaval das almas
Edgar Vianna de Andrade
Sofri um acidente horrível. Eu
estava num automóvel com duas amigas atravessando uma ponte quando ele caiu no
rio. O veículo afundou e matou minhas amigas. Julgaram que eu também havia
morrido, mas, passado algum tempo, retornei. Não quis mais ficar naquela
cidade. Mudei-me para outra e passei a ser organista de uma igreja. Eu já havia
conseguido o emprego e uma pensão para morar antes de me mudar. O padre gostou
do meu empenho.
A dona da pensão era muito gentil,
mas havia um hóspede (ele e eu éramos os únicos) que começou a me assediar.
Isso tudo aconteceu em 1962. Eu era nova e, dizem, bonita. Ele era um homem
vulgar, sem nenhum tato para a conquista. Era nítido que ele só queria sexo. A
questão preocupante era que, desde a chegada na cidade, eu via um homem com
aspecto de zumbi. Ele aparecia e desaparecia sem me incomodar. Só me causava
medo.
Na nova cidade, um prédio abandonado
na beira de um lago me chamou a atenção. Eu sentia uma grande atração por ele.
O padre me levou para conhecê-lo. Havia algo de estranho no ar. Algo também
inexplicável aconteceu comigo um dia. Fui fazer compras numa loja de roupa e
tive a sensação de não ser vista por ninguém. Eu existia. As pessoas falavam
comigo. Eu tomava banho e sentia a água. Eu me alimentava e sentia a
mastigação. Eu tocava órgão e me ouviam. Naquele dia, porém, pareceu que me
tornei invisível até sair para a rua e novamente avistar aquele homem macabro.
Um médico que passava convidou-me para uma consulta. Era médico. Fez várias
perguntas e se impressionou com minha segurança e independência. Disse-lhe que
não sentia falta de ninguém. Era muito comum naquela época concluir que uma
mulher como eu era histérica.
Certo dia, durante uma cerimônia
religiosa, minhas mãos ganharam autonomia no teclado e meus pés deslizaram
sobre os pedais do órgão. Eu não tinha controle sobre meu corpo. O padre
considerou aquilo um desrespeito e me despediu. Decidi deixar a cidade. Na
partida, mais uma vez aconteceu de eu não ser vista, ouvida ou percebida pelas
pessoas. O zumbi continuava a me perseguir. Como aquele fenômeno podia
acontecer? Ora eu existia, ora não. Fugi como pude. De nada adiantou. Acabei no
prédio à beira do lago. O zumbi voltou a aparecer, agora no meio de uma legião
de zumbis. Fui perseguida. Acabei me afogando.
Desta vez, não escapei da morte.
Finalmente, o automóvel em que eu estava com minhas amigas foi encontrado. Eu e
elas estávamos mortas. Não sei quem viveu na outra cidade, se meu corpo ou meu
espírito. Talvez os dois, pois ora as pessoas me viam, ora não me viam. Foi uma
história tão incomum que Herk Harvey dirigiu um filme com ela. John Clifford
escreveu o roteiro. Em três semanas e com baixo orçamento, Herk concluiu o
filme em preto-e-branco. Seu título é “Carnaval das almas” (“Carnival of
Souls”). Lançado em 1962, tornou-se um clássico de terror cult independente.
Eu, Candice Hilligoss, fiz o papel de Mary Henry, a moça que morreu pensando
que ainda vivia. Todavia, eu, Candice, continuo viva. Tenho 88 anos de idade. O
sucesso do filme foi tanto que mereceu uma refilmagem em 1988.
https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/02/1296714-cinema-um-filme-sensorial.html
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 14 de fevereiro de 2024
Um filme sensorial
Arthur Soffiati
Ao
assistir a “O massacre da serra elétrica”, do estreante Tobe Hooper (1974),
minha sensação foi de repugnância. Várias cenas são chocantes, mas a que mais
me tocou foi a do avô da família de sádicos sugando o sangue do dedo da única
sobrevivente do massacre (Marilyn Burns). Sensível a sangue, tive vertigem e
ameacei desmaiar. Instintivamente, levamos o dedo à boca quando sofremos um
corte. Mas, no caso da família do assassino da serra elétrica (Leatherface), a cena é macabra.
Quentin
Tarantino considera “O massacre...”, segundo filme de Hooper, uma das raras
obras perfeitas do cinema em “Especulações cinematográficas” (Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2023). Mas não explica por que. Voltei a assistir ao filme.
Passaram-se 50 anos do seu lançamento e o filme continua assustando. Ele não é
um trabalho datado. Claro que a fotografia desbotou. Claro que muitos aspectos
parecem ultrapassados. Mas consideremos que Hooper trabalhou com baixo
orçamento e concluiu as filmagens em quatro semanas.
Não cabe
aqui resumir a história. Quem quiser que assista ao filme. Agora, com mais
maturidade, observei detalhes. Não mais tive vertigem na cena do dedo. O que me
chamou a atenção foi a capacidade do diretor de transcender o sentido da visão
e de tocar os outros sentidos. Ainda no âmbito da visão, as paisagens do filme
não são bonitas. Cinco pessoas viajam para o Texas a fim de saber se o túmulo
do avô de um foi realmente violado, como informou uma emissora de rádio.
A fotografia de qualidade inferior
trabalha muito com o claro-escuro. Lembrei-me de Mário Bava nas cenas em que a
câmara mostra um círculo desfocado. Ao ser colocada no foco, trata-se do sol ou
da lua. Há outros desfoques-foques assim ao longo do filme. A trilha sonora,
recheada de canções countries, ajuda a nos situar no Texas. Todos aqueles
caipiras toscos também. O ambiente é árido. Sente-se calor. As conversas giram
em torno de abatedouros bárbaros de gado, como a introduzir o espectador no que
ele vai ver. Também há sangue em pequenas doses antecipando a sanguinolência da
segunda metade do filme de apenas 84 minutos. Os cortes na mão e no braço tocam
nosso tato. Parece que eles foram feitos em nosso corpo.
Creio que o
olfato é o sentido mais trabalhado por Hooper. O cheiro de carne deteriorada
sentido pelos cinco passageiros da van é tão forte e tão bem descrito que o
espectador também o sente. Ele se torna mais forte para cada uma das cinco
pessoas que entram na casa. Carne deteriorada num canto, ossos de face, pernas,
braços, mãos espalhados pela casa. Dentes pelo chão. Ganchos de açougue
pendurados. Moscas. O quadro é de um açougue interditado pela fiscalização
pública, mas muito pior. A sujeira domina o ambiente. Nosso olfato também
assiste ao filme e se enoja.
Tudo
acontece rapidamente. O maníaco da serra elétrica aparece subitamente e mata o
visitante incauto com uma marreta de abater boi ou com o uso de uma serra
elétrica. A cena de uma pessoa tremendo a perna antes de morrer é
impressionante. Mas não há espíritos transparentes que andam pelas paredes e
tetos. Não existem portas para o inferno. Não se trata de um filme de terror.
Ele é macabro, mas mostra uma família de açougueiros. Não há a presença do
sobrenatural, embora ele tenha influenciado os filmes de terror lançados
posteriormente, como “Sexta-Feira 13” e “A hora do pesadelo”.
Tobe Hooper
mostra as mortes e o cenário nauseabundo em que eles ocorrem com uma câmara
nervosa e caótica até se fixar na última personagem, que consegue escapar. O
espectador, então, pode se enojar com os detalhes daquele açougue doméstico. O
filme é ímpar. As refilmagens jamais conseguiram superar a obra original.
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 28 de fevereiro de 2024
Um crocodilo no quintal
Edgar Vianna de Andrade
Depois
de “O massacre da serra elétrica” (1974), segundo filme de Tobe Hooper e um
verdadeiro sucesso até hoje considerado como marco no gênero, ele dirigiu
“Devorado vivo” (1976), um filme mais modesto, mas também muito elogiado.
Quentin Tarantino diz que ficava difícil ultrapassar “O massacre...”. “Devorado
vivo” centra-se num hotel de quinta categoria à beira de uma estrada que leva a
uma cidade do interior. Seu dono (Neville Brand) faz tudo. Ele cria um
crocodilo num lago ao lado do hotel caindo aos pedaços. Orgulha-se em dizer que
se trata de um crocodilo, não de um aligátor. Em terra, o animal é tão veloz e
feroz quanto na água. Logo se sabe como o dono alimenta seu pet: com os raros
hóspedes que passam por lá.
A
primeira é uma moça que fugiu da casa de pai rico e acabou se tornando
prostituta por falta de emprego na cidadezinha. Um cliente jovem, representado
por Robert Englund no início de carreira, quer praticar sexo anal e ela se
recusa veementemente. Aliás, o jovem tem um forte desejo anal na vida. Até para
matar o crocodilo ele pensa numa banana de dinamite no tubo anal do bicho.
Logo
aparece um casal com uma filha e seu cãozinho. O marido deseja apenas usar o
banheiro, mas hospeda-se no hotel quando o cachorrinho é papado pelo crocodilo.
A menina chora muito. O pai toma de uma carabina e resolve liquidar o animal. O
dono o mata e empurra para o lago. Antes, porém, recebe um tiro na perna.
Ficamos, então, sabendo que ele usava uma perna de pau. O crocodilo de
estimação a devorara. A esposa é amarrada à cama, esperando sua hora. A filha
foge para o porão da casa e grita muito.
Um
novo hóspede chega ao hotel com sua filha. É representado por Mel Ferrer.
Depois de estrelar filmes famosos como galã, ele está no fim de carreira.
Aliás, tenho encontrado muita estrela famosa em fim de carreira trabalhando em
filmes sofríveis, assim como estrelas que trabalharam em filmes de terceira
classe e depois se tornaram famosas. Ainda escreverei sobre eles. Ferrer é um
homem que se hospeda com a filha à procura da outra, ex-prostituta e devorada
viva. O dono do hotel jura que nunca a viu. Os dois saem à procura do xerife.
Creio
que o ponto alto do filme é representado por Mel Ferrer nos dentes do
crocodilo. Matá-lo na ficção é uma metáfora. Ali morre também um astro famoso.
Mas o hotel foi usado pelo jovem Englund para praticar seu maior desejo: sexo
anal com uma conhecida. Ele acaba nos dentes do crocodilo. Ela consegue fugir.
Hooper tem consciência de fazer um filme barato voltado para o público adulto,
sobretudo masculino. Daí o desfile de seios desnudos, com ou sem motivo. Mulher
nova, bonita e graciosa entrou em cena tem de mostrar os seios nus. Ele bateu o
recorde em nudez em “Força sinistra”, filme de 1985 em que a linda Mathilda Mayatua em plena nudez o tempo todo. Sua beleza
perfeita certamente agradaria o público masculino.
Mas
o filme deve conter algum traço de punição ao mal. No caso, o perverso dono do
hotel deve ser punido. Suas crueldades decorrem de um desequilíbrio mental. Ele
chega a ser cômico e, de fato, é o centro do filme. Fico na dúvida se ele ou
seu crocodilo ocupam esse centro. Bom, ele acaba caindo no lago e sendo
devorado vivo. O animal rejeita apenas a parte do corpo que havia substituído a
que fora comida antes: sua perna de pau.
Seria
impróprio o animal devorar a menina e as moças formosas. Elas são poupadas. A
fotografia é desbotada, mas certos enquadramentos revelam o talento de Hooper.
O filme começa com a câmara focada numa medalha. Ao se afastar, verifica-se que
se trata da fivela do cinto de Englund. A trilha sonora é recheada de música
countries. Os admiradores de Tarantino certamente não admiram o gosto do
cineasta. Ele se formou nesse meio: filmes baratos.
https://opinioes.folha1.com.br/2024/03/13/arthur-soffiati-jacare-pega-onda-do-tubarao-no-cinema/
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 13 de março de 2024
Um jacaré no esgoto
Edgar Vianna de Andrade
Em
“Devorado vivo” (1976), de Tobe Hooper, o herói-bandido é o psicopata dono de
hotel (Neville Brand) que mata os hóspedes para alimentar seu crocodilo. Em
“Alligator, o jacaré gigante” (1980), de Lewis Teague, o herói é um jacaré
americano. Pegando a onda criada por “Tubarão”, de Spielberg, o jacaré não pode
ser mau porque os animais não são cruéis. Contudo, nos filmes, os animais
acabam adquirindo personalidade humana. Eles representam o mal e seus caçadores
são vistos como símbolo do bem, como heróis.
Sinteticamente,
o roteiro mostra um filhote de jacaré tirado do seu meio por uma menina e
levado para Chicago como pet. O pai da menina descobre o bichinho e o lança no
vaso sanitário. Adeus, jacaré? Não. Ele sobrevive na rede de esgotos da cidade,
alimentado por animais mortos cheios de hormônios por um laboratório que faz
experiências suspeitas. Pernas e braços começam a aparecer na estação de
tratamento de esgoto. A polícia é chamada. Um investigador (Robert Forster)
cuida do caso. Quem é o criminoso? Andando pelas galerias de esgoto, o
investigador descobre logo tratar-se de um jacaré monstruoso, e não de um
bandido. O filme se baseia numa lenda urbana muito popular nas décadas de
1970-80.
Concluindo-se
de que se trata de um jacaré, a polícia devia encerrar o caso e passá-lo para
bombeiros ou cientistas. Mas as investigações policiais prosseguem com o
detetive compulsivo. Os clichês começam a se definir. O policial perdeu um
companheiro no passado e se sente culpado por isso. É um homem atormentado que
perderá mais um colega para o cruel jacaré gigante. O chefe da delegacia é
também típico na sua meia idade e rouquidão. Ambos procuram um especialista. O
maior nome em herpetologia é ninguém menos que uma linda moça. O dono do
laboratório é um empresário inescrupuloso que tem grande influência sobre o
prefeito venal. Esse filme já foi visto várias vezes, trocando-se apenas o
vilão e os personagens.
É
claro que haverá um romance entre o investigador e a cientista. É claro que
haverá sexo, embora, no filme, ele seja discreto. Nem os seios da cientista
completamente nus são exibidos. Mas o detetive comenta que ela é inteligente,
bonita e tem peitos atraentes. É claro que o jacaré terá comportamento humano.
Ele arrebenta o asfalto e avança pela superfície de Chicago, atacando pessoas e
veículos. É um animal gigantesco. Parece que ele sabe quem é o homem mau e
ataca a festa de casamento do seu filho, devorando muitos convidados e o
próprio vilão.
Afastado
do caso por ordem do prefeito, o detetive continuará a agir por conta própria
com ajuda da cientista. Também já assistimos a esse filme várias vezes. Ambos
entram no covil do jacaré e o detonam com dinamite. Caso resolvido? Chicago
pode descansar? O filme terminou? O jacaré deixou filhotes. Mas como? Ele era
macho ou fêmea? Se macho, não havia como proliferar. Se fêmea, pode-se pensar
em partenogênese. O instinto de reprodução é tão forte que algumas plantas,
invertebrados, anfíbios e répteis dispensam parceiros machos e se reproduzem.
Um caso é focalizado em “Jurassic Park”.
Os
jacarezinhos aparecem no final do filme, sugerindo continuação. Muitos filmes
com jacarés foram produzidos depois e “Alligator”. Todos eles para caçar
espectadores pouco exigentes. Contudo, devemos admitir que muitos filmes nessa
linha fizeram sucesso. Não é preciso ir longe para saber que os estúdios dos
Estados Unidos querem filmes comerciais que produzam bilheteria.
https://opinioes.folha1.com.br/2024/03/27/arthur-soffiati-pague-para-entrar-reze-para-sair-do-gosto-de-tarantino/
Assassinato no parque de
diversões
Arthur Soffiati
Entre
os filmes que marcaram o jovem Quentin Tarantino entre 1968 e 1981, figuram
“Bullit”, “Perseguidor implacável”, “Amargo pesadelo”, “Os implacáveis”, “A
quadrilha”, “Irmãs diabólicas”, “Daisy Miller”, “Taxi driver”, “A outra face da
violência”, “A taberna do inferno”, “Alcatraz: fuga impossível”, “Hardcore: no
submundo do sexo” e “Pague para entrar e reze para sair”.
Quero
me deter no último, dirigido por Tobe Hooper e com lançamento em 1981. Ele já
tinha lançado “O massacre da serra elétrica” (1974), que Tarantino considerou
um filme perfeito, sem explicar seu conceito de perfeição, e “Devorado vivo”,
de 1976, que também mereceu elogio do diretor de “Cães de aluguel” em seu livro
“Especulações cinematográficas” (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2023). Para ele, o
roteiro é excelente, mas a direção de Hooper merece rasgados elogios.
Já
nos créditos iniciais, Hooper desfila as figuras que costumavam ilustrar os
parques de diversões antigamente. São figuras canhestras, primárias, mas, ao
mesmo tempo, assustadoras. O início é marcado por um quarto com instrumentos de
tortura e a exibição de “A noiva de Frankenstein”, de 1935, filme que surfou na
onda de sucesso de “Frankenstein” (1931). Então, uma jovem entra no banheiro,
tira a roupa e se prepara para o banho. Em termos de sexo, parece que seios
femininos são a obsessão dos homens dos Estados Unidos. Hooper não exibiu seios
nus em “O massacre”, mas não os economizou em “Devorado vivo”. Enquanto ela se
banha, um mascarado invade o banheiro com uma faca e avança para ela tentando
atingi-la. É a cena famosa do chuveiro de “Psicose”. Hitchcock está sendo
homenageado. A moça consegue segurar o pulso do esfaqueador, mas ele alcança a
barriga dela. A faca, de borracha, se curva. Era seu irmãozinho desejando
assustá-la.
É
motivo suficiente para ela não levar mais o irmão ao parque. Na verdade, ela
pretendia mesmo ir ao cinema com o namorado e um casal amigo. Mas acabam todos
no parque. O irmão foge de casa e também vai ao parque. O filme mostra as
diversões: roda gigante, carrossel, carrinhos que trombam, trem fantasma,
vidente, animais com deformação, teste de força etc.
Eles
se divertem e decidem passar a noite escondidos naquele parque mambembe de última
categoria, onde duas moças tinham sido assassinadas anteriormente sem que o
assassino tivesse sido encontrado. No meu entendimento, este é o senão maior do
roteiro. Uma coisa é os dois casais ficarem presos nos domínios do parque.
Outra é escolher dormir num lugar escondido para se divertirem à noite, fumando
maconha e transando. Novamente, seios aparecem. Mas os quatro acabam sendo
também testemunhas de um assassinato. O simpático Frankenstein mascarado paga à
vidente por um sexo rápido que se resume a uma masturbação. Por baixo da
máscara, escondia-se uma aberração humana assustadora.
O
irmão da moça é salvo por um funcionário o parque, que telefona para seus pais.
Mas os dois casais são perseguidos pelo “monstro” assassino a mando de seu pai.
Os quatro vivem uma noite alucinante, em que um por um é assassinado sempre de
forma bizarra. A gente já espera o final: todos morrerão, salvando-se apenas a
mocinha, que deixa o parque de manhã, espandongada e descalça. A cena contrasta
com a paz dos empregados desmontando o parque. O final pedia a moça chamando a
polícia.
“Pague
para entrar em reze para sair” (“Funhouse”) é um típico filme B: baixo
orçamento, artistas inexperientes, efeitos especiais não convincentes,
fotografia meio desbotada. É um típico filme norte-americano para público pouco
exigente. O que não significa que não tenha qualidades. Tobe Hooper trabalhava
com baixo orçamento propositalmente. Ele foi reconhecido por seus pares como um
grande diretor. Assisti a quase todos os seus filmes. Só gostaria de saber qual
seria a reação de uma pessoa que eu convidasse a assistir a ele. Ou qual seria
a postura de um admirador de Tarantino diante desse filme. Admiramos Tarantino,
mas não o seu gosto.
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 10 de abril de
2024
Luta ridícula de gigantes
Edgar Vianna de Andrade
Não ando muito animado com a
programação dos cinemas de Campos nem da única plataforma digital a que tenho
acesso. Sendo assim, recorro com frequência à minha enorme coleção de DVDs. No
entanto, querendo elementos para comentar um filme em cartaz no momento, cometi
o grande equívoco de assistir a “Godzilla vs Kong”, uma
mistureba dirigida por Adam Wingard. O macaco gigante Kong figurou nas telas pela primeira
vez 1933. Foi um sucesso. Ganhou refilmagens e desdobramentos. Godzilla estreou
em 1954. O primeiro encontro dos dois ocorreu no filme “Godzilla vs Kong”,
produção japonesa de 1963. Eiji Tsubaraya, o Ray Harryhausen do
oriente, criou gigantes espetaculares, mas não conseguiu superar o mestre
norte-americano. O filme visava bilheterias dos Estados Unidos. Godzilla
resulta do cruzamento de um tiranossauro rex com um estegossauro bem antes do
recurso à engenharia genética das ficções científicas de Michael Crichton.
Kong,
por sua vez, controlava uma ilha. Ele era adormecido pelo sumo do fruto de uma
planta só encontrada lá. Quando Kong aparece, as mulheres bailam para ele. Kong
gosta de mulher e de lugares altos. Tanto que uma virgem é sempre presenteada a
ele. Esses
filmes do passado precisavam recorrer à técnica de animação do stop-motion,
pois ainda não havia efeitos especiais computadorizados. Gostamos de filmes com
dinossauros, mas ignoramos o quão difícil era produzir esses animais extintos
no passado. Os primeiros filmes com eles datam da segunda década do século XX.
Geralmente, eram curtos pelos custos na produção de pequenos bonecos ampliados
que contracenavam com humanos.
A partir da década de 1980, os
filmes de “monstros” ou “coisas” passaram a ser produzidos em computação
gráfica. O grande exemplo é “Jurassik park”, de 1993, dirigido por Steven
Spielberg. Ele suscitou uma franquia de mais cinco filmes. Todos sofríveis.
Todos demonstração vazia de tecnologia. Muitos outros filmes no gênero de
“Jurassik park” ganharam as telas. A maioria deixa a desejar.
Voltando a “Godzilla
vs Kong”, é de se supor que os grandes estúdios atuais têm dinheiro, mas as
salas de cinema estão em franca decadência. O filme conta com boa fotografia,
embora padronizada, e muitos efeitos especiais. Contudo, o roteiro é confuso, a
trilha sonora é pasteurizada, o desempenho dos artistas é péssimo. Nem Michael
Bay, Roland Emmerich e Guillermo del Toro em seus piores momentos (e foram
muitos) conseguiriam a proeza de Adam Wingard. Ele dirige
mecanicamente. Qualquer computador faria melhor. Os efeitos especiais são
excessivamente surrados. Animais inventados aparecem gratuitamente. Trata-se de
uma mistura de catástrofe e anedota. O filme beira às raias do ridículo. Kong
mora num mundo maravilhoso que fica no interior da Terra, enquanto Godzilla
repousa no Coliseu de Roma quando não está destruindo uma cidade ou um
monumento. Eles saem dos seus redutos para lutar e destruir. Não foram poupadas
as pirâmides do Egito e a praia de Copacabana sob as vistas do Cristo Redentor.
A globalização mostrada é perversa e deseducativa. Enfim, o filme é
perfeitamente dispensável.
https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/04/1298284-edgar-vianna-de-andrade-formigas-no-esgoto.html
Formigas no esgoto
Edgar Vianna de Andrade
Na
década de 1960, os estúdios de Hollywood entraram em crise. Havia muita briga.
Chefes de estúdios encomendavam roteiros originais ou adaptados a autores que
não se davam com os diretores escolhidos. Havia também briga entre artistas que
trabalhavam juntos. Um dirigente chegou a dizer que a atriz escolhida devia lhe
provocar desejos sexuais. Foi então que entrou em cena um grupo de cineastas
dispostos a renovar o cinema dos Estados Unidos. Eram chamados de “movie
brats”. Quentin Tarantino escreve: “O que diferencia os ‘movie brats’ da
geração de diretores que veio logo antes deles, mais do que a juventude e a
formação em faculdades de cinema, é o fato de que eles eram (em sua ‘maioria’)
fanáticos por cinema.”
Seus
nomes são por demais conhecidos atualmente: Spielberg, Scorsese, Lucas, De
Palma, Hal Ashby, Terrence Malick e Ralph Bakshi. Eles curtiam filmes que os
cineastas politizados da geração precedente consideravam horríveis pelo prisma
estético e político. Os “movie brats” gostavam de televisão, de “Viagem ao
centro da Terra”, de “20.000 léguas submarinas”, de “A máquina do tempo”, de “A
cidadela dos Robinsons”, de “Os canhões de Navarone” e consideravam Roger
Corman um verdadeiro ídolo com seus filmes B.
Os
“movie brats” não eram de produzir filmes “cabeça”. Eles sabiam muito bem que o
cinema é uma arte voltada para o grande público. Isso não significa que eles
produzissem filmes de qualidade inferior. Com bastante sensibilidade, eles
combinavam a qualidade ao gosto popular. Eles foram a primeira geração de
cineastas de ponta em Hollywood a assistir ao clássico de ficção de Gordon
Douglas, “O mundo em perigo” (“Them”), de 1954. É difícil falar em primeira vez
no cinema em se tratando dos Estados Unidos, mas este talvez seja o primeiro
filme a declarar que a humanidade entrou em nova era (muito perigosa) com a
detonação de duas bombas atômicas no Japão, em 1945.
Admiro
este filme, contextualizando-o devidamente. Antes de lançar as bombas, houve
experiências no estado norte-americano do Novo México. Essas experiências
causaram, no filme, efeitos que poderiam acabar com a humanidade, não fossem a
inteligência a ação de um velho cientista. Uma menina é encontrada vagando pelo
deserto em estado de choque. Um trailer foi destruído e o dono de um boteco foi
morto. A polícia descarta roubo e não encontra explicação para crimes em que
uma força descomunal foi usada.
Além
da polícia estadual, o FBI entra em cena e também não atina com a motivação do
crime. Como o objetivo dos ataques parece ter sido a obtenção de açúcar,
decide-se consultar o mais conceituado entomologista do país. Idoso, ele é
especialista em formigas. Sua filha, (interpretada por Joan Weldon) é
uma daquelas moças lindinhas do cinema norte-americano na década de 1950: alta,
belo rosto, penteado da época, sorriso claro, vestido comprido com pregas, bem
cintado para mostrar cintura, quadris e seios (tudo com recato). Ela também é
iniciada nos mistérios das formigas. Aonde o pai não pode ir, ela vai.
Usando
a dedução, o velho cientista não custa a concluir que a experiência nuclear
efetuada em 1945, no Novo México, pouco antes do lançamento das duas bombas
atômicas sobre o Japão, havia afetado as formigas. A Experiência Trinity, que
oficialmente inaugura a era nuclear da humanidade, havia ocorrido apenas nove
anos no tempo do filme e estava ainda muito viva na lembrança das pessoas.
Não
apenas os japoneses foram vítimas da radiação nuclear. Os Estados Unidos estão
ameaçados por formigas gigantes que podem exterminar os habitantes do país e a
humanidade. É preciso detê-las. Dr. Medford, o velho cientista, convence
policiais, forças armadas e governo federal a combater as formigas mutantes.
Vitória da velhice e da ciência. Ele profere frases lapidares, como: “As
formigas são as únicas criaturas, fora o Homem, que fazem guerra. Elas fazem
campanha, são agressivas e escravizam as prisioneiras que não são mortas” Ou:
“Podemos estar testemunhando uma profecia bíblica se realizando: a destruição e
a escuridão descerão sobre o mundo e as feras reinarão sobre a Terra”.
Todos
se curvam diante de sua sabedoria, iniciando-se uma guerra implacável contra as
formigas gigantes. O comando geral está com o Dr. Medford. A batalha final é
travada numa galeria de esgoto, onde o cientista faz uma proclamação frontal à
era nuclear. Num mundo em que a energia nuclear foi liberada, tudo pode
acontecer.
A
fotografia em preto-e-branco é muito boa. Os enquadramentos e os
planos-sequência estão nas mãos de um bom diretor. Gordon Douglas tinha um
grande currículo. O filme se vale de efeitos especiais. Ele concorreu ao Oscar
nesse quesito, mas perdeu para “20.000 léguas submarinas”. De fato, as formigas
não são muito convincentes.
https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/05/1298576-edgar-vianna-de-andrade-o-infeliz-retorno-de-garfield.html
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 08 de maio de 2024
O infeliz retorno de Garfield
Edgar Vianna de Andrade
Em 2004, vinte anos
passados, escrevi uma crítica a “Garfield
– o filme” passando em revista outros gatos que mereceram filmes. O
primeiro deles foi o enigmático Krazy Kat, criado por George Harriman em 1911.
Numa paisagem inóspita e insólita, uma gata que se diz descendente da gata de
Cleópatra, alimenta uma relação sadomasoquista com o rato Ignatz, que, não
percebendo o amor de Krazy, tenta afastá-la com tijoladas. Em cena, entra ainda
Ofissa, um cão policial que ama Krazy, fechando um triângulo amoroso invertido:
uma gata amando um rato e amada por um cão. Esse gato nunca mereceu um filme e
morreu com seu criador. Foi o mais enigmático dos gatos dos quadrinhos. Hoje,
está quase esquecido.
Em 1921, aparece um
gato pleno de lirismo criado por Pat Sullivan. Seu caminho foi inverso ao dos
outros personagens: ele começou em desenhos de animação para ganhar os
quadrinhos. Trata-se do Gato Félix. Além de solidarizar-se com pessoas hoje
consideradas excluídas socialmente, Félix tem um desempenho altamente criativo com
os elementos dos quadrinhos. É um gato que não se aperta diante das
dificuldades, usando o balão da legenda para voar, os pontos de exclamação como
tacape e as interrogações como ganchos. A metalinguagem é um traço dos mais
originais em Sullivan.
O terceiro gato é
Fritz, criado pelo quadrinista underground Robert Crumb, em 1970. Trata-se de
um gato lascivo e devasso, que saiu dos quadrinhos para uma animação
pornográfica. Crumb, mereceu, em 1994, um documentário sobre sua vida e obra
com o título de “Anti-herói americano”, dirigido por Terry Zigwoff.
Por fim, o gato mais
atual é o preguiçoso, guloso, egoísta, vaidoso, mal-humorado e individualista
Garfield, criado por Jim Davis em 1978 e que ganhou tiras em vários jornais do
mundo inteiro. Anti-herói, Garfield parece expressar a outra face do
norte-americano médio. Depende, sem nenhum sentimento de culpa, de um dono meio
medíocre e coexiste com Odie, um cachorro que considera imbecil. Garfield sofre
de complexo de superioridade.
O sucesso das tiras
levou o gato para o desenho animado. Em 2004, Peter Hewitt o levou para a
computação gráfica. Humanos e animais são verdadeiros. Em “Garfield – o filme”, o gato comodista
é filho do computador. Jon Arbuckle (Breckin Meyer), seu dono, está mais
apalermado que nas tiras. Odie ficou mais retardado. A médica veterinária Liz
(Jennifer Love Hewitt), namorada de Jon, parece ser a mais habilitada a lidar
com o gato rabugento que detesta as segundas-feiras e adora se exibir nos muros
à noite.
Um gato da estirpe de
Garfield não poderia se envolver numa história tão tolamente norte-americana
como a concebida para o filme. No final, Garfield se torna o contrário do que
é: torna-se herói e dos mais padronizados. É preciso talento para tirar um gato
do quadrinho e levá-lo para o cinema. Peter Hewitt não demonstrou este talento
E agora, 20 anos depois, por imposição de sobrinha, volto ao cinema para
assistir “Garfield: fora de casa”, dirigido por Mark Dindal.
Nesse intervalo, não sei se o gato se apresentou na telona. O mundo mudou muito
desde então. O cinema de shoppings matou o cinema de rua e as plataformas de
streaming estão matando os cinemas de shopping. Em 2004, o cinema estava lotado
de crianças. Em 2024, havia apenas 4 com os pais. Pelo visto, Garfiield não
agrada com os muitos clichês que inundaram as animações. Da minha parte, as
observações para o filme de 2024 são as mesmas de 2004.
https://opinioes.folha1.com.br/2024/05/22/arthur-soffiati-a-lenda-do-rei-do-filme-b-de-hollywood/?fbclid=IwZXh0bgNhZW0CMTEAAR2cgpRvEKJsa7mkgxs_aav1H_rEVQDhSuV6zfcFyx015ZfN5hcyubuBCSM_aem_AWY-Hnom0iGG0RZ3LMIlX4UeOTS8sjN_DPCj3dftyKTGWKfSm7OEeP2aWf1wSjACOew57zHepnUA3UCA9S4jrryB
Folha da
Manhã, Campos dos Goytacazes, 22 de maio de 2024
A lenda
Roger Corman
Edgar
Vianna de Andrade
Hollywood reuniu estúdios e se
tornou o maior centro cinematográfico do mundo. Dali, saíram grandes filmes,
diretores famosos e artistas glamorosos. Eles ganharam o mundo e, por um lado,
levaram-nos encantamento. Por outro, motivaram críticas severas. O festival do
Oscar é o que melhor representa Hollywood.
Mas deixemos o palco da cidade do
cinema e visitemos o porão. Lá não é apenas um lugar para guardar material
usado e recordações. Encontraremos intensa vida ali: diretores, produtores,
cinegrafistas, artistas, orçamentos baixos e a falta de glamour do andar de
cima. Ou um glamour diferente daquele mais difundido e exibido nas grandes
telas. É a Hollywood B, talvez a verdadeira face da capital mundial do cinema:
a produção de filmes comerciais para o grande público. O cinema sem meias
palavras para render dinheiro: gastar pouco e ganhar muito. É preciso descobrir
esta faceta por trás do charme.
Nesse sentido, a figura de Roger
Corman talvez seja a mais representativa desse porão. Ele nasceu em 1926 e
acaba de morrer aos 98 anos de idade. Corman fez de tudo no porão: carregou
cenários, esteve atrás das câmaras, foi dublê, estreou como diretor em 1956,
dirigiu muitos filmes nos mais distintos gêneros, vários deles não creditados,
e se tornou um grande produtor mais pela quantidade que pela qualidade. Corman
recebeu merecidamente o título de “Rei do filme B”. Em todos os gêneros,
encontraremos filmes B, aqueles que são produzidos com baixo orçamento. Por
isso, não podem contar com bons roteiristas, fotografia, artistas e outros
traços mais que marcam a produção do andar superior de Hollywood.
Não se pode dizer que Corman estava
despreparado culturalmente. Ele se formou em engenharia e estudou literatura.
Era pau para toda obra. Precisa-se de um filme para a próxima semana. Chama o
Corman. Parece que certo estúdio não cumprirá o contrato para nos entregar um
filme A. Chama Corman depressa e encomenda um filme B. Como produtor, ele não
se limitava em conseguir dinheiro para os filmes, senão que escolhia o livro a
ser roteirizado, o roteirista, o diretor e os artistas. Ele deixou de dirigir
em 1990, mas continuou como diretor indiretamente. E era grande seu tino para
filmes voltados aos pequenos cinemas e ao público não exigente. Os homens
americanos gostam de peitos femininos? Pois coloquemos mulheres bonitas que
exibem seus peitos gratuitamente. Foi assim que ele filmou Dawn Dunlap, uma bela e pouco
conhecida atriz. O público gosta de briga? Ofereçamos briga a eles. E nada de
filme-cabeça.
Assim, Corman adquiriu notoriedade e
respeitabilidade do andar de cima. Ele se tornou um grande conselheiro dos
jovens diretores, como Francis Coppola, Martin Scorserse, James Cameron, Tim
Burton, John Landis, Joe Dante, Peter Bogdanovich, Jonathan Demme. Ele lançou
artistas que se tornaram célebres mais tarde, como Jack Nicholson, e trouxe às
telas artistas que estavam sendo esquecidos, como Peter Lorre e Boris Karloff.
Foi ele que consagrou o nome de Vincent Price. Ele ganhou dinheiro com esses
filmes baratos e simples de ficção científica, comédias macabras, faroeste,
mitologia, dinossauros, máfia e tantos mais em que esteve por trás como diretor
e produtor. Segundo ele, só teve prejuízo com um. Em 2009, ele recebeu o Oscar
honorário.
Numa de suas muitas entrevistas, ele
disse que não se deve abusar do virtuosismo com a câmara. Até certo ponto, ele
podia fazer experiências, mas desagradar o público simples jamais. Pelo
conjunto da obra, pela revelação de artistas, pela oportunidade que deu aos
astros devorados por Hollywood e pela influência exercida sobre jovens
cineastas, hoje famosos, Corman bem merece uma homenagem. Mas é de se perguntar
quem estaria disposto a assistir a “O monstro de um milhão de olhos”, “O
emissário do outro mundo”, “O ataque dos caranguejos monstruosos”, “Um balde de
sangue” (genial), “A mulher vespa” “A pequena loja dos horrores” (sua mais
conhecida obra), “O homem dos olhos de raio-X” e “Frankenstein, o monstro das
trevas”?
Folha
da Manhã, Campos dos Goytacazes, 05-07 de junho de 2024
Corman
diretor
Edgar
Vianna de Andrade
Tomo um filme para exemplificar a personalidade de Roger
Corman como diretor: “Um balde de sangue”, de 1959. Poderia ser outro, mas este
revela Corman em sua alegria, simpatia, ironia e bom humor. Além de alto tino
para a arte cinematográfica, Corman era generoso com novos e velhos, dando
chance aos jovens diretores e artistas. Daí ser admirado por ambos.
Em “Um balde de sangue” e “A pequena loja de horrores”
(1960), Corman e Charles B. Griffith formaram uma dupla bem-sucedida. Griffith
no roteiro e Corman na direção. Nos dois filmes, a figura central é um jovem
comum que tem um emprego simples. Em “Um balde de sangue”, trata-se de um
garçom (Dick Miller) trabalhando numa casa noturna frequentada por rapazes e
moças da geração beat. Seu sonho é ser escultor e impressionar Carla (Barboura
Morris). Os frequentadores do bar declamam poemas e executam músicas. Todos se
acham importantes. Corman satiriza a geração de jovens que se consideram
intelectuais e artistas improvisando poemas e músicas.
O jovem garçom gosta do ambiente.
Ele desejaria ser um de seus frequentadores, mas não tem talento. Carla o
admira sem pretender passar disso. O jovem mora na pensão de uma velha senhora.
Uma noite, ela lhe pede que encontre seu gato e o alimente. No seu quarto, ele
ouve miados atrás de uma parede. Pareceu referência a um conhecido conto de
Poe. Para livrá-lo, o jovem tenta quebrar a parede com uma faca e mata o gato
sem querer. Para esconder o gato morto, ele o cobre de massa e o mostra ao
patrão e à moça por quem é apaixonado. A moça fica embevecida. Corman ri da
mediocridade da arte praticada e admirada pelos frequentadores da casa noturna.
Todos eles elogiam a obra do garçom.
Há policiais disfarçados de frequentadores investigando o uso de drogas. Um
deles segue o jovem escultor até sua casa, suspeitando que ele seja fornecedor
ou interceptador de drogas. Os dois discutem. O jovem se defende com uma
frigideira e mata o policial. Mais um a ter o corpo coberto de massa e a ser
transformado em estátua. Nova obra do jovem garçom a ser admirada pelos
frequentadores do bar. A próxima vítima é uma modelo. Assim, o jovem escultor
descobre que sua obra depende de assassinatos. Suas obras passam a valer
fortunas no mercado. É um novo realismo. Seu patrão e Carla descobrem que as
esculturas escondem seres mortos. A polícia o persegue. A fuga é sensacional. A
trilha sonora idem. O final é quase previsível.
“Um balde de sangue” é um filme de
humor negro com cerca de 60 minutos. Produção de baixíssimo orçamento, a
filmagem exigiu apenas cinco dias. Os cenários dele serão aproveitados em “A
pequena loja dos horrores”. Corman imprime um ritmo perfeito ao filme. A
fotografia em preto-e-branco é ótima em seus claros-escuros. Ele filma bem.
Seus enquadramentos são geniais. O filme vem agradando aqueles que apreciam
cinema.
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes,
03 a 05 de junho de 2024
Einstein e os macacos
Edgar Vianna de Andrade
Estudos
sobre o comportamento social de uma espécie de macaco do Japão revelaram o que
acontece com quase todas as espécies de símios no mundo: um macho alfa procura monopolizar
todas as fêmeas adultas e formar um harém. Os outros machos vivem em torno dele
e praticam pequenas traições, que são perdoadas pelo chefe se o traidor se
submeter simbolicamente. Afastados do núcleo, ficam os macacos jovens. Mais
afastados ainda ficam os macacos marginais. A novidade é que, entre os
afastados e marginais, o ambiente para inovações é considerável. Essa espécie
de macaco japonês se alimenta de um tubérculo do qual a terra é tirada com a
mão. Certo dia, um macaco jovem deixou cair o tubérculo no mar e descobriu que
a água tirava a terra do alimento e ainda o temperava. A inovação foi adotada
pelos demais jovens e, quando um deles assumiu o comando do grupo, ela foi
imposta ao demais.
Tem-se
essa concepção dos jovens humanos: as inovações são mais comuns entre os jovens
por serem eles mais curiosos e arrojados. O roteiro do filme “Além da
escuridão” (“Teenage Caveman”),
dirigido por Roger Corman e lançado em 1958, tem como centro a curiosidade
juvenil. Trata-se de um filme de baixo orçamento, como a maioria dos filmes
dirigidos pelo rei do filme B. Robert Vaughn, em início de carreira, representa
um jovem rebelde que transgride as normas do grupo, levando outros jovens com
ele.
O filme é ambientado
num passado confuso. Onde estamos? Pela briga de dois animais que nunca
existiram, estaríamos no tempo dos dinossauros. Um parece um lagartão e o outro
é uma mistura de dimetrodonte com crocodilo. Mas, pela presença de humanos que
vivem da caça e habitam cavernas, trata-se do paleolítico. Ao mesmo tempo, o
conhecimento da roda nos remete ao neolítico. A mistureba de idades só nos
permite afirmar que o filme se passa nos primórdios da história humana e
pré-humana. E ainda há cães e cavalos que aparecem desnecessariamente. O jovem
quer conhecer a região proibida, que fica além de um rio. Ele passa a fronteira
interditada e é julgado pela transgressão. O pai o defende. A mocinha (ainda
namorada ou esposa?) anda apreensiva com ele. O chefe da tribo (?) o perdoa,
mas que a desobediência não se repita.
Tudo inútil. A
curiosidade do jovem é incontrolável. Observe-se que o filme a valoriza.
Afinal, ele foi produzido no tempo da juventude transviada. Ser jovem era algo
a ser valorizado. Finalmente o rapaz desobediente descobre o mistério: o
território proibido era habitado por um monstro. Não. Tratava-se de um homem
sob uma pele de animal ou coisa parecida. Um jovem mais afoito o mata com uma
lança. Então, aparece algo muito estranho para aquele tempo: um álbum de
fotografias. Elas retratavam uma guerra atômica. Certa vez, perguntaram a Einstein como seria uma terceira
guerra mundial. Ele respondeu que só sabia como seria a quarta: com
arco-e-flecha.
A
surpresa do filme fica por conta do seu final. Ele não é ambientado no passado,
mas no futuro. O roteiro mostra uma sociedade vivendo depois de uma guerra
nuclear e não mais se lembrando dela. Novamente, Corman produz um libelo contra
a energia nuclear usada para fins bélicos, como fez em “O ataque dos
caranguejos monstruosos”, também dirigido por ele e lançado em 1957.
Ressalte-se
a capacidade de Corman em filmar bem com baixo orçamento. Ele é criativo,
visando sempre o público comum. Nada de muita arte num filme que, afinal, tem
qualidades artísticas.
Edgar
Vianna de Andrade - Presença de Jacques Tati Folha1 - Artigos
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 17 de julho de 2024
Presença de Jacques Tati
Edgar Vianna de Andrade
Jacques
Tati (1907-1982) parece ter tentado criar um personagem de humor como Carlitos,
Buster Keaton e Harold Lloyd. Seria a França dando a sua contribuição para a
comédia no cinema. Ele chegou tarde e não conseguiu o sucesso alcançado pelos
Estados Unidos. Os curtas “On demande une brute” (1934), “Gai dimanche” (1935),
“Cuida da tua esquerda” (1936) e “Escola de carteiros” (1947) não criaram um
personagem. Mas revelaram seu caráter de mímico e a grande agilidade de Tati.
“Carrossel
da esperança” (1949), seu primeiro longa, retoma o personagem do carteiro
diligente e atrapalhado que se esforça por imitar um carteiro norte-americano.
Algumas cenas de “Escola de carteiros” são retomadas no filme. Tati começa a
revelar suas qualidades de comediante e diretor. “Carrossel da esperança” foi
filmado em preto-e-branco e em cores. Esta segunda versão foi encontrada muitos
anos depois. Foi o primeiro filme em cores da França. A restauração foi um
trabalho de pesquisa e de artesanato. Mas Tati ainda não encontrara seu lugar.
Finalmente,
em “As férias do senhor Hulot” (1953), ele cria um personagem que vai
imortalizá-lo como um dos grandes comediantes do cinema. Hulot é um homem
desajeitado e trapalhão fora do seu tempo. Ele não faz crítica explicita à
modernidade, mas, com simplicidade, mostra que os tempos modernos excluem o ser
humano. Hulot vive o presente como se estivesse no passado. Daí as situações
cômicas que ele cria.
Em
“Meu tio” (1958), Hulot alcança seu momento mais lírico. O filme tem um roteiro
explicito. É claro o contraste de uma França antiga e uma França que se
americaniza. Hulot vive uma vida simples, morando numa casa com acesso
complicado. Sua irmã casou-se com o executivo de uma empresa de tubos de
borracha que, para demonstrar sua posição social, tem uma casa toda
automatizada e um automóvel moderno. O filho do casal gosta do tio porque ele
representa a liberdade e a simplicidade. Até mesmo o cachorro do casal gosta da
liberdade que Hulot lhe proporciona de viver entre vira-latas.
Mas
o executivo considera Hulot um vagabundo e mau exemplo para o filho,
conseguindo-lhe um emprego na fábrica de tubos. As cenas decorrentes de um
desajeitado tentando um emprego moderno são impagáveis. O filme mereceu um
Oscar e rendeu recursos de bilheteria.
Num
esforço descomunal, Tati reuniu todos os seus recursos para “Playtime” (1967),
filme ambicioso. Para tal, construiu uma cidade a fim de fazer um filme
“limpo”, em que entrasse apenas o que o diretor desejava. Mais uma vez, Hulot
se movimenta num mundo moderno de modo antigo. Não há crítica explícita à
modernidade, como em “Tempos modernos”, de Chaplin. Hulot se limita a criar
situações impagáveis num mundo dominado por uma tecnologia que ultrapassa a
escala humana. Quem se formou num mundo analógico entenderá bem as dificuldades
de Hulot num tempo que ainda não é digital.
O
filme não foi bem de bilheteria. Começa o declínio de Tati, que morrerá
endividado. O curta “Aula noturna”, de
1967, nada acrescenta à sua filmografia, sendo mesmo uma espécie de retorno a seus
primórdios. Mas seu personagem marcante retorna em “As aventuras do sr. Hulot
no tráfego louco” (1971). Ele não mais financia seus filmes, mas continua a
viver à moda antiga num mundo novo. Um traço que observei na filmografia de
Hulot e que ainda não encontrei comentado: sua relação com as mulheres. Elas
são moças esbeltas e discretas que entram na vida do comediante, produzindo uma
forma de encantamento. Mas não existe aproximação mais íntima.
Por fim, “Parada” (1974), seu canto do cisne. O centro do filme não é
mais o senhor Hulot, mas o próprio Jacques Tati, que, aos 67anos, demonstra
toda sua agilidade e capacidade mímica. Ele volta aos tempos em que imitava
lutadores de boxe e tenistas, além de outros. O filme foi produzido na Suécia.
É pequena a filmografia do grande diretor e ator francês.
https://www.folha1.com.br/artigos/2024/07/1300836-edgar-vianna-de-andrade-homem-cinema.html
Folha da Manhã, 31 de julho de
2024
Homem Cinema
Edgar Vianna de Andrade
Concluindo
a homenagem a Roger Corman, recentemente falecido aos 98 anos, não sem razão
ele foi admirado pelos maiores diretores de Hollywood. Corman começou no porão
dos estúdios. Carregava cenários, varria sets de filmagens, atuava em caso de
necessidade, produzia e dirigia filmes, lançava atrizes, atores e diretores.
Era alegre, sorridente, simpático e generoso. Imortalizou-se dirigindo filmes
com baixo orçamento, mas era capaz de dirigir bem filmes com altos orçamentos.
Até
quanto a sua origem como diretor, paira divergência. As páginas oficiais dizem
que seu primeiro filme foi “O monstro de um milhão de olhos”, de 1956 e não
creditado. Outros mencionam “Cinco revólveres mercenários”, de 1955. Em seis
anos, entre 1955 e 1960, ele dirigiu 28 filmes, todos considerados filmes B.
Ele se movimenta em todos os tempos e espaços e se sai bem em todos os gêneros.
Os básicos são drama e comédia, que ele frequenta com desenvoltura. Faz filmes
ambientados nos dias de hoje e no planeta Terra, mas pode ir ao passado para
filmar mulheres e homens vikings ameaçados por um monstro marinho. Retrata a
juventude em filmes de costumes. Vai ao espaço registrar uma guerra de
satélites ou focar um invasor espacial. Retorna ao passado humano remoto, que,
na verdade, é o futuro da humanidade depois de nova guerra atômica. Mostra o
perigo das experiências científicas, sobretudo as com energia nuclear.
Mostra
como fazer humor negro em “Um balde de sangue” e “A pequena loja de horrores”.
Ambas com baixíssimo orçamento e produzidos em uma semana. Até 1960, seus
filmes estão voltados para os cinemas baratos e para o público pouco exigente.
Este também merece atenção e respeito. Mas, em todos, deixa sua marca de cineasta,
marca esta reconhecida logo depois por grandes diretores. Corman vai ao cerne
dos interesses norte-americanos médios.
Na década de 1960,
grande é sua dedicação a filmes de terror com base em Edgar Alan Poe, autor que
muito admirava. Os filmes ganham uma roupagem que os caracterizariam como
góticos, embora essa expressão não seja das melhores. No entanto, é agraciado
com grande orçamento para dirigir “O massacre de Chicago”, em 1967. A
reconstituição dos anos 1920 é perfeita. A luta entre mafiosos pelo poder é
documental. Cada membro da máfia merece pequena biografia de um narrador. O
filme culmina com o massacre de São Valentin, pelos capangas de Al Capone. Logo
em seguida, em outro filme de alto orçamento, ele lança “O cinco de Chicago”,
(“Bloody mama”), com antológica interpretação de Shelley Winters, contracenando
com Robert de Niro num de seus primeiros filmes.
Depois de dirigir “Frankenstein - terror das trevas”, em 1990,
Roger Corman torna-se apenas produtor. Nesta condição, ele não deixa de também
dirigir, pois escolhia o livro a ser roteirizado, o diretor do filme, o
cinegrafista e os artistas. Procura seguir as ondas do momento, como animais
monstruosos e ameaçadores do presente, dinossauros, aventuras espaciais,
super-heróis etc. E sexo, na medida do necessário. Além de ser um professor de
cinema, Corman foi o próprio cinema. Foi um ícone, uma lenda admirada por
muitos.
https://www.folha1.com.br/artigos/2024/08/1301253-edgar-vianna-de-andrade-um-diretor-minimalista.html
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 14 de agosto de 2024
Um diretor minimalista
Edgar Vianna de Andrade
Robert
Bresson nasceu em Bromont-Lamothe, em 1901, e morreu em Paris, em 1999. Até aí,
nada demais. Todos nascem e morrem. Ele foi longevo, algo não muito comum no
século XX. Poucos outros tiveram uma vida longa, como ele. Bresson foi diretor
de cinema. Nada de novo também, pois muitas pessoas foram e são diretores. O
número só aumenta no nosso mundo virtual.
O diferencial é que Robert
Bresson foi um grande diretor. Sua filmografia se limita a 14 filmes. Ele
começou sua carreira em 1934, com o média metragem “Os negócios públicos” (“Les
affaires publiques”) e a concluiu em 1983, com “L’argent”. Contava, então, com
82 anos. Ele estudou artes plásticas e filosofia, mas se interessou por cinema,
começando sua carreira como roteirista. Durante a Segunda Guerra mundial,
Bresson foi prisioneiro num campo de concentração nazista. Essa experiência
marcou sua carreira de cineasta. Sua postura ascética e seu interesse por
literatura marcaram sua obra. Entendendo o cinema como um movimento interior,
ele não tinha a preocupação de se comunicar com o público. Daí sua obra
intimista elogiada pela crítica e desprezada pelas pessoas acostumadas a filmes
populares. Ele não queria ser incomunicável, mas apenas expressar suas
concepções existenciais e estéticas.
Bresson tinha uma forte marca do
catolicismo, mas seu ascetismo levou a crítica a chamá-lo de jansenista,
postura católica do século XVII e XVIII, na França, que se aproximava do
calvinismo em sua atitude moral. No cinema, Bresson traduz essa postura no
minimalismo. Não se trata de um gênero ou de uma escola, como um crítico de
cinema já propôs, mas de uma forma de conceber a obra. Bresson trabalhava com
atores e atrizes não profissionais. Seus roteiros e fotografia são enxutos. Os
filmes são curtos, com cortes e montagem incisivos, fixando-se no essencial,
segundo sua concepção. A fotografia é seca. Ele se expressa de forma magnífica
no preto-e-branco.
Em 1945, Bresson se afirmou como cineasta importante ao lançar “As
damas do bois de Bologne”, com roteiro de Jean Cocteau. O filme se baseia em
“Jacques, o fatalista”, de Denis Diderot, e foi elogiado por François Truffaut.
Mas ainda não estamos diante do enxuto cinema de Bresson. Seu minimalismo
aparecerá em “Diário de um padre” (1951), “um condenado à morte escapou”
(1956), “Batedor de carteiras” (“Pickpockt”- 1959) e “O processo de Joana
D’Arc” (1962), em que ele mostra, em 60 minutos, a paixão da santa francesa a
partir do processo de sua condenação.
De todos, eu seleciono “Batedor de carteiras”, filme curto em que toda
sua técnica de filmar está presente. Ele exigia que atores não profissionais
repetissem as cenas à exaustão para alcançar o resultado esperado. Alguns de
seus filmes foram incluídos em listas dos melhores do mundo. Embora não
integrando o movimento “Nouvelle vague”, Truffaut e Godard o consideravam uma
espécie de pioneiro no novo cinema francês. Eu não hesitaria em incluí-lo nesse
movimento de renovação, recomendando “Pickpockt” como exemplo de sua técnica
primorosa.
Edgar
Vianna de Andrade - A singularidade de Ozu Folha1 - Artigos
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes,
28 de agosto de 2024
A singularidade de Ozu
Edgar Vianna de Andrade
O
mais conhecido filme de Yasugiro Ozu é “Era uma
vez em Tóquio”, de 1953. Quem assiste a esse filme e percebe algo de diferente
no diretor contenta-se com ele. Ozu começou a filmar em 1927. Todos os filmes
desse ano e de 1928 se perderam. Restou apenas “Dias de juventude”. Outros de
anos posteriores também se perderam, assim como, de alguns, restaram
fragmentos. Filmes em película se perdem facilmente por falta de conservação.
Fungos costumam destruí-los. Além do mais, nos primórdios do cinema, ainda não
havia instituições para reuni-los, organizá-los e conservá-los.
Mas, entre “Dias de juventude” e “A
rotina tem seu encanto”, seu último filme, datado de 1962, pode-se acompanhar a
carreira cinematográfica desse grande diretor japonês, que ombreia com Akira
Kuruzawa e com Kenji Mizoguchi. Ozu é um intimista. Kurosawa é um épico.
Mizoguchi um crítico da sociedade japonesa. Cada um expressa uma face da
cultura japonesa contemporânea.
Ozu firma, na década
de 1930, a estética que o imortalizará. Em “Dias de juventude”, ele filma como
um ocidental: câmara em movimento com muita gente em cena. Muita ação. Em “Filho único” (“Hitori musuku”), de 1936,
seu estilo já está definido: câmara parada e baixa, registrando o movimento dos
artistas. A paisagem é também assim enfocada: de baixo para cima. Assim como se
consolidou o plano americano (enfoque de pessoas da cintura para cima), Ozu se
projetou com o plano tatame (câmara parada na altura do chão).
Há cortes na filmagem,
mas passando-se de uma câmara para outra sempre posicionadas no chão e paradas.
Movem-se apenas as pessoas. No geral, o que importa a Ozu é o cotidiano. Nada
de dramas, de cenas grandiosas. Tudo transcorre como acontece no dia-a-dia.
Existem dois mundos interligados: o Japão fora de casa, que já está
ocidentalizado, e o Japão doméstico. No mundo exterior, as pessoas se comportam
como ocidentais. Os homens usam terno e gravata, praticam tênis, golfe e
basebol. Trabalham em escritórios. Entram nos ambientes de trabalho com
sapatos. As mulheres ou se vestem à moda ocidental ou ainda com roupas
tradicionais do Japão.
Mas, ao entrarem no
lar, homens e mulheres tiram os sapatos e ficam descalços ou de meia. O solo do
lar é sagrado. Geralmente, homens e mulheres vestem quimonos no ambiente
doméstico. A família é muito considerada e respeitada. Mas as mulheres não
aceitam as imposições dos homens, pelo menos como no passado. Elas opinam,
discutem, não aceitam passivamente a posição do pai, do irmão e do marido.
O casamento da mulher
ainda é uma questão crucial numa família. Pais e irmãos esperam que a mulher se
case, mesmo que ela não queira. No final, ela aceita sugestões de bons
partidos. Mas há uma espécie de complexo de Electra em vários filmes de Ozu: a
filha gosta da família ou do pai (sobretudo se é viúvo) e não quer deixá-los.
São os casos de “Pai e filha” (1949), “Também fomos felizes” (1951) e de “A
rotina tem seu encanto” (1962). Mas há o caso de os pais se queixarem dos
filhos, como “Era uma vez em Tóquio” (1953). Envelhecimento, atenção, gentileza
e casamento são temas constantes em Ozu. Ele era alcoólatra e essa
particularidade é levada para seus filmes. É muito comum os amigos se reunirem
para beber fora de casa. E acabam embriagados, recebendo reprimendas de esposas
e filhas.
A adoção do filme em
cores não afetou a qualidade da produção de Ozu, como aconteceu com Robert
Bresson. A estética do japonês não era incompatível com o filme colorido. O
primeiro filme em cores foi “A flor do equinócio” (1956). Ele terminou sua
carreira de diretor em 1962, com “A rotina tem seu encanto”, também em cores.
Ozu deixou marcas no cinema oriental com seus roteiros que nada dizem de
especial. Ele não conta nada de extraordinário além do cotidiano que todos nós
podemos viver. No cinema, costumamos procurar ação, o diferente da nossa vida.
Ozu não nos dá esse prazer.
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 11 de setembro de 2024
O monumentalismo de Visconti
Edgar Vianna de Andrade
Acompanho
Luchino Visconti desde a década de 1960. Assistir a um filme dele hoje e outro
anos depois não nos permite tão bem apreciar a sua arte no conjunto. Como o
próprio diretor fez no fim da vida, assisti toda a sua obra recentemente. De
fato, Visconti foi um dos grandes diretores de todos os tempos. Ele é, sem
dúvida, o pioneiro do neorrealismo italiano com “Obsessão” (1943). Num ambiente
de pobreza, um aventureiro se envolve com uma mulher casada. Ambos matam o
marido. O fascismo ainda dominava a Itália. O filme escandalizou. Ele se afirma
no neorrealismo com “A terra treme” (1948), filmado no sul da Itália numa vila
de pescadores. O diretor recorre aos próprios pescadores como artistas.
Integrando uma família italiana nobre, Visconti parecia renunciar as suas origens,
aderindo ao marxismo. Ele continua na trilha do realismo em “Belíssima” (1951),
agora contando com a atriz Anna Magnani para sustentar o filme.
Três
anos depois, ele filma “Sedução da carne”, anunciando o rumo de sua carreira
cinematográfica daí em diante: o monumentalismo, a decadência da aristocracia,
dos valores da alta burguesia, da família tradicional. Ambientado no contexto
da unificação da Itália, no século XIX, uma nobre casada se apaixona por um
militar austríaco que integrava as tropas invasores do norte do país. O militar
era um vigarista. Visconti mostra o declínio da aristocrata. Mas exercita, no
filme, seu gosto pelo luxo dos ambientes, pelos detalhes de roupas, joias,
teatros, palácios, casas de campo. Ele foi acusado de trair o ideário
neorrealista e de revelar suas raízes sociais aristocratas.
Homossexual
assumido, Visconti era um homem culto. Gostava de literatura, artes plásticas e
música erudita. Em 1957, lançou “Noites brancas”, com base em história de
Dostoievski. Em “Rocco e seus irmãos” (1960), ele volta rapidamente ao
neorrealismo pobre, mostrando a mudança de uma viúva com cinco filhos para que
eles melhorassem de vida. Fica evidente o contraste entre campo e cidade. Uma
das obras primas do cineasta é “O leopardo” (1963). Da minha parte, é o filme
que mais me encanta por seu roteiro, pelos atores, pelo contraste entre ricos e
pobres, entre uma Itália dividida que se unia, entre nobreza decadente e
burguesia ascendente. O roteiro baseia-se em “Il gattopardo”, de Giuseppe
Tomasi di Lapendusa. Burt Lancaster está soberbo no papel de Dom Fabrizio Salina, príncipe no reino das Duas
Sicílias que está prestes a ser incorporado à Itália unificada pelo Piemonte.
Ele se destaca por seu realismo e pragmatismo. Ele sabe que as grandes mudanças
mantêm o status quo de outra maneira. É tocante a sua sabedoria política.
Claudia Cardinale também tem um excelente desempenho no papel de filha linda de
um burguês, disponível a se casar por acordo. O monumentalismo do filme
impressiona. Visconti cuida de todos os detalhes.
Em
“As vagas estrelas da Ursa” (1965), o diretor parte para montagens ousadas,
enfocando mais uma vez a decadência da aristocracia e da burguesia. Visconti
combina declínio geológico, urbano e social num claro-escuro que explora os
expressivos olhos de Claudia Cardinale. Em “O estrangeiro” (1967), ele se vale
de Camus para compor o roteiro. Visconti não mais disfarça sua vasta e refinada
cultura. Começa, então, a trilogia alemã, com “Os deuses malditos” (1969),
sobre o nazismo. Na busca de locações para o filme, na Alemanha, ele encontra
paisagens em que ambientará o mais ambicioso filme de sua carreira: “Ludwig”
(1973). O rei da Baviera gostava de artes e de rapazes. O detalhismo do diretor
alcança o auge com figurinos perfeitos e refinada reconstituição de época.
Antes, porém, ele filmou “Morte em Veneza” (1971), filme que mais o revela.
Burt
Lancaster está de volta, mais uma vez de forma estupenda, em “Violência e
paixão” (1974), filme que enfoca o contraste da vida culturalmente solitária de
um homem rico com a vulgaridade dos novos tempos. Por fim, “O Inocente” (1976).
Visconti já estava bastante doente quando concluiu este filme, ficando a nos
dever um sobre Proust.
Edgar
Vianna de Andrade - Os fantasmas sempre se divertirão Folha1 - Cultura &
Lazer
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 25 de setembro de 2024
TRÊS MATEUSINHOS
Os fantasmas sempre se
divertirão
Edgar Vianna de Andrade
Depois
do desastrado “Dumbo” (2019), produzido para a Disney, Tim Burton pensou em se
aposentar. O filme foi um fracasso. Todo o universo mágico criado pelo diretor
estava ausente no filme. Logo depois, ele dirigiu o seriado “Wandinha”, cujo
papel principal fica por conta de Jenna Ortega, e começou a se reerguer.
Ele volta agora com
“Os fantasmas ainda se divertem”, retomando seu humor negro, seu traço gótico
(adjetivo que não me agrada muito) e a homenagem a estilos e diretores, o que
ele havia feito em “Ed Wood”, considerado o pior diretor de todos os tempos.
Ele se destacou como cineasta com “Os fantasmas se divertem” (1988), seu
segundo filme. Vieram depois produções que levaram Burton a ocupar um lugar
ímpar no cinema dos Estados Unidos e do mundo, tais como “Batman” (1989),
“Edward mãos de tesoura” (1990), “A lenda do cavaleiro sem cabeça” (1999), “A
noiva-cadáver” (2004), “A fantástica fábrica de chocolate” (2005) e “Alice no
país das maravilhas” (2010). “A noiva-cadáver” é, por exemplo, uma animação à
altura das primeiras produções da Disney, de Hayao Miyazaki e de Gore Verbinski.
Em “Os fantasmas
ainda se divertem”, Burton volta às origens, dando continuidade ao roteiro de
1988. São quase os mesmos personagens, mas agora envelhecidos e com novos que
nasceram depois. Ele se vale da animação “stop motion”, em que as figuras são
filmadas em posições distintas e depois reunidas para obter movimento. E o
humor transborda. Ele coloca em primeiro plano Winona Ryder, uma mulher que faz
um programa de televisão acerca do sobrenatural, mas sua hipersensibilidade a
leva a ver fantasmas, e Jenna Ortega, sua filha, adolescente materialista. O
filme gira em torno das duas.
Burton usa cenários
que evocam o expressionismo alemão. Em alguns momentos do filme, ele se vale de
cenários que parecem saídos de “O gabinete do Dr. Caligari”. Homenageia também
o terror gótico do cineasta italiano Mario Bava, um dos mestres do cinema de
baixo orçamento. O centro do filme é a casa em que se reúnem três gerações da
família Deetz. Lydia Deetz (Winona Ryder), agora adulta, é mãe da adolescente
Astrid (Jenna Ortega) e a avó Delia Deetz (Catherine O'Hara) Duas viúvas e uma
solteira. Esse trio de mulheres domina o filme. No mundo dos mortos, o
bem-humorado fantasma Beetlejuice (Michael Keaton) rouba a cena. Ele é invocado
no sótão do soturno casarão. É o caminho que ele encontra para fugir da noiva
Delores (Monica Bellucci), que evoca Morticia Addams. Embora fantasma, Bellucci
monta seu corpo esquartejado com um grampeador e procura Beetlejuice para se
vingar. Já com meia idade, Bellucci estampa sua beleza italiana. Desempenha bem
o papel de perseguidora, mas aparece pouco no filme. O mesmo pode ser dito a
respeito do onipresente Willem Dafoe, que represente um detetive do mundo dos
mortos.
A retomada do
universo mágico de Burton recoloca no cinema a estética que tão bem caracteriza
o diretor. É algo só dele reunir sobrenatural, humor, fantástico e tecnologias
já superadas pelo cinema, dando aos filmes um toque de magia. Pena que ele
tenha lidado com muitas histórias paralelas com personagens interessantes. Eles
mereceriam filmes futuros, como o caso de Bellucci evocando Anjelica Hustoun,
com seu corpo opulento e sinuoso, e Willem Dafoe.
Pelas mãos de
Burton, os fantasmas sempre se divertirão.
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 09 de outubro de 2024
(TRÊS MATEUSINHOS)
Acaso repetido
Edgar Vianna de Andrade
Woody
Allen foi um dos meus cineastas favoritos por muitos anos. Desde seu primeiro
filme, em que atuou como roteirista e ator, a história (literatura) ocupa o
primeiro plano. Ele filma bem, mas não ultrapassa muito o roteiro, sempre
bastante inteligente, mesmo depois de parecer cansado com a idade e com as
acusações de pedofilia por sua ex-mulher. Essas acusações dispensam provas e
podem acabar com a vida de uma pessoa.
Allen
foi cancelado por algum tempo. Atores e atrizes politicamente corretos não
queriam mais trabalhar com ele. Mesmo assim, o diretor continuou dirigindo
filmes geralmente financiados por governos de outros países. Andou pela Inglaterra,
França, Itália e Espanha, prometendo filmar no Brasil. Ficou só na promessa.
Seu
mais recente filme, lançado neste 2024, foi rodado na França em 2023. Trata-se
de “Golpe de sorte em Paris”, um típico filme do cineasta, hoje com 88 anos de
idade. Allen destacou-se mais com o gênero comédia que com o drama, mas
trabalhou bem com os dois. Os casamentos do diretor sempre envolvem traição à
moda antiga. Fanny (Lou de Laâge) e Jean (Melvi Poupaud) parecem um casal
perfeito. Ele é um homem de sucesso cujo caráter está acima de qualquer
suspeita. Mas não é bem assim. Olhemos os bastidores. Fanny encontra Alain
(Niels Schneider) um ex-colega de colégio, agora escritor. Ela não resiste ao
jogo de sedução dele. O romance de ambos é previsível. Ele precisa acontecer
para que o roteiro possa se desenvolver.
E,
como em “Match point” (2005), um grande drama de Allen, o acaso entra em cena.
Por mais que o filme se pareça com uma tragédia grega, a imprevisibilidade
coloca a história no contexto do princípio da incerteza, formulado por
Heisenberg na década de 1920. Por ele, nunca se sabe qual será exatamente a
reação a uma ação. Em “Match point”, um homem casado se envolve com uma linda
mulher. Ela fica grávida, comprometendo o casamento dele, que lhe proporcionou
ascensão profissional. Só lhe resta uma saída: matar a amante. Para tanto, ele
se vê obrigado a matar uma senhora que nada tem a ver com o drama. Efeito
colateral, como ele define. A prova do crime é um anel lançado no rio Tâmisa,
mas que bate na proteção marginal, como uma bola de tênis bate na rede, não se
podendo definir se cairá no campo adversário ou no campo do lançador. O
detetive que cuida do caso elucida o crime num sonho, mas o anel foi encontrado
por um mendigo, que passa a ser acusado pelos dois assassinatos. O assassino
está salvo.
Em
“Golpe de sorte em Paris”, há muito golpe e pouca sorte. O marido milionário é
um assassino de casaca. Matou seu sócio e o amante da mulher em crimes que
parecem perfeitos. Suspeitando de coincidências, sua sogra (sempre elas) entra
em cena. Ela está muito perto da verdade. Deverá ser a próxima vítima em mais
um assassinato perfeito. Mas, dessa vez, a bola de tênis cai no campo do
lançador. O acaso transformará o assassino em vítima. Woody Allen se repete,
demonstrando seu cansaço. É difícil uma pessoa criativa aceitar o momento de
parar.
Folha da
Manhã, Campos dos Goytacazes, 23 de outubro de 2024
O pior
cineasta do mundo
Edgar
Vianna de Andrade
À procura de cineastas que criaram
linguagem estética própria, assisti a vários filmes de Tim Burton. Entre eles,
“Ed Wood”, de
1994, estrelado por Johnny Depp, seu ator predileto. De fato, Ed Wood dirigiu
filmes péssimos, mas conheço coisas piores. “A
geladeira diabólica” (1992), “O horror vem do espaço” (1958), “O
ataque das sanguessugas gigantes” (1959), “As felinas da Lua” (1953) e o
insuperável “Manos: as mãos do destino” (1966). O
apreciador de filme B ou de “trash” está desafiado a assistir a esses filmes,
que vi em 2020, por ocasião da reclusão provocada pela pandemia causada pela
Covid-19.
De todos os filmes dirigidos por Ed
Wood, considero “Glen ou Glenda” (EUA, 1953) uma produção muito corajosa para a
época. Tendo Bela Lugosi, seu artista predileto, como uma espécie de comandante
dos destinos humanos, Wood mostra o seu próprio drama. Embora fosse
heterossexual, ele gostava de se vestir de mulher. Daniel Davis faz o seu papel
e Dolores Fuller o de sua mulher, ela que foi a primeira esposa do cineasta. O
filme promove uma discussão sobre as diferenças entre travesti, homossexual e
hermafrodita. Seu caráter didático compromete a narrativa fílmica, quase
beirando o documentário. Gêneros que não o masculino e o feminino eram, na
época, considerados crime ou pecado, como se tratasse de uma perversão
praticada por escolha pessoal.
“A face do crime” (EUA, 1954) conta
novamente com Dolores Fuller e marca a estreia de Steve Reeves, mostrando o
físico que o celebraria depois no papel de Hércules e de outros heróis
musculosos. Lugosi não está presente neste. O roteiro gira em torno de ladrões
assassinos e de cirurgias plásticas feitas de improviso na casa do paciente,
contando apenas com um médico e uma enfermeira.
Em “A noive do mostro” (EUA, 1955),
Lugosi retorna como cientista maluco. Na verdade, a noiva seria do átomo não se
sabe como. Dolores Fuller mais uma vez comparece. Tor Johnson é o mostro. Um
fiel servidor de Lugosi, o cientista maluco e ambicioso que mora num casarão
abandonado no campo. O cartaz do filme é típico da época: um homem com
fisionomia de louco carregando nos braços uma mocinha desmaiada, vestida com
uma combinação sensual que realça os seios.
O mais conhecido e cultuado filme de
Wood é “Plano 9 do espaço sideral” (EUA, 1959), que ele considerava a sua obra
prima e o seu “Cidadão Kane”. De todos, é o mais desastrado, mas também o mais
cultuado. Lugosi morreu no início das filmagens e será substituído por um ator
que precisa esconder o rosto com um pano estendido no braço. Os discos voadores
sobre Hollywood são manejados como marionetes e oscilam pra cima e pra baixo.
Seus tripulantes têm o poder de ressuscitar mortos recentes. O substituto de
Lugosi é um deles, assim como Vampira e Tor Johnson. A cabine de um avião é
improvisada, parecendo um banheiro. Os diálogos são artificiais. O roteiro não fecha.
Não se sabe o que os ETs desejam. Parece que apenas o reconhecimento de que
existem pelos terráqueos. Não se sabe também exatamente como são derrotados.
No entanto, o filme se tornou um
clássico na categoria B, ou seja, de baixo orçamento.
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 06 de
novembro de 2024
A invenção do cinema
Edgar Vianna de Andrade
Por volta de 30 mil anos passados, os hominídeos,
já na sua feição sapiens, começaram a desenhar e a pintar. A arte era bastante
analítica, dando ideia de movimento. As sociedades neolíticas conferiram um
traçado geométrico ao desenho e à pintura, conferindo-lhes formalismo. As
diversas civilizações criaram imagens de acordo com sua visão de mundo. O
renascimento, um dos primeiros momentos da globalização ocidental, inventou a perspectiva
aérea combinada com a perspectiva linear. Ou seja, a noção de volume e de
profundidade. Três dimensões em duas. Enganava-se o espaço e o apreciador.
Em 1827, a fotografia já tinha sido inventada. A
imagem quer ganhar movimento de verdade. O primeiro passo para isso foi dado
pelo suíço Rudolphe Töpffer, que criou a primeira história em quadrinhos, que
se saiba até aqui. O personagem principal chamava-se Monsieur Jabot. O desenho
era ainda tosco, com as legendas escritas ao pé dos quadros. Onde estava a
novidade? Na ideia de sequência. Entre um quadrinho e outro, pressupunha-se
outros, que não apareciam.
Muitos inventores estavam correndo para criar a
imagem em movimento. Entre eles, Thomas Edison, George Eastman, W.K.L. Dickson,
Louis Le Prince, Louis e Auguste Lumière, R. W. Paul, Georges Meliès, Francis
Dublier, G. A. Smith, William Friese-Greene e Thomas Ince.
Em 1884, George Eastman inventou o filme de rolo em
Nova Iorque. Na mesma década, Edison e W.K.L. Dickson criaram um modo de girar
uma série de imagens estáticas numa caixa, dando a ilusão de movimento. Estava
inventado o cinetoscópio. No fim da década de 1880, na Inglaterra, Le Prince
patenteou um engenho bastante promissor para os primórdios da imagem em
movimento. Georges Eastaman inventou o filme com furos nas margens, prendendo
um rolo dele na câmera. Graças ao concurso desses homens todos, a fotografia em
movimento foi inventada.
É muito comum sustentar-se que o primeiro filme da
história foi criado pelos irmãos Lumière. A data oficialmente tomada para a
história do cinema foi o dia 28 de dezembro de 1895, quando os irmãos exibiram
suas experiências cinematográficas, entre elas o famoso filme num só plano “A
chegada de um trem à estação de La Ciotat”. Em dois anos, o filme correu o
mundo e assustou muita gente, por se supor tratar-se da verdade em movimento.
Assistir a um filme exigiu uma grande aprendizagem, pois era uma nova linguagem
técnica e artística. As três primeiras décadas do século XX foram cruciais para
consolidar essa linguagem.
Embora não se possa negligenciar a importância dos
Lumière, descobriu-se recentemente que o primeiro inventor a conferir movimento
à fotografia foi Louis Aimé Augustin Le Prince. Em outubro de 1888, ele filmou
imagens em movimento que originaram os filmes mais antigos por enquanto
conhecidos. Foram “Cena no jardim Roundhay” (“Roundhay garden scene”) e
“Cruzamento de trânsito Leeds Bridge” (“Traffic crossing Leeds Bridge”), usando
uma câmera de lente única com uma película de papel. Só recentemente foi
reconhecido o pioneirismo de Le Prince.
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 20 de novembro de 2024
Roteiro e atuação
Edgar Vianna de Andrade
Desde
sua origem, cinema foi mais visto como entretenimento do que como arte. A
locomotiva dos Irmãos Lumière valeu mais pelo susto causado no auditório do que
pela inovação técnica que inaugurava uma nova arte. Claro que muitos diretores
e estudiosos viram na fotografia em movimento um grande potencial artístico. E
ele foi desenvolvido por vários artistas em vários países, criando estilos estéticos.
Mas,
no fim, prevaleceram os interesses comerciais de oferecer ao público um
divertimento que se resume em valer-se de artistas e de roteiro. O cinema,
assim, reduz-se ao teatro e à literatura. Se existe algum uso artístico da
fotografia em movimento (da fotografia estática, pode existir com mais
frequência), ele é quase despercebido. Se é frequente, o filme acaba não
agradando.
Assim,
o cinema se traduziu num entretenimento em que a literatura (roteiro) e atuação
(teatro) não precisam e não devem ser complexos. Entende-se perfeitamente a
exigência da maioria que frequenta cinemas ou vai para a televisão em busca de
filmes palatáveis. E não é só apenas o grande público, mas também o crítico de
cinema, que também acaba comentando o roteiro e a atuação.
Depois
de ganhar o Osella de Ouro de
Melhor Roteiro no Festival de Veneza, “Ainda estou aqui”, dirigido por Walter
Salles, pareceu ser um filme convencional que aborda um tema polêmico nos dias
de hoje: a trajetória do engenheiro Rubem Paiva depois de voltar ao Brasil, já
tendo sido cassado como deputado federal pelo regime militar instalado em 1964.
Polêmico porque o mundo e o Brasil estão polarizados entre democratas e
autoritários. Os primeiros entendem que o regime militar chegou ao poder por um
golpe e se manteve nele por uma ditadura. Os segundos fazem a apologia dele,
dizendo que a intenção era estrangular o perigo do comunismo. O argumento
talvez se sustentasse na época. Hoje não mais. E o filme mostra uma família
comum de classe média. Como a maioria das famílias que frequenta o cinema.
Baseado
no livro de Marcelo Rubem Paiva com o mesmo título do filme, “Ainda estou aqui”
não se resume ao excelente desempenho do elenco, tendo à frente Fernanda
Torres, nem ao roteiro enxuto (não li o livro), merecendo destaque o trabalho
da câmara. Na primeira parte do filme, ela se movimenta de maneira frenética,
com closes dinâmicos, com aproximações e afastamentos, com luz e penumbra. Não
apenas o roteiro fala de um momento de medo e ansiedade. O movimento da câmara
reforça a fala e o silêncio.
E,
na segunda parte do filme, com o crime quase resolvido, a câmara passa a se
movimentar de forma equilibrada, mostrando que os tempos mudaram.
E
o que me chamou a atenção, por fim, foi o interesse das pessoas pelo filme. Sei
que a propaganda pela televisão ajudou muito. Mesmo assim, eu não esperava uma
procura tão grande. Tive dificuldade de conseguir ingresso. Embora não
recorrendo a cenas explícitas de tortura, como acontece em outros filmes, a
sutileza com que a violência é apresentada atraiu a atenção de muita gente que
não viveu nos anos de chumbo. A maioria nem sabe por alto o que aconteceu.
Rubem Paiva teve um filho escritor que narrou sua trágica história. Imaginem os
muitos que sofreram e apenas são lembrados pela família...
https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/12/1304203-edgar-vianna-de-andrade-o-primeiro-filme-sobre-frankenstein.html
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 04 de
dezembro de 2024
O primeiro filme sobre Frankenstein
Edgar Vianna de Andrade
Temos entusiasmo e medo da ciência por se crer que
ela ajudará a humanidade, mas, ao mesmo tempo, separou-se da religião e da
ética. Todas as culturas desenvolvem ciência porque é necessário conhecer o
mundo para viver nele. Os etólogos (estudiosos do comportamento animal)
sustentam até que qualquer ser vivo, do uni ao pluricelular, precisa de alguma
forma aprender a viver em seu meio. O conhecimento que as civilizações
anteriores à atual globalização desenvolveram estava subordinado à religião e à
ética. O saber dos seres vivos não vai além dos seus limites naturais. Uma
ariranha nunca aprenderá a ser corrupta. No século XV e XVI, o processo de
globalização, ou seja, de expansão do ocidente capitalista pelo mundo, já havia
começado, mas havia ainda medo de uma ciência livre de freios religiosos e
éticos. Nos seus escritos, Américo Vespúcio revela um excesso de conhecimento
adquirido em várias viagens pelo “novo mundo”, mas alertava que havia limite ao
saber.
Com René Descartes, a ciência se liberta da
religião e da ética. O filme “O outro lado da nobreza” (1995) retrata bem o
clima ainda reinante na Idade Moderna quanto ao corpo humano. Ele era sagrado e
não podia ser mutilado por qualquer cirurgia. No filme, um médico toca no
coração de um homem cujo peito estava aberto por ferimento de guerra. Os
colegas se espantam com a ousadia do médico. Ele estava transgredindo o
sagrado. Ele estava profanando o centro da vida. Esse médico se movimentava no
ambiente cartesiano.
Mas a ambiguidade diante da ciência continuou
depois da revolução científica do século XVII. As pessoas se dividiam entre
idolatrar e temer a ciência. O romance gótico “Frankenstein ou o moderno
Prometeu”, de Mary Shelley, externa esse medo. Para os apressados, o monstro
criado pelo Dr. Frankenstein, que acabou por receber o nome do seu criador,
enquadra-se no gênero “terror”, como todos os filmes a que ele deu origem.
Considero-o ficção científica tanto quanto os filmes que ele originou. Um
médico reúne partes de cadáveres humanos e monta um corpo que ganha vida com a
energia elétrica dos raios. Ele encarna a própria ciência e os males que ela
pode produzir. Ele tem boa índole inclusive. Era bom. Mas sente falta de pais,
assim como uma criança gerada por espermatozoide de banco de esperma pode
sentir. Ele se juga monstruoso, assim como uma criança vítima da talidomida ou
da radiação nuclear. E tudo por causa da ciência. Ao ser destruído o monstro, a
própria ciência é destruída. Vivemos esse dilema nos dias atuais com os frutos
da genética, por exemplo.
Talvez nem a própria Mary Shelley tivesse
consciência do alcance do seu livro, que se tornou famoso. Ela era uma
pós-adolescente que escreveu o livro numa aposta de quatro pessoas, inclusive
seu marido. Só ela levou a aposta a sério. Assim, nasceu um dos mais populares
alertas quanto à ciência descontrolada. O mesmo pode-se afirmar de “O Estranho
Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, de Robert Louis Stenvenson, conhecido como “O
médico e o monstro”, publicado depois do romance de Mary Shelley, na segunda
metade do século XIX.
Ambos foram muito popularizados por uma série de
filmes. O medo expresso pelos dois livros tornou-se apenas um bom tema para o
cinema. O primeiro filme sobre a história do monstro criado pelo Dr.
Frankenstein data de 1910. Ele foi dirigido por J. Searle Dawley para os
Estúdios Edison, dos Estados Unidos. Como o cinema ainda não contava com muitos
recursos técnicos, a história tomou os momentos mais significativos do livro e
os levou ao filme de celuloide. Ele foi produzido em três dias em Nova York.
Nos seus 12:20 minutos, ele retrata o dr.
Frankenstein viajando para estudar; ele já formado promovendo pesquisas; a
criação do monstro; seu retorno para casa; seu casamento; a chegada da criatura
à procura do criador; sua aparição à noiva e finalmente seu desaparecimento ao
entrar num espelho.
Os créditos são divulgados no final. O principal
nome é o de Mary Fuller, que começou no cinema em 1907. Em 1910, foi contratada
para o papel da noiva do dr. Frankenstein. Ela atuou em mais de duzentos filmes
e encerrou sua carreira em 1917, antes da fase áurea do cinema. Mary morreu em
1973 e se tornou bastante popular por atuar em “What happened to Mary”.
Mas a figura do monstro de Frankenstein só se
popularizou mesmo com o filme “Frankenstein”, dirigido por James Whale em 1931.
Ele abriu a porta para uma série de filmes desdobrando a figura do monstro,
que, no filme de 1931, foi representado por Boris Karloff. Vindo do cinema
mudo, o artista se imortalizou.
https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/12/1304488-edgar-vianna-de-andrade-primordios-da-comedia-romantica.html
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 18 de dezembro de 2024
Primórdios da comédia romântica
Edgar Vianna de Andrade
Alguns esboços de
comédia romântica e da emancipação feminina no cinema podem ser encontrados nas
origens da nova arte. No entanto, creio que nenhum outro filme da época foi
mais explícito quanto “Eu não quero ser um homem” (no original, “Ich möchte
kein mann sein”), do genial Ernst Lubitsch, de 1918. O cineasta ainda vivia na
Alemanha, de onde se transferiria para os Estados Unidos na década de 1920,
tornando-se um dos maiores cineastas de todos os tempos.
Não
sei se movimento passageiro ou progressivo, o feminismo devia olhar para esse
filme de 45 minutos produzido há mais de um século, no último ano da Primeira
Guerra Mundial. Lubitsch escalou a atriz Ossi Oswalda para o papel de mocinha
rebelde. Oswalda e Pola Negri serão suas prediletas na fase alemã. Ambas
figuraram em várias produções do diretor.
O
filme começa com a moça jogando e fumando entre homens. A criada da família a
repreende por seus modos liberais e masculinos. No entanto, a criada
experimenta o cigarro na sua solidão. Em casa, Ossi entorna um cálice de
bebida. O pai a surpreende e a adverte. Longe de qualquer olhar, o pai faz o
mesmo. Além de mostrar a emancipação feminina, já em curso naquele tempo, o
filme mostra também a hipocrisia dos mais velhos. O fim da Belle Époque começou
a liberar as mulheres.
Para
controlar a menina levada, sua mãe contrata um preceptor a fim de domar a filha
e formar uma dama de sociedade. Curt Goetz faz o papel
do professor autoritário. Oswalda se pergunta por que nasceu mulher. Ela
gostaria de ser um homem para gozar de mais liberdade. Então, decide se
travestir. Não se trata de transexualidade, mas de experimentar o papel
masculino. É antigo o tema de mulher vestida de homem. Ele está presente na
cultura popular e erudita. Vejam-se os casos de Joana D’Arc e do romance entre
Diadorim e Riobaldo em “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa.
Disfarçada de homem, Oswalda
frequenta um bar superlotado de homens e mulheres de má reputação. Ela não
convence o espectador de hoje quanto ao seu papel masculino. Lá, ela encontra seu
professor e acaba se envolvendo amorosamente com ele. Em vários filmes de
Lubitsch, os homens se beijam, mas não de forma erótica. Aqui, temos um homem
já embriagado com uma mulher, também embriagada, que ele julga ser um homem de
verdade. Pode-se recorrer à interpretação de que bêbado beija até cachorro.
Trata-se de um caso de homossexualismo retratado com ousadia no longínquo ano
de 1918, mas de forma tal que o público da época não censuraria. Afinal, ele
está embriagado e sua masculinidade percebe uma mulher dentro de trajes
femininos. O diretor trabalha bem o relacionamento. Goetz não sabe que o homem
com quem troca carícias eróticas é uma mulher, mas o espectador sabe.
Nos anos de 1950, Alfred Kinsey
divulgou sua famosa escala de orientações sexuais com sete posições. No zero,
está o exclusivamente heterossexual. No 6, está o exclusivamente homossexual.
No meio, há várias combinações. Há situações em que o mais convicto
heterossexual tem descuidos homossexuais, como na embriaguez, por exemplo. Ele fica
vulnerável com outro heterossexual, trocando abraços e carícias. Lubitsch fugiu
da crítica exatamente colocando dois homens nessa situação, sendo que um deles
é uma mulher disfarçada.
No filme, há ainda a antológica cena
de homens sob a sacada de Ossi, desejando lhe fazer uma serenata. Com suas
bengalas usadas como símbolo fálico, eles sugerem o que desejam com a moça. Por
fim, ela e Goetz se enamoram. Ela não gostou do papel de homem. Cabe uma
leitura conservadora também: “É bom ser homem por alguns momentos, mas é melhor
ser mulher.”
https://www.folha1.com.br/cultura_e_lazer/2024/12/1304759-edgar-vianna-de-andrade-lenin-trotsky-stalin.html
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 31 de dezembro de 2024
Lenin – Trotsky – Stalin
Edgar Vianna de Andrade
Yakov Protazonov pode ter atuado como ator e ter dirigido muitos filmes
na era do cinema mudo, mas o trabalho que o tornou conhecido foi, sem dúvida,
“Aelita, a rainha de Marte”, de 1924. A princípio, o espectador pode pensar que
se trata de uma comédia futurista. Ao assistir ao filme, depara-se com um
drama, ou mais de um, vivido na construção do socialismo. A Rússia se
recuperava ainda da revolução de 1917, do cerco promovido pelo ocidente (Cordão
Sanitário) e da contrarrevolução dos russos brancos.
Nesse
contexto, Protazonov mistura realidade, fantasia, sonho e receios. Um cientista
conceituado trabalha num projeto de construção de uma nave espacial. Sua
ambição é chegar a Marte. No final, ele acaba sozinho, pois acredita que foi
traído e mata sua esposa. A revolução não acabou com os dramas burgueses. Pelo
contrário, eles duraram por todo o tempo da União Soviética. O filme traduz
também um conflito entre o passado e o presente. Seu melhor amigo deixa a
Rússia em nome do passado. Sonho ou realidade, a rainha de Marte descobre o
cientista com um possante telescópio. Ele é flagrado beijando a mulher e, desde
então, a rainha sonha com um beijo como aquele, esse pecado capitalista.
Sucede que, em Marte – sonho ou realidade –, a monarquia alcançou alto
grau de desenvolvimento científico e tecnológico. Os prédios e as roupas são
concebidos em desenhos construtivistas. A influência de “O gabinete do Dr.
Caligari”, filme do alemão Robert Wiene, datado de 1919, é evidente. O sonho do
cientista é trotskista. Ele acabara envolvido com uma revolução leninista para
libertar trabalhadores em regime feudal e criar um estado socialista em Marte.
Não é mais apenas a revolução mundial, como desejava Trotsky, mas a revolução
interplanetária. A semelhança com “Metropolis”, de Fritz Lang, também é
notória, muito embora este filme date de 1926.
Parece que a atmosfera da época contamina filmes do Japão aos Estados
Unidos. Não há dúvida a este respeito quanto à linguagem do cinema. O mundo
capitalista influenciou muito o cinema soviético, embora ele ganhasse vida
própria. Da mesma forma, cineastas soviéticos ou influenciaram o cinema
ocidental ou foram mesmo trabalhar nos Estados Unidos, por mais desconforto que
se sentissem na meca do capital.
Nesse clima de sonho e realidade, o cientista está de volta à Terra ou
dela nunca se afastou. Está de volta à Rússia socialista ou jamais a deixou, a
não ser em sonho. Ele assenta os pés no chão, reconcilia-se com a mulher, que,
à moda burguesa, sempre lhe foi fiel. Ele imaginou coisas. Olha para seu país
em construção e faz uma opção stalinista de permanecer nele. Protazonov
antecipa J. Posadas, o marxista espacial com sua revolução comunista promovida
por seres vindos de outro planeta.
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