sábado, 29 de abril de 2023

A DAMA DE BRANCO

 

Arthur Soffiati

Em seus últimos livros, Sérgio Sant’Anna se mostra melancólico e nostálgico. É natural que esse estado de espírito se manifeste em pessoas criadas num tempo e envelhecendo noutro. A década de 1990 mostrou-se crucial nessa mudança. Passou-se de um mundo analógico para um mundo digital. No plano da sexualidade e dos gêneros, muitas mudanças se operaram. A corporeidade do passado está sendo substituída pela virtualidade.

Os contos, novelas e romances de Sérgio Sant’Anna não são inteiramente ficcionais. Há neles muito de suas impressões pessoais sobre artistas, por exemplo. Nos últimos escritos, que ele chamava de narrativas, o autobiográfico é muito presente. Ele falava de si na terceira pessoa.

Sérgio foi uma das vítimas da Covid-19 em 2020. Ele deixou narrativas curtas e uma novela inéditas em livro, embora seus admiradores já as conhecessem. Gustavo Pacheco reuniu esses escritos em “A dama de branco” (São Paulo: Companhia das Letras, 2021). São 17 narrativas breves e uma novela. Nelas, Sant’Anna mostra-se por inteiro. O conto que dá nome ao livro é um exercício de voyeurismo. A sexualidade também é muito forte nele. Em “Anticonto”, ele registra que o ato de escrever exige disciplina. Parar de escrever também exige o mesmo. Um personagem proclama que “Os celulares são a praga do mundo moderno, mas às vezes são necessários”, refletindo por certo o próprio pensamento de Sant’Anna.

Para uma pessoa que viveu numa cidade em que a natureza estava mais presente, o soterramento dela pela urbanização, pelo desmatamento, pela poluição fere a sensibilidade. Parece ser o autor que fala pela boca de um personagem que vê o Brasil governado por um presidente estúpido: “a própria natureza fora exaurida até um ponto inacreditável, com árvores derrubadas, florestas pegando fogo, matando os animais, os índios atacados, e os mares, as melhores praias, o oceano impregnado pelo óleo grosso e viscoso.”

Onde talvez Sant’Anna perca a mão é na novela “Carta marcada”, que narra a trajetória de um homem com forte sexualidade. Ele se sente atraído pela namorada, pela sogra e por uma cunhada ainda pré-adolescente. Depois de casado, trabalhando num escritório de advocacia, ele passa a beber e se torna alcoólatra. Ele se excita em manter relações sexuais com a esposa enquanto ela dorme. Mais tarde, ele reencontra a cunhada já casada e mantém um caso quase secreto com ela, mais tarde encerrado. Embora advogado, ele odeia a profissão por entender que os advogados são profissionais prostitutos. Sua vingança é acusar um feminicida que contratou o escritório em que trabalhava. Ele foi o advogado de defesa e contribuiu mais para a condenação do cliente do que a promotoria. A juíza que determinou a pena do réu é feminista e homossexual. Mesmo assim, presenteia a bela atuação do advogado com sexo oral. Ele termina seus dias como alcoólatra. A novela narra sua vida aos Alcoólicos Anônimos. São fantasias sexuais muito escancaradas que tangenciam a pornografia.   

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