sexta-feira, 4 de outubro de 2024

MORTE NO NORTE

Arthur Soffiati

O escritor paraense Edyr Augusto é, talvez, o autor que mais trata a violência urbana na região Norte. Ele lançou o romance BelHell em 2020 (São Paulo: Boitempo). Seus romances são sempre ambientados em Belém e na Amazônia. BelHell não é diferente. Ele se passa na periferia social de Belém. Nele, desfilam pobres que sobem na vida trabalhando para empresários e políticos inescrupulosos. Nas páginas do livro, há lugar para anões, para uma moça bonita e inteligente que aprende a jogar baralho e rouba seus parceiros. Desfilam casos de rapazes idealistas que acabam se transformando em criminosos. Aparecem taras. Um médico que só têm prazer sexual ao assassinar mendigos, prostitutas e moleques de rua com fios acerados de cirurgia.

            Homens aparentemente honrados que são criminosos, policiais bandidos, mulheres heterossexuais que se descobrem homossexuais. E no final todos morrem de forma violenta, pois aqueles que matam são caçados para morrer. 


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO NORTE/NOROESTE FLUMINENSE

 Arthur Soffiati

O planeta todo está sofrendo com drásticas mudanças climáticas. Não apenas o Brasil. Para entender as enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul em maio deste ano e o fogo que devasta 60% do Brasil atualmente, inclusive o norte-noroeste fluminense, é preciso levar em conta o aquecimento global produzido pela economia dominante com emissões de gases derivados da queima de petróleo, gás natural e carvão mineral, além de desmatamento de grandes áreas florestais. Esse aquecimento reduz a vazão dos rios, como no caso da Amazônia, resseca o solo e as plantas, reduz a umidade relativa do ar e cria ambiente propício para incêndios. Os ventos ajudam a propagar o fogo. O ambiente se torna mais seco ainda, com a fuligem avançando pelas cidades, com o empobrecimento da flora e da fauna e com prejuízos à economia rural. Mas é preciso olhar para além das fronteiras do Brasil. Vários países da América do Sul enfrentam incêndios. O sul dos Estados Unidos está em chamas. Portugal pega fogo. 

Incêndio na zona serrana da região

O aquecimento global não provoca apenas secura e fogo, mas também chuvas torrenciais por causa da grande evaporação dos oceanos e por massas de ar frio. Assim, choveu muito no Rio Grande do Sul e chuvas destruidoras caem na Europa Central e na África. O leste asiático este sendo varrido por tufões arrasadores. Morrem muitas pessoas. A economia sofre prejuízos geralmente pagos pelo consumidor. A natureza se empobrece progressivamente. O norte-noroeste do Rio de Janeiro não está fora do mundo. Ele contribuiu para as mudanças climáticas com a destruição de vastas florestas e com a drenagem de muitas lagoas. Agora, sofre as consequências dessas mudanças. 

No passado, os rios que drenam o norte-noroeste fluminense (Paraíba do Sul, Pomba, Muriaé, Macaé e Itabapoana) apresentavam regularidade em suas cheias e estiagens. Hoje, com as margens desmatadas e os leitos assoreados, eles transbordam com chuvas torrenciais ou quase secam com as estiagens severas. Atravessamos já algumas muito fortes, como em 1998 e 2015. Passaram-se meses sem nenhuma chuva. Por outro lado, há anos em que as chuvas de verão são destruidoras, como as de 2008/2009. Por outro lado, as estiagens ressecam o ar e afetam sua qualidade, sobretudo com a fuligem de queimada de cana. Não apenas as casas ficam sujas, como também a saúde das pessoas.

E os candidatos nada falam sobre o aquecimento global e sobre a necessidade de se criar uma autoridade climática municipal e regional. 

terça-feira, 17 de setembro de 2024

ILHA DE MARAJÓ

 Arthur Soffiati

Visitei a ilha de Marajó duas vezes. A primeira foi uma visita presencial. Saímos de Belém e navegamos o rio Amazonas por 4:30 horas até Salvaterra. De ônibus, chegamos a Soure, cidade considerada capital do arquipélago. Tanto Salvaterra quanto Soure nomeiam vilas portuguesas. Aliás, Portugal está muito presente no norte do Brasil. Passamos alguns dias em Soure, montamos búfalos e estivemos em contato com lindas paisagens. Não encontramos nenhuma forma de violência, como se tem propalado recentemente. Até os búfalos são gentis e dóceis.

Soure, Portugal

A segunda viagem foi virtual. Dessa vez sozinho, parti de Belém, subi o rio Arari, na ilha de Marajó, até o lago do mesmo nome. Passei por Santana e cheguei a Cachoeira do Arari. Hospedei-me nessa pequena cidade e visitei o Museu do Marajó. Confirmei a impressão que tive em Soure: a cultura dominante no arquipélago de Marajó é ocidental, mas já adaptada a um ambiente diferente do português e europeu de um modo geral. Um ambiente líquido com muita floresta e povos nativos (ainda). É a cultura ocidental adaptada ao maior bioma brasileiro, onde a língua portuguesa é falada de maneira bastante parecida com o português de Portugal. Mas o sotaque é diferente. É sibilado como o carioca. Existe um traço forte nessa cultura euopeia-portuguesa-adaptada a um novo ambiente: a força simbólica da cultura indígena marajoara. Os motivos visuais dessa cultura, embora não mais vivida, continuam sendo explorados localmente e para fins comerciais. O Museu do Marajó evidencia minha impressão, o que confirmei em “A ilha de Marajó: estudo econômico-social”, de Nunes Pereira (Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura/Divisão de Caça e Pesca, 1956).

 

Soure, Ilha de Marajó

Em 1927, Mário de Andrade subiu o rio Amazonas até Iquitos, no Peru. De volta a Belém, ele fez a mesma viagem que estou empreendendo virtualmente. Ele também incursionou brevemente no lago de Arari e deixou o seguinte registro no dia 29/6/1927: “Vamos a Marajó. Às cinco e muito tomamos a lancha Ernestina pra atravessar a baía. Pelas oito, tomamos a Tucunaré menorzinha, e entramos pela boca do rio Arari. Marchas e paradinhas. Santana. Cachoeira. Paraíso com seus búfalos. S. Joaquim, com seus búfalos. Só brasileiro mesmo, além de zebu, se lembrava de criar búfalo africano; cruzamento de caneiro e porco... Enfim estamos noutra espécie de paisagem amazônica. O Arari principiou com um matinho ralo dos lados e uns igarapezóides de uma simpatia incomparável. As ingazeiras cobrem inteiramente as margens, folhudas, rechonchudas, lavando os galhos n’água do rio. Uns macaquinhos voam de galho em galho. As aningas floridas. De vez em quando o voo baixo das ciganas, parecem pesar toneladas. E uma abundância de trepadeirinha lilás, de que ninguém sabe o nome, cobrindo as margens folhudas. E a vista se abre em novos horizontes. São campos imensos, de um verde claro, intenso, com ilhas de mato ao longe, nítidas, de um verde escuro que recorta o céu e campo.”  Balança lembra a Escócia. Concordo com erudição, meio irritado. É Marajó, gente! A Escócia tem jaçanãs também? tem garças? E tem este rio Arari, que não acaba e vai se estreitando cada vez mais, deixando imagens voluptuosas na sensação completamente descontrolada? E a Escócia tem este inferno de gado orelhudo, estes zebus e estes búfalos, rebaixando estes campos de beleza sublime!... Garças, garças, garças, uma colhereira dum rosa vivo no ar! E enfim passamos num primeiro pouso de pássaros que me destrói de comoção. Não se descreve, não se pode imaginar. São milhares de guarás encarnados, de colhereiras-cor-de-rosa, de garças brancas, de tuiuiús, de mauaris, branco, negro, cinza, nas árvores altas, no chão de relva verde claro. E quando a gente faz um barulho de propósito, um tiro no ar, tudo voa em revoadas doidas, de fuga, voa, baila no ar, vermelhos, rosas, brancos mesclados, batidos de sol nítido. Caí no chão da lanchinha. Foram ver, era simplesmente isso, caí no chão! O estado emotivo foi tão forte que me faltaram as pernas, caí no chão. Para contrabalançar a poesia deste tombo: me lembro, em rapazinho, quando torcia por futebol, num jogo entre meu adorado Paulistano e o São Paulo Atletic, quando este fez gol que me roubou a taça de campeonato, caí no chão. Mas agora, sempre sou homem, desbastado pelas experiências e prazeres. E a beleza de Marajó com sua passarada me derrubou no chão. Os outros riem. Dona Olívia acha uma graça enorme no meu tombo. Mas imagino que ela está rindo um pouco forçada. Também ela queria cair no chão, nesta felicidade que ela nunca viu. Os olhos bonitos dela são lindíssimos. Arapapás, mauaris, pavõezinhos. Guará misturado com frango d’água. Um jacaré envernizado, foge, se deixa cair n’água. Uma colhereira no meio de um, dois, três tuiuiús. O mergulhão, nadando corpo inteirinho dentro d’água. Só o pescocinho fino e a cabecita de fora, vira pra aqui, vira pr’acolá, fugindo de nós. Porém a lancha é mais rápida, ele abriu num voo molhado, foi se esconder longe. Malhada é o lugar em que, de costume, os rebanhos se reúnem diariamente, olhe a malhada! Campos de uma chateza esportiva, drenados de seu natural... Iritauá amarelo vivo e preto, outro de costa encarnada, asa e cabeça preta. A tracajazinha em cima do pau, cai n’água. E lá no longe, o fundo das queimadas

Parada em Tuiuiú, onde passaremos a noite. É um desespero. Bilhões, bilhões de carapanãs. Pela primeira vez, não resisto e me emporcalho da tal pomada inglesa, feita com citronela de Java, bom cheirinho aliás. Tenho pelotes de pomada na cara. Mas os carapanãs vêm feitos sobre a cara, atravessam a graxa, mordem, e morrem grudados na pomadaria. É pavoroso. Janta: ovos de pato seco. Tem um pixezinho desagradável quando não sabem tratá-lo bem, como agora. E cantamos! Cantamos assim mesmo, engolindo mosquito.” (“O turista aprendiz”. São Paulo: Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976).

Mário estava acompanhado de Olívia Guedes Penteado, senhora rica da sociedade paulistana e conhecida mecenas das artes, e de Margarida Guedes Nogueira, sobrinha dela. Mário a apelidou de Trombeta, chegando a esboçar um romance intitulado “Balança, Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma”, que não foi concluído (São Paulo: Instituto Moreira Salles/Instituto de Estudos Brasileiros, 1994). Muitos e muitos outros projetos Mário não concluiu. Foi grande a arte em seu espírito, mas curta a sua vida. Mário ficou fascinado com o lago Arari, com sua vegetação e com sua fauna, sobretudo com as aves. Ele não gostava dos búfalos e do zebu, ambos indianos e não africanos, como escreve. Seria por razões nacionalistas? Ele lança as bases de um paisagismo brasileiro, embora incluísse mangueiras. Talvez pensasse que elas eram nativas do Brasil. Como as duas raças de animais, ela – a mangueira – também tem origem indiana. Mário não gosta da comparação que Margarida faz entre os lagos da Escócia e o lago de Arari, percebendo claramente a diferença entre a paisagem europeia e a paisagem amazônica. Realça também a singularidade do arquipélago de Marajó no âmbito da paisagem amazônica.

Continuei a viagem rumo ao lago Arari. Passei por São Joaquim e por Tuiuiú, lugarejo em que Mário pernoitou em seu retorno a Belém. Onde ele terá conseguido pousada num lugar tão pequeno? Devia ser menor ainda em 1927. Tudo aqui é muito amplo. No encontro do rio com o lago, cruzamos a vila aquática de Jenipapo, integrante de Cachoeira de Arari. Circulamos apenas pelas margens sul e oeste do lago, até Santa Cruz do Arari. O lago não tem mais o encanto e a integridade apresentadas na década de 1920. Em grande parte, a vegetação e a fauna de aves mudaram. Ficaram mais pobres. Mas ainda há razões para se encantar com o lugar. É um mundo de água. Embora existam búfalos por toda a parte, a flora e a fauna nativas ainda são exuberantes.

Não era possível ficar mais tempo. Precisávamos voltar para Cachoeira do Arari. Não queríamos ser picados por carapanãs, esse inseto que suga nosso sangue como uma seringa. Mário não se livrou deles, mesmo prevenido. Na pousada de Cachoeira, havia refúgio que me protegesse. Mas fiz questão de pedir ovos de pato cozidos no jantar, como Mário. Dormi bem. No dia seguinte, fiz um passeio pela cidade. Creio que a cruzei de ponta a ponta, em X. De novo no museu da cidade e da ilha. Arte marajoara. Compra de livros. Encontrei um autor nascido em Cachoeira. Trata-se de Dalcidio Jurandir. Ele ganhou renome nacional com seu romance “Chove nos campos de Cachoeira”, lançado em 1941 pela Editora Vecchi. Consegui a primeira edição. Comprei também “Marajó” (1947) e “Três casas e um rio” (1958). Ele foi premiado pela Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra. Foram, ao todo, dez romances. Como não descobri esse escritor antes? Ele integra o grupo de escritores do primeiro regionalismo ao lado de José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Bernardo Elis, Jorge Amado, José Cândido de Carvalho, Roque Callage e outros. 

Comecei a ler “Chove nos campos de Cachoeiro”, ambientado na cidade por onde passei. O estilo do autor é bem típico desse primeiro regionalismo. Sua linguagem é sonora, com o uso de expressões do norte do Brasil, do Pará, de Belém e de Marajó. Creio que nenhum outro autor enfocou tão bem a realidade da ilha. As palavras que usa foram colhidas da boca do povo e até mereceram uma pesquisa de Rosa de Assis que resultou numa espécie de dicionário: “O vocabulário popular em Dalcídio Jurandir” (Belém: UFPA, 1992).

Era relativamente comum escritores do primeiro regionalismo serem socialistas. Afinal, eles lidavam com uma realidade social bastante cruel, que ainda hoje presenciamos. É que o mundo mudou. As peculiaridades regionais estão se esgarçando ou já esgarçadas. Uma das linhas da literatura brasileira é o realismo nacional e internacional. Fala-se no retorno ao regionalismo, mas o regional está muito descaracterizado, como mostram Ronaldo Correia de Brito, com relação ao Nordeste, e Edyr Augusto, com relação ao Pará. Este segundo autor tem como tema dos seus livros a violência que domina o norte do Brasil. Ele chega mesmo a exagerar tal violência, que estaria nos porões ou mesmo no cotidiano da região. É interessante o confronto de Dalcídio Juradir e Edyr Augusto. Sugiro a leitura de ambos para que se possa comparar, pela literatura, o passado com o presente.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

A VIAGEM ETNOGRÁFICA DE MÁRIO DE ANDRADE À AMAZÔNIA

 Arthur Soffiati

            As viagens “etnográficas” de Mário de Andrade à Amazônia e ao Nordeste, entre 1927 e 1929, com intervalos, proporcionaram ao intelectual paulistano uma experiência semelhante à overdose. Tudo o que Mário havia aprendido nos livros foi superado no contato com a realidade. A Amazônia colocou-o frente a frente com uma natureza equatorial, líquida, florestal, faunística, cultural, que o deslumbrou pela luxúria. No Nordeste, ele pôde não apenas confirmar ou infirmar seus estudos, mas embebedar-se com a cultura popular, que conhecia diretamente apenas em suas manifestações no Estado de São Paulo. Estas experiências místicas, estéticas e antropológicas produziram-lhe uma efervescente reflexão sobre a identidade nacional, tema bastante discutido e discutível, atualmente, entre antropólogos. Tais experiências foram registradas no livro O Turista Aprendiz (São Paulo: Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976), postumamente publicado, revelando, de forma excepcional, sua inquietação genial como pensador e artista. É neste livro, principalmente, que colhemos subsídios para o presente artigo.

 

Mário e os dilemas da cultura tropical

Na maior parte dos seus 28 anos de vida intelectual pública, Mário de Andrade pugnou por uma cultura apropriada às condições tropicais brasileiras. Em se tratando de Mário, entrementes, parece que o autor de Clã do Jaboti reservava o conceito de civilização para designar um modo de vida sofisticado, clímax, declinante e, muita vez, postiço. Cultura, por outro lado, designava, um estágio da vida humana caracterizado pela simplicidade e pelo ajuste às condições ambientais. Certamente, influência de Spengler via Keyserling, muito lido por Mário. Isto se torna claro quando ele explica que “... não aprecio a civilização, nem muito menos, acredito nela. Tanto o meu físico como as minhas disposições de espírito exigem terras do Equador. Meu maior desejo é ir viver longe da civilização, na beira de algum rio pequeno da Amazônia, ou nalguma praia do mar do Norte brasileiro, entre gente inculta, do povo”. Fugir da civilização, sim; da cultura não.

Colocada esta primeira questão, surge um problema crucial. Como e o que seria esta cultura tropical? Mário deu duas respostas à pergunta. A primeira, mais tolerante, entende a cultura tropical como sendo a cultura européia inconscientemente adaptada à realidade ambiental brasileira. Daí o seu fascínio por Belém, Ouro preto e Salvador, cidades em que esta alquimia teria se processado, e sua aparente antipatia por São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, muito contaminadas por influências européias. A segunda, radical, repudia mesmo as adaptações espontâneas da cultura européia para postular uma cultura semelhante à chinesa, à indiana e às africanas. Em ambos os casos, um dos traços mais marcantes da cultura brasileira seria o exercício da preguiça.

Não obstante, como era de se esperar, a questão não se resolveu facilmente. Embora defendendo a descoberta ou a construção de uma cultura apropriada para a tropicalidade brasileira, Mário de Andrade não podia negar as nossas raízes européias. Acontece, porém, que, em algumas páginas de O turista aprendiz, diário de sua viagem à Amazônia e ao Nordeste entre 1927 e 1929, ele denuncia o atraso daquela parte do país e reclama a sua modernização em moldes ocidentais. Também não hesita em enaltecer São Paulo – exemplo de falsa civilização encravada nos trópicos – às vésperas do levante constitucionalista de 1932. No seu último livro de poesia, Lira Paulistana, Mário faz as pazes com sua cidade e retoma o caso amoroso que com ela manteve em Paulicéia Desvairada. Numa de suas entrevistas, proclamou: “Minha maior esperança é que se consiga um dia realizar no mundo o verdadeiro e ainda ignorado Socialismo. Só então o homem terá direito de pronunciar a palavra ‘civilização’”. Esta civilização não seria também exótica? 

Mário exercitando a preguiça na Praia do Chapéu Virado, Belém, 1927.

     Mário de Andrade é, ele mesmo, uma expressão viva desta contradição. Com relação à preguiça, por exemplo, seu entendimento é de que o amazônida não é intrinsecamente preguiçoso, mas, em função de fatores ambientais, deveria adotar este traço cultural. Numa entrevista concedida logo após retornar de sua visita a Amazônia, o jornalista provocou-o dizendo que “Lá os homens devem ser preguiçosos como o diabo!” Mário prontamente retrucou: “É um engano lamentável: o tapuio trabalha muito, trabalha bem e é alegríssimo. Para ganhar uma ninharia, quase degradante, a tapuiada passa uma noite inteira carregando lenha para dentro dos navios. Tudo isso no meio de ditos e gargalhadas...”. E completa: “É uma gente boa (a amazônida), gente que gosta de querer bem e que, de modo algum, tem menos capacidade de trabalho do que nós (...) São os desfavores de uma natureza excessivamente fácil que desprestigiam o homem e ainda não permitiram um ritmo normal de progresso por lá”. Acusar Mário de determinismo é fazer a mesma acusação a Marx, que, em diversas passagens de sua obra, defende o mesmo princípio.

    Em relação a si mesmo, dizia: “Meu maior sinal de espiritualidade é odiar o trabalho, tal como é concebido, semanal e de tantas horas diárias, nas civilizações chamadas ‘cristãs’. O exercício da preguiça, que eu canto no Macunaíma, é uma das minhas maiores preocupações”. Por mais que Mário quisesse se referir à preguiça criativa, é inegável que não a praticou do modo como a concebeu. Em 1943, ele revela que, “De outubro a dezembro do ano passado, trabalhei de 14 a 15 horas por dia, cigarro na boca e uísque ao lado. Fiquei intoxicado. Nos últimos dias de dezembro, nem pensava mais em dormir”. Não resta dúvida de que o excesso de trabalho agrediu o seu organismo e contribuiu para a sua morte prematura. O que Mário, afinal, entendia por preguiça? Direito ao lazer? Um tipo de comportamento adequado aos países quentes? Um comportamento típico de uma cultura apropriada aos trópicos que contestasse o capitalismo e o socialismo, ambos apologistas do trabalho?

Nosso escritor acreditava que não só os hábitos de fumar e beber eram tropicais. Gostava de fumo e café fortes, que considerava típicos do Brasil. “Gosto de comer e beber bem. Exerço a preguiça sistematicamente porque considero a preguiça uma necessidade para os povos de climas quentes. De resto, somente um pequeno contato com as minhas obras, me demonstra muito mais marcado pelo tropicalismo que propriamente pelo nacionalismo. Passagem altamente elucidativa esta, não esclarece, porém, quais os pratos que Mário considerava tropicais. No correr de seus escritos, ficamos sabendo que se trata da culinária ocidental-afro-ameríndia, bem imprópria aos climas quentes. Todos estes hábitos “tropicais” contribuíram para o desenvolvimento de sua úlcera duodenal e de outras tantas doenças que culminaram no seu infarto fulminante aos 51 anos. O uísque, de origem escocesa, bem como as roupas ao estilo europeu, inclusive os sapatos apertados que lhe produziram calos vascularizados, completam a personalidade rica deste intelectual complexo e contraditório.


Mário e a jardinagem

Nossas escolas de arquitetura visam formar profissionais elitistas, que se consideram os únicos detentores do saber relativo aos ecossistemas urbanos. Assim, o arquiteto que se especializa na concepção de jardins recebe o pomposo nome de paisagista, quando, na verdade, o termo paisagismo deveria ser reservado ao profissional multi ou transdisciplinar que trabalha com a construção ou a restauração de paisagens, sejam elas nativas ou antrópicas. Com relação às cidades, o paisagista deve ter a capacidade de pensá-las no seu conjunto, como o ambiente de seres humanos, animais e plantas. Falta ao arquiteto e ao urbanista, como de resto a qualquer profissional, a faculdade de lidar com a complexidade, salvo raríssimas exceções.

 “Na lagoa Amanium perto (?) do Igarapé de Barcarena/Manaus/7-VI-27”. Foto que Mário considerava sua obra prima como fotógrafo

 

Entendendo o paisagista como um jardineiro especializado, podemos dizer que a história dos jardins no Brasil começou sob forte influência européia. O botânico francês Glaziou, que viveu entre nós, desenhou jardins magníficos, mas utilizou-se pouquíssimo da rica flora brasileira. Um século depois, Burle Marx deu um salto significativo, ao valorizar as plantas nativas da América. No entanto, não aboliu dos seus projetos as espécies européias, da mesma forma que não distribuiu as espécies brasileiras segundo seus ecossistemas. O Parque do Flamengo é uma boa amostra desta miscelânea. O projeto de ajardinamento de Palmas, capital do Tocantins, de autoria de um jardineiro carioca, avança mais, na medida em que se utiliza de 70% de espécies típicas do cerrado. Todavia, os 30% restantes têm várias procedências.

É surpreendente como Mário de Andrade, no esforço de construir uma cultura brasileira, propõe, no longínquo ano de 1927, uma jardinagem revolucionária, que, nos dias que correm, ainda conta com pouquíssimos adeptos. Ele estava realizando a sua célebre viagem pela Amazônia quando foi abordado por um jornalista de Folha da Noite, jornal de Belém, para uma entrevista publicada em 24 de maio de 1927. Numa determinada passagem, ele declara que “O Brasil possui algumas cidades bonitas: o Rio, Belo Horizonte, Recife, São Paulo; mas a todas estas falta caráter. Belém é como Ouro Preto, como Joinvile, como Salvador: possui beleza característica. Este céu de mangueiras, filtrando o sol sobre a gente, produz uma ambiência absolutamente original e lindíssima. Vejo com terror que em certas ruas estão plantando árvores estrangeiras”.

Neste momento, o repórter atalhou, ponderando: “Há o problema da umidade a resolver...” Mário de Andrade prontamente respondeu: “Será um problema ou fatalidade climática? Aliás, a solução do problema não implica importação de árvores da ‘estranja’. Essa arvoreta bem educada que andam plantando é insuportavelmente monótona e estúpida como um pato. Imagine só uma alameda arborizada com tufos de açaizeiros? Seria adorável e vivaz como esses mameluquinhos que andam nus nas praias afastadas. Com as mangueiras, os barcos de velas coloridas, e tantos outros encantos originais, vocês têm um tesouro de beleza nas mãos. Aproveitado seu espírito de imitação, Belém será a mais linda cidade equatorial”.

         É bem verdade que Mário cometeu um erro ao julgar que a mangueira é uma espécie nativa da Amazônia. Na verdade, ela é originária da Ásia Meridional. Todavia, o que importa é o princípio. Ao defender a idEia de que cada ecossistema contém um conjunto rico e variado de espécies autóctones para a construção de um belo jardim, Mário de Andrade estava lançando os fundamentos de um “paisagismo” ecologicamente apropriado. Mas a aplicação de tal princípio depende de pesquisa básica, que custa dinheiro e não interessa aos governantes. É por isso que até hoje os nossos jardineiros de luxo só se preocupam com o efeito ornamental das plantas, sem saberem se elas provêm do Velho Mundo, da América ou da Oceania, se elas são originárias da Amazônia, da Mata de Cocais, da Caatinga, da Mata Atlântica, do Pantanal ou do Cerrado.


Mário, o mogno e a farra do boi

No ano em que Mário de Andrade, o mais complexo e inquieto intelectual brasileiro, completou seu centenário de nascimento, decidi trazer a público, ainda que precariamente, um dos muitos temas que o preocupavam e que pesquiso há tempo: a natureza. Os estudiosos de sua obra discutem muitos aspectos, mas limitam-se a uma abordagem culturalista. Quase ninguém se deu conta de três questões. 1 – Mário de Andrade é um grande observador da natureza não-humana e tem por ela uma especial simpatia. São famosas as suas crônicas sobre plantas e animais. Olímpio José Garcia Matos, pesquisador já falecido da Biblioteca Nacional, redescobriu um conto esquecido de Mário, “A guitarra frustrada de Romeu”, publicado no número 20 de A ilustrada, em 15 de fevereiro de 1924. Nele, o autor nos leva a crer, até o final, que as duas personagens – Romeu e Rita – são seres humanos, quando, na verdade, são gatos no cio. 2 – Mário de Andrade é um dos primeiros no Brasil a romper com o dualismo cartesiano, ao divisar uma continuidade entre natureza não-humana e cultura humana. São, todos eles, assuntos que dão panos pra manga. Tentemos ilustrar brevemente apenas o primeiro.

Em 1927, em Nanay, Peru, no meio de sua famosa viagem à Amazônia, Mário de Andrade nos informa sobre uma das maiores agressões cometidas atualmente contra a floresta. “Estão embarcando duzentos toros de caoba, cada um pesando de duas a três toneladas, me disseram. Caoba é castelhano; aqui na região se diz aguano, nós dizemos mogno... Vão pra Boston, pra uma fábrica de vitrolas”. 

“Jangadas de mogno encostando no S. Salvador pra embarcar/Nanay 23-Junho 1927/Peru/Vitrólas futuras”

        Na página 75 de O Turista Aprendiz, seu diário de bordo, ele revela sua compaixão pelos animais numa passagem que poderia corresponder à atual farra de boi, de Santa Catarina. Reproduzimo-la na íntegra. “Ali pelas vinte-e-quatro horas da noite de ontem pra hoje, paramos na fazenda do Tapará, pra embarcar vinte bois de corte. Que coisa desumana! é assim: Numa espécie de corredor assoalhado que dá pra um terracinho junto d’água, vem um homem correndo que as luzes do navio concedem vestir de um último pedaço de calça esmolambada. Atrás dele vem um boi corcoveando embrabecido. Então surge de repente no terracinho um farrancho de tapuios seminus, corpos admiráveis de estilo, rebrilhando na chuvinha propicia, grande cena de teatro. E o grupo dança detrás do boi uma mazurca muito viva de gestos, ‘êh, boi!’ E só se escuta ‘êh boi!’, ‘êh, boi!’... O homem da frente corre até a beirada do assoalho e atira pra bordo a corda em que o bicho está preso. A corda salta que nem se vê, mas de bordo o trabalhador infalível não erra uma, pega a corda e grita ‘Vá!’. Então a barulheira dos tapuios se esganiça em histerismos alegres que aguçam o medo do boi. O pobre animal se atira n’água e vem nadar no costado no navio. O homem da corda puxa o boi, ajeita o boi, prende o laço do guindaste nas guampas do bicho e “Devagar!”que avisa o boi. E o santinho, com as mãos cruzadas no peito, olhos de terror que não se agüenta, nasce das águas como o dia e vai mansamente subindo, subindo, pensando em Deus. Mas eis que um braço diabólico interrompe e assunção, agarra o bicho pelo rabo e o traz pra junto do navio. O guindaste desce um pouco, o boi se agarra como pode e é puxado pro convés de baixo, onde em pouco está dormindo entre as redes do pessoal terceira classe”. 

“Traja Boi! Traja Boi! Tuiuiú, Marajó – 30-VII-27” Reboque de boi para navio.

         Alguns estudiosos, preocupados com os problemas ambientais no Brasil, olharam para o passado e descobriram que a preocupação já era externada por José Bonifácio, Joaquim Nabuco, André Rebouças, Euclides da Cunha, Alberto Torres e Monteiro Lobato. Mário de Andrade não pode ficar fora deste time.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

NORTE-NOROESTE FLUMINENSE: REGIÃO IMPRÓPRIA PARA GRANDES EMPREENDIMENTOS

 Arthur Soffiati

Caracterização

            Para atuar em defesa do meio ambiente numa região, é preciso, antes de tudo, conhecer seus aspectos naturais e culturais. Esse conhecimento geralmente é superficial por parte dos empreendedores e ativistas. Da mesma forma, o conhecimento da legislação ambiental pertinente é fundamental, assim como dos ritos estabelecidos por lei. Acima de tudo, conta a experiência no ativismo, algo que se adquire com o estudo e a prática.

            Esse escrito se dirige àqueles que atuam em defesa do meio ambiente na região Norte/Noroeste do estado do Rio de Janeiro. Trata-se de um território com peculiaridades que devem ser conhecidas por aqueles que pretendem defendê-lo em seus aspectos naturais, sociais e culturais.

 

Rios

         O principal rio da região Norte/Noroeste fluminense é o Paraíba do Sul. Ele nasce na serra da Bocaina e desemboca no mar depois de percorrer pouco mais de 1000 km. Trata-se de um rio de porte médio para o Brasil e de grande porte para a Europa. Sendo o rio principal da bacia, ele recebe vários afluentes de dimensões diversas. Os principais, no Norte/Noroeste fluminense, são o Pomba, o Muriaé, o Grande e o do Colégio. Todos eles são alimentados por subafluentes.

            Outros rios principais (com nascente em pontos altos e foz no mar) são o Itabapoana, o Guaxindiba, o complexo formado pelos rios Imbé e Urubu/lagoa de Cima/rio Ururaí/lagoa Feia/rio Macabu/canal da Flecha, e o rio Macaé.

            A situação de todos é crítica. As margens de todos, em sua maior parte, perderam a vegetação protetora devido a um desmatamento secular. Sem ela, a erosão torna-se mais intensa. A terra transportada das margens para o leito do rio provoca turbidez e assoreamento, o que afeta a flora, a fauna, a qualidade da água, a navegabilidade, entre outros danos.

            A urbanização e a industrialização geram esgoto cujo destino mais rápido e fácil é o rio. Daí, deriva a poluição. Em graus diferentes, todos os rios da região estão poluídos. A drenagem do sistema de brejos e lagoas reduziu a vasão dos rios. Sua situação é agravada pelas barragens para geração de energia elétrica e por transposição de água de uma bacia para outra. A transposição do rio Paraíba do Sul para o rio Guando priva o primeiro de 2/3 de sua vazão. A do rio Macabu para o São Pedro, na bacia do Macaé, desvia o primeiro rio para o segundo em sua parte alta. 

            Lembremos ainda da introdução de espécies exóticas. Elas competem com espécies nativas e contribuem para a sua extinção. 

Rio Paraíba do Sul e lagoa do Vigário em Campos

 

Florestas

            O Norte/Noroeste fluminense é um recorte político administrativo que começou a ser construído no século XVII. Ele abrange uma parte alta (a serrana, mais antiga), uma parte média (os Tabuleiros, de idade intermediária) e as planícies dos Goytacazes e de Macaé (com menos de cinco mil anos), assim como a planície de Jurubatiba (com 123 mil anos). Esta última é uma restinga (terreno arenoso) em toda a sua extensão, enquanto que a dos Goytacazes é formada por uma planície aluvial (construída pelo rio Paraíba do Sul, principalmente) e por uma restinga em suas bordas, resultante da retenção de areia transportadas pelas correntes marinhas e retida pelo jato do Paraíba do Sul.

            Na parte alta, na margem direita do Paraíba do Sul, desenvolveram-se florestas sempre verdes na Serra do Mar (Imbé). Tecnicamente, estas florestas são denominadas ombrófilas densas). Ainda na margem direita e também na margem esquerda, as baixas altitudes, o tipo de terreno e o clima condicionaram o desenvolvimento de florestas estacionais semideciduais (que perdem entre 20 e 50% das folhas na estação seca). Nas planícies aluviais do Paraíba do Sul e de Macaé, a grande umidade inibiu o desenvolvimento de florestas. O domínio da água doce permite apenas o crescimento de vegetação arbustiva e herbácea, com algumas espécies alcançando porte arbóreo, como a tabebuia. Em certos pontos, como na foz do rio Macabu, cresceram tufos de vegetação florestal. São as chamadas matas higrófilas de várzea. Na planície do rio Macaé, a presença de pontos elevados permitiu o crescimento de matas sempre verdes nos topos. 

Mata higrófila de várzea na lagoa Feia, foz do rio Macabu

 

            Nos tabuleiros, as matas estacionais semideciduais dominam tanto em Quissamã quanto no trecho que se estende da margem esquerda do rio Paraíba do Sul à margem direita do rio Itapemirim, no sul do Espírito Santo.

            Nas restingas, as espécies da Mata Atlântica ombrófila densa e estacional foram selecionadas pelo solo arenoso, pela salinidade do ar e pelos ventos. Mesmo assim, na parte interna das restingas, desenvolveram-se árvores de grande porte. Podemos distinguir, nas restinga, uma zona de vegetação herbácea (junto à costa). A ação dos ventos não permite que as plantas alcancem porte elevado. A zona central é formada por plantas de porte arbustivo. A terceira zona, mais distante da linha de costa, é formada por plantas de porte arbóreo. Podemos notar essa zonação tanto na restinga da Baixada dos Goytacazes quanto na restinga de Jurubatiba.

            Nos estuários dos rios Itabapoana, Guaxindiba, Paraíba do Sul, canal da Flecha e rio Macaé, a vegetação original é constituída por manguezais. Em alguns riachos entre os rios Itabapoana e Guaxindiba, assim como nas lagoas de Gruçaí, Iquipari e Açu, também crescem pequenos manguezais.

            Todas essas formas de vegetação sofreram um secular processo de desmatamento. Na zona serrana da margem direita do Paraíba do Sul, a maior extensão de floresta ombrófila densa está teoricamente protegida pelo Parque Estadual do Desengano. Na margem esquerda do mesmo rio, restaram tufos de mata estacional semidecidual, sendo o maior aquele protegido pela Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba. A maior mancha de vegetação de restinga encontra-se no Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba. Quanto aos manguezais, todos estão ameaçados. O mais destruído de todos foi o do rio Macaé. O manguezal da lagoa do Açu está legalmente protegido pelo Parque Estadual da Lagoa do Açu. 

Restinga da Baixada dos Goytacazes – Lagoa de Gruçaí: urbanizada e poluída

 

Zona costeira

            O que hoje conhecemos como Norte/Noroeste fluminense, durante a colônia do Brasil, denominava-se Capitania do Rio de Janeiro. No Império (1822-1889), chamava-se Província do Rio de Janeiro. Na República, passou a se chamar Região Norte Fluminense. Nos últimos 50 anos, a região foi desmembrada em Norte e Noroeste. Os municípios do Norte têm litoral no oceano. Os do Noroeste não são banhados pelo mar. O litoral entre a foz do rio Itapemirim, no Espírito Santo, e a foz do rio Macaé, no Rio de Janeiro, tem uma configuração peculiar: ele é novo, baixo, aberto (sem reentrâncias), sem formações pedregosas naturais (costões rochosos e ilhas costeiras) e varrido por fortes correntes oceânicas e por ventos.

            Entre o Itapemirim e o Guaxindiba, estende-se a parte mais antiga dessa linha costeira. São tabuleiros com cerca de 5 milhões de anos em que o mar esculpiu falésias ainda ativas. Entre o rio Guaxindiba e Barra do Furado, estende-se uma grande restinga, com menos de 5 mil anos. Entre Barra do Furado e Macaé, formou-se outra restinga com idade de 123 mil anos.

            Nesta costa imprópria para empreendimentos de grande porte, foram construídos espigões de pedra em Barra do Furado e o grande condomínio portuário-industrial do Açu. Outros mais estão previstos para o lado esquerdo da foz do rio Itabapoana; no córrego de Barrinha, em São Francisco de Itabapoana; em Barra do Furado e em Macaé. A costa é imprópria para tais empreendimentos, se é que existe lugar próprio num tempo em que os grandes empreendimentos estão sendo questionados. Cada um deles será analisado no seu devido tempo.

Complexo Industrial-Portuário do Açu

 

Cidades

         Dependendo das dimensões, uma cidade pode ser vista como um grande empreendimento. Campos foi a primeira cidade a ganhar dimensões avantajadas e a crescer sem planejamento e justiça social. Exigiu a drenagem de lagoas e avança atualmente sobre as que restaram em terrenos de tabuleiros. Considerando a costa entre os rios Itapemirim e Macaé, encontraremos nas extremidades núcleos urbanos que crescem de maneira desordenada. Na foz do Itapemirim, Marataízes avançou sobre córregos com foz intermitente no mar e os transformou em lagoas. Para conter o avanço do mar, foi construída uma grande praia artificial com espigões de pedra. E o crescimento continua, ameaçando rios e vegetação nativa. 

Lagoa do Meio eutrofizada, Marataízes – 2022

            Macaé começou a crescer de forma desordenada após a instalação de um porto da Petrobras para apoiar a exploração de petróleo e gás natural no mar. A zona de exploração recebeu o nome de Bacia de Campos. Atrás dela, vieram migrantes da região e de diversos pontos do Brasil em busca de emprego. Muitos ficaram de fora do mercado de trabalho, passando a viver da caridade pública, da prostituição, do tráfico de drogas e da violência.

            A cidade cresceu sobre a área de manguezal e sobre restinga. O crescimento da cidade avançou sobre banhados e brejos ligados à bacia do rio no que se conhece hoje como Nova Macaé. Problemas de drenagem, de esgoto, de trânsito, de enchentes, de pobreza e de violência se avolumam. E mais empreendimentos assediam a cidade, inclusive um novo porto em área de restinga, além de termelétricas. 

Porto da Petrobrás em Macaé

            No Noroeste, cidades também estão crescendo de forma desordenada, como Santo Antônio de Pádua, Itaperuna e Bom Jesus de Itabapoana. Até mesmo as pequenas avançam logo para os rios e para os remanescentes de mata nativa.

 

Empreendimentos

         O primeiro grande empreendimento da região foi a agropecuária. Dirão que um curral ou um pequeno engenho não pode causar impactos significativos no meio ambiente. Mas o conjunto das atividades causa. Pensemos nas florestas derrubadas para obtenção de lenha a fim de atender aos engenhos e, posteriormente, às usinas de açúcar e álcool. Pensemos na drenagem de grandes lagoas para conquistar terras à lavoura de cana. Pensemos na extensão de pastos abertos em áreas de matas nativas. Pensemos nas queimadas de canaviais e na produção de vinhoto. Foi o primeiro impacto ambiental da região Norte Fluminense. Na região Noroeste, o café também causou grandes impactos. Hoje, temos terras áridas.

            As cidades também causam grandes impactos. Nos últimos cinquenta anos, foram instalados o terminal de Barra do Furado, a base naval de Macaé e o complexo industrial- portuário do Açu. A cana e o gado ocupam posições secundárias depois dos estragos que fizeram. Agora, são atividades extrativistas, como o petróleo, o gás natural e o minério de ferro. Suspeita-se ainda de nova tentativa com a monocultura do eucalipto nas duas regiões. Cada um deverá merecer a devida atenção.  

Cardoso Moreira em área montanhosa desmatada

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

FRASE INCOMPLETA

 Arthur Soffiati

Há muitos anos, adotamos um cão da raça dobermann já idoso. Era muito manso e amoroso, contrariando o mito que pairava sobre esta raça. Ele tinha uma longa história de sofrimento, tendo passado de mão em mão até vir morar conosco. Certa vez, recebemos a visita de uma senhora. Ela teve medo do animal, mas ele a cheirou e abanou o rabo. A senhora acabou descobrindo que o cão já havia passado por sua fazenda anos antes. O animal a reconhecera porque qualquer animal tem memória, ainda que seja apenas corporal. 

No humano, a memória é consciente. Lembro e sei que lembro. Nem todos estão preocupados com suas memórias. Um dos pilares da cultura global é viver o dia de hoje, num presentismo que nos leva a desprezar nossa história, ainda mais num universo embebido nas redes sociais. Faz tempo, li um romance de cujo título me esqueci. Foi o livro de estreia de uma escritora criada na década de 1990. Essa foi a década crucial na transição do mundo analógico para o mundo digital. As memórias da autora estavam relacionadas a shoppings, séries de televisão, filmes de época, música pop etc. Enfim, a ambientes fechados e a experiências com o mundo virtual. 

Mesmo dentro da era digital, percebo mudanças que criam um mundo cada vez mais artificial. Não posso condenar aqueles que cresceram nesse mundo e que não se preocupam com a história de suas vidas. Posso apenas sustentar que as memórias de uma pessoa que se formou num ambiente analógico parecem ser mais humanas porque mais corporais e mais vividas graças à velocidade mais reduzida das transformações.

Meu exemplo de memorialismo é Proust, com “Em busca do tempo perdido”. Um acontecimento trivial em sua vida, abre uma caixa da qual saem as suas memórias. Ele não escreve um romance memorialista, mas memórias de forma romanceada. Ele não tenta completar a frase preenchendo lacunas, como a gente aprendia na escola. Suas memórias são incompletas. Mesmo assim, escreveu sete volumes com elas.

Sem pretender comparações, Renata Silva também tratou suas memórias de forma fragmentária, sem a pretensão de cobrir toda sua história de vida. Daí o título do seu livro: “Memórias avulsas” (Maringá: Viseu, 2024). Renata nasceu na década de 1970, já no fim do mundo analógico. Sua infância em Valença foi trazida para as páginas de seu livro. Nascer e viver num mundo analógico não é garantia de qualidade. A maioria das pessoas têm suas memórias, mas nem sempre consegue expressá-las por escrito. Renata, contudo, escreve muito bem. Não apenas. Ela é uma pessoa sensível e intimista. Julguei, por bom tempo, que esses traços caracterizassem o universo feminino, mas homens também podem se expressar de forma sensível. Seja como for, Renata sente o mundo como mulher. 

Ela escreve que “de águas lodosas é possível encontrar a vida na sua forma mais límpida (...) a pureza está mesmo no universo das sensações, dos sentimentos instáveis e (...) o sentido do meu nome tem tudo a ver com o renascer das expressões, dos sentimentos, do pulsar, porque viver à flor da pele é o que há”. 

A infância não morreu nela, como acontece com a maioria das pessoas: “a meninice que insiste em fazer morada em mim gera grandes desconfortos”. Mas gera também seu mundo particular ou o mundo em que viveu traduzido por sua sensibilidade. Ela verte o mundo que a cerca para seu mundo singular de modo a tocar pessoas que também viveram experiências semelhantes e se esqueceram delas. Ou não sabem como expressá-las: “... éramos absorvidos pela atmosfera quente das tardes amareladas, cortadas pelos ziguezagues das libélulas”. Esses extraordinários insetos estão sendo expulsos do nosso cotidiano, tornado nossa vida mais pobre.

E Renata se encanta com o mundo ao exclamar que “O admirável no fantástico é que ele é real e, por isso, perturbador.” Embora nascido três décadas antes de Renata, sinto seu mundo e me identifico com ele. A realidade, então, entrava em nós pelos olhos e ouvidos, mas também pelos pés e mãos, nariz e boca. Ela se lembra não apenas do que viu e ouviu, mas também das sensações tácteis, dos odores e sabores, traduzindo essas informações para seu mundo singular. “Eu sempre gostei de estar comigo mesma (...) eu abrigo vários eus (...) agrupo tudo que é verde, que é semente, broto, raiz, tudo que viceja.” Renata tem um universo próprio, e traduz para ele as vivências guardadas ao longo de sua trajetória. Esse mundo próprio, essa sensibilidade à flor da pele também se traduzem em poesia. Renata é poeta, é humana, é bicho, é planta, é terra, é água, é ar.   



quinta-feira, 25 de julho de 2024

NOVIDADES DA AMAZÔNIA

 Arthur Soffiati

            Ao partirem para a conquista do mundo, no século XV, os europeus sabiam da existência de sociedades com cultura aprimorada na Índia, no Oriente Médio e norte da África, na China e no Japão. A África era um continente a ter seus bens e habitantes pilhados. Sabia-se apenas que o Egito fora o berço de uma civilização e que a população da Etiópia era cristã, embora não seguisse o papa.

            Só bem recentemente, pesquisas arqueológicas começaram a revelar pujantes civilizações no território africano. Na América, pareceu impossível o desenvolvimento das civilizações mexicana e andina pelos povos americanos, considerados bárbaros. Os maias já haviam encerrado sua vida de civilização antes da chegada dos europeus. Suas fantásticas realizações estavam cobertas pelas florestas da América central.

            Recorrendo a Arnold Toynbee, no final da sua vida, ele reconheceu duas civilizações independentes na América: a Andina (que comumente e equivocadamente chamamos de Inca) com duas civilizações satélites orbitando em torno dela: uma ao sul e outra ao norte; a Centro-Americana (que também erradamente chamamos de Asteca) igualmente com duas civilizações satélites. E a maia.

            Em 1964, com 17 anos, fiz um curso de arqueologia e me uni a um grupo de arqueólogos amadores até 1969. Escolhi a cerâmica de Miracanguera para meu trabalho de conclusão de curso. Estudar essa tradição cerâmica localizada nas proximidades da cidade de Itacoatiara, no rio Amazonas, implicava em conhecer algo da cerâmica marajoara, da cerâmica de maracá e da cerâmica de Santarém. Esta última apresenta uma sofisticação de formas que pressupõe não apenas divisão técnica, mas também divisão social do trabalho. Ou seja, devia haver um grupo social dispensado do trabalho de sobrevivência para se dedicar à produção cerâmica. Intuí que a Amazônia deveria ter abrigado uma civilização ou civilizações, independentes ou interdependentes.

Cerâmica miracanguera, depois guarita

            O tempo passou e pesquisas recentes estão demonstrando que a região amazônica abrigou povos com culturas refinadas nas terras não alagadas e não alagáveis. Pelo menos, pouco alagáveis. Terras ao sul da Amazônia, entre as cabeceiras do rio Tapajós e o Estado do Acre, foram colonizadas por um povo ou povos que sabiam produzir terra preta. Eles construíam aldeias grandes e pequenas, formando uma rede. Elas eram cercadas por fossos e provavelmente por diques nas margens. Deviam ser também protegidas por estacas pontiagudas de pau.

            Estima-se que a Amazônia contasse com uma população de 10 milhões de habitantes. Essa rede de aldeias podia comportar de 500 mil a um milhão de habitantes. Ou seja, dos dez milhões de habitantes da Amazônia, a décima parte devia viver nessa rede de aldeias ligadas por estradas e hierarquizadas. Havia locais de culto, locais de cultivo e locais de moradia. “Tudo mantendo a floresta em pé?” Perguntam aqueles que atribuem aos nativos a destruição do ambiente. Ainda existem aqueles que lutam contra os defensores de uma natureza intocada, dizendo que ela nunca existiu. Costumam ser antropólogos, sociólogos e historiadores. O que vem a ser uma natureza intocada? Se remontarmos ao Mesozoico, podemos dizer que a natureza era intocada porque os grandes animais, como os dinossauros, são também natureza? No Paleozoico, a primeira era de organismos pluricelulares, os trilobites alteraram a natureza? Não, diriam os cientistas sociais, porque só o homem transforma a natureza.

Cerâmica Santarém

            Primeiramente, o ser humano e as culturas que ele produz têm uma origem natural. Assim, poderíamos dizer que as transformações produzidas pelas culturas humanas não são transformações porque naturais. Não cometerei este erro. As formigas mantêm um padrão de transformação da natureza que não a compromete. Os seres humanos, sim, podem desequilibrá-la. Conhecemos vários exemplos de sociedades que ultrapassaram os limites naturais e sofreram consequências por isso. Estão aí os habitantes da ilha de Páscoa, os povos do vale do Indo, os maias e a civilização khmeriana.

            Essa cultura ou civilização da Amazônia desmatava para construir suas aldeias e suas estradas, mas não era um desmatamento raso. É preciso conhecer os modos de produção para distinguirmos a intensidade do desmatamento ou das intervenções na natureza. Sabemos que os povos indígenas da Amazônia abriam clareiras com o fogo, mas não desmatavam como o agronegócio capitalista e como as cidades. A(s) civilização(ões) amazônica(s) que está (ão) sendo descoberta(s) pelos arqueólogos é um exemplo de como se pode viver em equilíbrio dinâmico com uma floresta tropical. Os apologistas do mundo ocidental precisam aprender a fazer esta distinção e deixar de atribuir aos ecologistas algo que eles não sustentam: que a natureza antes da globalização ocidental era intocada. Nunca esta afirmação foi feita por um ecologista sério. O que se afirma é que existem formas aceitáveis e formas incorretas de intervenção.

Cerâmica maracá

MORTE NO NORTE

Arthur Soffiati O escritor paraense Edyr Augusto é, talvez, o autor que mais trata a violência urbana na região Norte. Ele lançou o romanc...