segunda-feira, 23 de junho de 2025

O MESMO FENÔMENO CLIMÁTICO EM DOIS LUGARES DO MUNDO

Chuvas e inundações deixam milhares de desalojados Arthur Soffiati Li, recentemente, uma reportagem de jornal sobre enchentes. Seu teor é o seguinte: “As intensas chuvas que assolaram a Região Sul neste mês de junho afetaram muitas pessoas e obrigaram à retirada de residentes. Numa das zonas mais afetadas, as chuvas provocaram inundações de até três metros de altura, deixando metade das estradas locais intransitáveis. Imagens divulgadas pela televisão mostram ruas cobertas de lama e vizinhos e voluntários trabalhando na sua limpeza. A situação também é crítica em outras partes onde se registrou a maior enchente desde o começo dos registros. Quatro pessoas continuam desaparecidas depois de ficarem presas numa garagem subterrânea inundada. As autoridades retiraram centenas de pessoas em vários municípios. Uma creche ficou completamente inundada e foi necessário transportar 500 crianças em jangadas. O governo do estado enviou equipes técnicas para zonas de alto risco e pediu às prefeituras que reforçassem a vigilância e a evacuação preventiva de áreas vulneráveis. Especialistas locais têm alertado nos últimos anos que as alterações climáticas podem aumentar a frequência de fenómenos meteorológicos extremos na região”. Esta nota poderia se aplicar perfeitamente ao Rio Grande do Sul, que volta a sofrer, em junho de 2025, chuvas e inundações tanto na bacia do rio Guaíba quanto na do rio Uruguai. Dificilmente uma pessoa de nível médio, individualista e imediatista, leria essa nota. Mas um leitor atento e interessado teria interesse na notícia. Só que ela não se refere ao Rio Grande do Sul, e sim a chuvas e inundações na China, como mostra a notícia abaixo, esta sim, a verdadeira. Ela foi publicada no periódico “Hoje Macau” no dia 19 de junho de 2025. Macau pertenceu aos portugueses, voltando ao domínio chinês em 1999. O português ainda é falado e escrito na cidade. Chuvas e inundações deixam dezenas de milhares desalojados “As intensas chuvas que assolaram várias regiões do sul e centro da China desde o início da semana passada afectaram pelo menos 300.000 pessoas e obrigaram à retirada de dezenas de milhares de residentes, sobretudo na província de Guangdong. Na vila de Huaiji, uma das zonas mais afectadas, as chuvas provocaram inundações de até três metros de profundidade, deixando metade das estradas locais intransitáveis. Imagens divulgadas pela televisão estatal mostram ruas cobertas de lama e vizinhos e voluntários a trabalhar na sua limpeza. A situação também é crítica em outras províncias do centro e leste do país, como Hunan, onde o rio Lishui registou a sua maior cheia desde 1998. Na vila de Longshan, quatro pessoas continuam desaparecidas depois de ficarem presas numa garagem subterrânea inundada. Na província vizinha de Hubei, as autoridades retiraram centenas de pessoas em municípios como Hefeng e Laifeng. Neste último, uma creche ficou completamente inundada e foi necessário transportar 500 crianças em jangadas, informou o jornal The Paper. O Ministério dos Recursos Hídricos enviou equipas técnicas para zonas de alto risco e pediu aos governos locais que reforçassem a vigilância e a evacuação preventiva de áreas vulneráveis. Especialistas locais têm alertado nos últimos anos que as alterações climáticas podem aumentar a frequência de fenómenos meteorológicos extremos no país asiático”. A notícia imaginada não é mentira. Ela apenas procura mostrar como existem situações similares no mundo, reforçando cada vez mais que as mudanças climáticas são reais e atingem os quatro cantos do planeta. Vivemos na era planetária.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

MANGUE EM ÁGUA DOCE

 Arthur Soffiati

            Como leigo, aprendi com especialistas que manguezal é um ecossistema que se desenvolve em águas salobras (mistura de água salgada com doce) em estuários da zona intertropical, em praias de baixa energia e em lagoas de água doce que se comunicam com o mar. Respectivamente, são manguezais estuarinos, de borda ou de franja e de bacia.

            Já encontrei manguezal nos lugares mais estranhos, como topo de costão rochoso. Não cabe aqui a discussão de que um manguezal só tem importância quando forma um bosque que promove grande produção primária e ciclagem de nutrientes. Um único exemplar de uma espécie de mangue na boca de um tubo de esgoto numa praia já é motivo para reflexão.

            Recebo agora uma reportagem publicada no “G1 – Espirito Santo” com o título “Pesquisadores descobrem manguezal de água doce na Amazônia”, datada de 2022. A expedição que localizou essa raridade diz tratar-se de uma pesquisa inédita. Mas, pelas informações da matéria jornalística, esses manguezais situam-se da zona estuarina do rio Amazonas, que sofre influência direta e indireta das altas marés equatoriais.

            A descoberta data de 2022. Sendo assim, reivindico essa novidade. Em 2019, percorrendo a ilha de Marajó, encontrei mangue vermelho (Rhizophora sp.) em água doce que sofre influência de maré sem se tornar salobra.

Bosque de Rhizophora sp. Em água doce. Ilha de Marajó. Foto do autor

            Voltando à Amazônia em maio de 2025, deparei com bosques de Avicennia germinans em Macapá e na cidade de Afuá, na ilha de Marajó. Quando a maré sobe, a massa de água salgada empurra a massa de água doce e barra seu fluxo, mas não a penetra. Acontece que propágulos de mangue são transportados por essas marés enviesadas e encontram lugar para se fixar, gerando bosques com árvores de grande porte.

            Não vi novidade nisso e não procurei a imprensa para anunciar a minha descoberta “inédita”, até porque não sou especialista e ninguém me daria atenção. Quando encontro um exemplar ou um bosque de Avicennia, lambo logo suas folhas atrás do sal exsudado, uma das características da espécie. Não percebi nenhuma salinidade nem na água nem na folha nos exemplares de mangue em Macapá e em Afuá. 

Bosque de siribeira (Avicennia germinans) em água doce - Macapá. Foto do autor

 

quarta-feira, 30 de abril de 2025

A ESTRADA DE VILA RICA A CAMPOS DOS GOYTACAZES

 Arthur Soffiati

Antes da ferrovia e da rodovia, como eram feitas as viagens para fins comerciais, científicos e pessoais no Brasil? As distâncias eram percorridas a pé ou em montarias por estradas de terra. Em grande parte, trilhas abertas por povos indígenas foram aproveitadas pelos portugueses na abertura dessas estradas. No século XIX, tornaram-se frequentes as hidrovias interiores, ou seja, os canais de navegação.

No norte-noroeste fluminense o major Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde arrola as seguintes estradas: São João da Barra a Niterói pela costa; Campos a Niterói pelo interior; Campos a Cantagalo pela margem direita do Paraíba do Sul; Campos a Minas Gerais pelo rio Pomba e Campos a Minas Gerais pelo rio Muriaé (Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I.F. da Costa, 1837).

Quanto aos canais de navegação, quatro foram abertos no século XIX para fins comerciais, principalmente. O mais conhecido e estudado dos quatro é o canal Campos-Macaé, que promovia também o transporte de passageiros. Os canais de Cacimbas, da Onça e do Nogueira destinavam-se mais ao transporte de recursos de São João da Barra e do Sertão da Onça, sendo que o do Nogueira não foi concluído e não chegou a funcionar (SOFFIATI, Arthur. Os canais de navegação do século XIX no Norte Fluminense Boletim do Observatório Ambiental Alberto Ribeiro Lamego nº 2 (Edição Especial). Campos dos Goytacazes: CEFET- Campos, jul-dez 2007).

Recentemente, Lucas da Silva Machado, em dissertação de mestrado, estudou o porto fluvial do rio Itapemirim, em sua foz. Embora se dedicando a um único porto, ele demonstrou a grande importância da navegação de cabotagem e a relação de Itapemirim com São João da Barra, Campos, Rio de Janeiro e Vitória, principalmente (“No caminho das águas: a trajetória histórica da Vila de Itapemirim e de seu porto (1800-1850)”. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, 2021).

            Também recentemente, foi publicado o livro “A estrada geral de Minas a Campos dos Goytacazes”, de autoria de Maria Joana Neto Capella, Angelo Alves Carrara e José Flávio Morais Castro (Juiz de Fora: Editora UFJF, 2021). Seria possível aos autores, formados em história, restringir-se aos documentos encontrados em arquivo, sem examinar a paisagem em que se estendeu essa estrada. Normalmente, historiadores têm preguiça de ir a campo ou mesmo ojeriza de sair do conforto dos gabinetes. No entanto, os três autores trabalharam com documentos de arquivo e tomaram a paisagem também como documento, fazendo três viagens pelas atuais estradas asfaltadas que se aproveitaram do traçado da estrada geral de Minas a Campos, que, por sua vez, valeu-se muito das trilhas abertas pelos povos indígenas da região.

            O prefácio de Carlos Eduardo Villa chama a atenção para o desprezo devotado ao espaço pelos historiadores. Num estudo clássico de história, o território cortado pela estrada Minas-Campos seria ignorado, como se a estrada se estendesse sobre o nada. No máximo, seria uma variável, o pano de fundo, segundo o autor. Seria palco, nunca personagem. O estudo dos três historiadores, contudo, tem como resultado um mapa georreferenciado da estrada, produto só possível com o concurso de geógrafos. Trata-se, enfim de um trabalho de história tradicional, ou seja, que se vale apenas de documentos de arquivo? Não. Ele vai além, ao considerar o espaço. Seria um estudo de geografia? Também não, embora recorra a ela. No máximo, o estudo se aproxima da história ambiental, mas não de forma incisiva. Os autores não situam a estrada em seu contexto geológico, fluvial e florestal. 

            Já existia uma estrada entre Vila Rica (atual Ouro Preto) e Presídio São João Batista (atual Visconde de Rio Branco). Em 1809, 84 moradores do arraial de São João Batista assinaram uma petição à coroa portuguesa manifestando o desejo de ligar a estrada existente a Campos dos Goytacazes. Já existia uma ligação entre a Zona da Mata Central e Campos, embora muito precária. A referência mais antiga sobre esse caminho encontrada pelos autores é um requerimento dos moradores de Mariana, Turvo, Tapera e Calambau enviada ao Visconde de Barbacena em 16 de dezembro de 1790. Em 1797, José de Deus Lopes, militar encarregado pelo governo de Minas de uma expedição de Presídio de São João Batista a São João da Praia do Mar, hoje São João da Barra.

A ligação de Minas a Campos é forte indicativo de um comércio potencial ou real entre as capitanias de Minas Gerais e Rio de Janeiro, principalmente com Campos, importante polo econômico do Rio de Janeiro. Em 1815, o príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied escreveu que Campos era o mais próspero núcleo urbano entre Rio de Janeiro e Salvador. Além de adquirir produtos de Minas, Campos exportava muitos artigos e constituía um ponto de acesso ao porto marítimo de São João da Barra. Em fevereiro de 1800, o padre Francisco da Silva Campos (Presídio de S. João Batista) encaminhou um requerimento a D. João propondo a abertura de uma estrada do Porto das Canoas do rio Pomba até Campos.

            Contudo, havia um problema. As riquezas minerais de Minas eram rigidamente controladas pela Coroa portuguesa. Havia, na capitania das Minas Gerais, várias áreas proibidas. “... as restrições ao povoamento e abertura de picadas no leste mineiro foram uma medida localizada, dirigida ao Sertão da Mantiqueira, na tentativa de inibir um processo de ocupação em curso e que pode ter atendido a interesses particulares”, escrevem os autores. Era natural que houvesse vozes a favor e contra a uma estrada geral que franqueasse riquezas ao Rio de Janeiro e ao Espírito Santo, sobretudo riquezas minerais. Luís Antônio Furtado de Mendonça, Visconde de Barbacena e ex-governador de Minas, era contra a estrada. Ele escreveu, em 9 de julho de1801 a D. Rodrigo de Souza Coutinho, então Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, um alerta quanto aos perigos dela: “A abertura da estrada para Campos dos Goytacazes é contrária ao sistema antigo do governo, havendo repetidas ordens para se acautelar e vedar coma maior exação e vigilância toda a comunicação por aquela parte, a fim de reduzir a mesma comunicação aos dois únicos caminhos que eram permitidos para a capitania do Rio de Janeiro por causa do extravio do ouro, dos diamantes e dos direitos das entradas que se devem pagar (...) nos registros; porém eu entendo (...) que sendo oportunamente aberta a estrada de que se trata, de modo que possa ser facilmente guardada, e posto em lugar conveniente o mesmo registro, que esta será uma providência útil aos povos de ambas as capitanias e à Real Fazenda, promovendo-se a cultura e povoação de um vasto território, aproveitando-se talvez algumas madeiras e as drogas que se produzem nos matos, provendo-se de gados os moradores dos referidos campos.” Além do mais, a estrada funcionou como poderoso elemento de ocidentalização das nações indígenas e de povoamento. A Coroa portuguesa tinha interesse nela, apesar dos riscos.

            A estrada Vila Rica-São João Batista, na barra do rio Bacalhau (os rios tinham mais importância no século XIX do que hoje), tornou-se um tronco de ramificação viária. Dali, partiam a estrada para Campos, seguindo o rio Pomba pela margem esquerda; a estrada para Abre Campo e para a Vila do Itapemirim, no Espírito Santo, que os autores confundem com Cachoeiro do Itapemirim. Trata-se de um erro tosco, pois, na segunda década do século XIX, Cachoeiro ainda não existia. Os autores também coroam D. João, Príncipe Regente, a rei anos antes de ele se tornar D. João VI, também outro erro elementar.

            Aberta entre 1809 (provavelmente) e 1811 (o que sugere a existência do aproveitamento de caminhos já existentes), vários viajantes passaram por parte dela ou a percorreram em seu todo, deixando relatos e mapas, como João de Deus Lopes (1797), Eschwege (1815), Spix e Martius (1817), João do Monte da Fonseca (1812 e 1815), Langsdorff e Rugendas (1824), Silva Pontes (1833), João José da Silva Teodoro (1847) e Burmeister (1853).

 Mapa de Hermann Burmeister, com o caminho por ele percorrido entre 1850 e 1852, nas Províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais

            Ela começava, como já dito, em Vila Rica, passava pelo Presídio de São João Batista, descia pela margem esquerda do rio Pomba, seguia pela margem esquerda do rio Paraíba do Sul até a foz do rio Boihé (Muriaé). A ligação entre a freguesia do Pomba a essa estrada foi autorizada por D. João em 1814. O legendário Guido Marlière desempenhou papel fundamental no processo de abertura da estrada e de ocidentalização de indígenas. A orientação do francês em Minas Gerais era integrar o índio sem violência. Nas proximidades da divisa de Minas e Rio de Janeiro, ergueu-se um posto de controle das pessoas e dos produtos transportados. Ficou conhecido como Registro do Pomba. Os autores situaram esse posto no atual município de Cambuci, pois há documentos sugerindo que ele se localizava no interior do curato confiado ao Pe. Antônio Martins Vieira, junto ao valão de nome Padre Antônio. Trata-se do valão D’Antas. Como o curato tinha grande extensão, parece que o Registro do Pomba se localizava na atual Aperibé.

            Em 1815, Maximiliano de Wied-Neuwied voltou de São Fidélis por essa estrada, como descreve em “Viagem ao Brasil”: “penetramos [...] numa sombria e majestosa floresta, onde voejavam lindíssimas borboletas. Nesse lugar, vimos no rio, junto à margem, uma ilhota toda cercada de rochas escarpadas, na qual havia algumas velhas árvores, repletas de ninhos em forma de saco, de guache. Canaviais, arrozais, cafezais (estes raramente) e algumas plantações de milho sucediam-se. A corrente do Paraíba era recortada de encantadoras ilhas, umas cultivadas, outras cobertas de mato. À tarde, chegamos a uma planura perto do rio, onde havia importante fazenda entre verdes pastagens [...] Do outro lado do vale se elevam altaneiras montanhas, entre elas o morro da Sapateira, alta cadeia de vários picos [...] Na manhã seguinte, depois que nossos cavalos foram reunidos no campo, continuamos a viagem, e alcançamos, pelo meio dia, o Muriaé, que não é largo, mas profundo e rápido, e se diz causar grandes estragos nas estações das chuvas [..] Uma pequena canoa levou-nos pela corrente, e, à tarde, atingimos um lugar donde se vê, graciosamente situada, estendendo-se na margem oposta, a vila de S. Salvador.” (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/edUsp, 1989).

 

            Em 1818, o naturalista alemão George Wilhelm Freyress percorreu a estrada geral de Vila Rica até o Presídio de São João Batista. O relato deixado por ele recebeu o título de “Diário da viagem à tribo dos índios coroados, de G. W. Freyress, de 22 de dezembro de 1818, apenso a minhas anotações”. Ele foi inserido em “Jornal do Brasil: 1811-1817” de Wilhelm Ludwig von Eschwege (Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 2002).

Com o subtítulo de “Novo caminho de Minas”, José Carneiro da Silva a descreve de forma resumida em livro de 1819: “Em junho de 1811 saiu em Campos o caminho que por ordem de Sua Alteza Real abriu-se de Minas, tendo de largura 40 palmos; nesse serviço andaram 80 homens comandados por um furriel. Perto de saírem em Campos faltou o mantimento, veio o dito furriel pedi-lo ao coronel Manoel dos Santos, este requereu à Câmara para o dar, esta não quis, então vários indivíduos ofereceram-se para concorrerem com a despesa que com efeito fizeram. Dizem que da 1ª povoação de Minas no rio Pomba tem 18 léguas e deste rio até onde saiu 14.” (Memória topográfica e histórica sobre os Campos dos Goytacazes. Campos: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2010).

Em 1837, a estrada já requeria reformas. Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde anota: “Acha-se esta estrada, se estrada se lhe pode chamar, em péssimo estado: pertence ela a nossa Província e a Seção a meu cargo desde o ribeirão de Sto. Antonio (porque aquela parte marca provisoriamente os limites entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro, na forma do Decreto de 8 de Novembro de 1831, e Portaria da Secretaria de Estado da Justiça dirigida à Câmara de Campos em 24 de maio de 1833), e nesta percorre uma extensão de 19 léguas até a foz do Paraíba, onde os mineiros levam seus numerosos e variados produtos à exportação marítima; até a confluência do rio da Pomba com o mencionado Paraíba, segue a estrada, tendo com pequenos intervalos de uma parte o primeiro rio, acima de nível do qual chega a erguer-se até 400 palmos, e de outra as alcantiladas e medonhas montanhas das Frecheiras.” O ribeirão Santo Antônio chama-se hoje valão D’Antas.

A estrada geral de Minas a Campos dos Goytacazes favoreceu o desmatamento, a ocidentalização dos indígenas e mesmo o seu extermínio. Ela intensificou o processo de ocupação das terras em suas vizinhanças. Ao todo, foram concedidas 84 sesmarias entre 1812 e 1821 em que a estrada aparece como a principal referência. As primeiras sesmarias situavam-se a montante da barra do rio Pomba, dentro de Minas Gerais. No Rio de Janeiro, a estrada promoveu o desenvolvimento de núcleos urbanos como Miracema, Santo Antônio de Pádua (originalmente aldeamento indígena) e Cambuci. Por ela, Campos importava gado, muares, carne de porco, toucinho, queijos, couro para solas, curtidos e crus. De Campos para Minas, principalmente para freguesias e arraiais da margem esquerda do Pomba, eram exportados vinho, sal, molhados, bacalhau, aguardente do reino, secos, farinha de trigo, fazenda seca, chumbo, cobre, aço, enxadas, louça, frasqueiras, pau-brasil, escravos e animais (bois, cavalos, éguas e potros). O comércio tinha por principal destino a vila de Campos, seguindo pequena parte para a Aldeia da Pedra (Itaocara), Cantagalo e cidade do Rio de Janeiro. Um produto muito procurado era a poaia cinzenta, usada no tratamento de disenteria, febre de mau caráter, coqueluche e bronquite.

Os autores informam, muito baseados em documentos produzidos em Minas Gerais, que a última notícia da estrada Minas-Campos é de 1838, quando a câmara da vila da Pomba pediu sua reforma. Da parte deles ainda, há muita hesitação em colocar Campos na capitania/província do Rio de Janeiro ou do Espírito Santo. A cartografia do século XVIII mostra que a capitania do Rio de Janeiro se estendia de Parati ao rio Itabapoana. Por um acordo de 1742, a justiça no Distrito de Campos dos Goytacazes passou a ser administrada pelo Espírito Santo. Rui Barbosa teve essa clareza: a vila de Campos não foi subordinada administrativamente à capitania do Espírito Santo, e sim à ouvidoria capixaba, divisão judiciária equivalente a comarca.

Os documentos fundamentais para o conhecimento da ligação de Minas com Campos, segundo os autores, são: 1- Relato do capitão Manuel José Pires da Silva Pontes (1833) e o mapa de Teodoro (1847). Este, de fato, é monumental. Ainda eles afirmam que não mais é possível percorrer de veículos o trecho entre Barra do Pomba a foz do Muriaé. Sim, é possível. A antiga estrada geral foi aproveitada pela RJ-194, de Aperibé a BR-356. Talvez seja possível ainda chegar-se até a foz do Muriaé. Carecemos agora de um estudo mais acurado da estrada no trecho fluminense e da estrada ligando Presídio de São João Batista a Itapemirim.

 

sexta-feira, 11 de abril de 2025

PALMA NA REDE FERROVIÁRIA DO SUDESTE

 Arthur Soffiati

            Na segunda metade do século XIX, as estradas de terra ou pavimentadas com pedra e os canais de navegação começaram a ser substituídos pelas ferroviais. A região mais beneficiada por esse meio de transporte, que já predominava na Europa e nos Estados Unidos, correspondia ao Sudeste de hoje. As províncias (hoje estados) mais atendidos foram Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo. Um mapa da rede ferroviária do Sudeste, datado de 1899 (já na República), mostra a pujança do sistema. 

Mappa geral das estradas de ferro dos estados do Rio de Janeiro, S. Paulo e Minas Geraes - 1899

            Campos foi um centro ferroviário. Dela partiam ou a ela chegavam as ferroviais Vitória-Rio de Janeiro, Carangola (ligando Campos ao noroeste fluminense e sul de Minas Gerais pela margem esquerda do rio Paraíba do Sul), Santo Amaro (Campos-Santo Amaro), Campos-Atafona, Campos-Zona da Mata Mineira.

 
Ferrovias com entroncamento em Campos dos Goytacazes segundo Manoel Rodrigues Peixoto (1908)

             Campos-Zona da Mata seguia pela margem direita do rio Paraíba do Sul até São Fidélis. Atravessava o rio para a margem esquerda por uma sólida ponte de ferro ainda hoje existente. Seguia até Três Irmãos. Quem desejasse ir para o Rio de Janeiro, descia nesse ponto, atravessava o Paraíba do Sul para a margem direita novamente e tomava um trem que subia a serra de Nova Friburgo e alcançava a baía da Guanabara. Quem desejava seguir para Minas Gerais continuava no trem.

            Este seguia adiante, passando em Baltazar, Santo Antônio de Pádua e Paraoquena, onde um ramal se dirigia a Miracema. A ferrovia seguia em direção a Cisneiro onde se ramificava. Para o norte, dirigia-se a Palma, onde foi construído um túnel sob formação montanhosa. Esse braço dirigia-se a Santa Luzia, com ramais planejados. A outra ramificação seguia em direção a Cataguazes, também com entroncamentos e trechos planejados. 

Detalhe do mapa de 1899 com o trecho examinado em azul

            Essa rede monumental e que tanto investimento em recursos financeiros, humanos e materiais acabou abandonada e substituída pela rede de rodovias. Hoje, sabemos que a ferrovia permite o transporte mais seguro de cargas com custos mais reduzidos e com impactos ambientais bem menores que o transporte rodoviário. Quem visita Palma tem uma visão melancólica ao encontrar os restos mortais de uma rede que foi pujante no passado. Aliás, em todos os lugares em que restaram ruínas das ferroviais.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Meu pé, meu pobre pé

 Arthur Soffiati

               Sou diabético. Tive de amputar o pé esquerdo. O médico me disse que eu tomasse cuidado com os pés quando me diagnosticou com diabetes. Fiquei apavorado. Passei a tomar todas as precauções. Comprei sapatos confortáveis e resistentes para evitar que uma topada causasse algum ferimento. Deixei de cortar as unhas dos pés. Passei a frequentar um podólogo, que me tratava com excessiva atenção. Evitei todos os ferimentos. Mas meus esforços de nada valeram.

Não fumo, nunca fumei. O cigarro concorre muito para agravar o estado do diabético. Apesar de tudo, parece que a circulação periférica foi reduzida e lesionou os nervos, afetou a anatomia dos ossos dos meus pés, sobretudo o do esquerdo, lado em que eu já havia sofrido fratura da fíbula. Será que ela contribuiu? O médico não se arriscou a confirmar. Apenas diagnosticou uma neuropatia diabética. Várias pequenas isquemias. Eu já sofri isquemia cerebral. Terei propensão à isquemia? Agora é tarde. Perdi meu pé esquerdo.  Meu pobre pé. Gangrenado e amputado. Não o perdi aos poucos, com a amputação de dedos. Cortei tudo na altura da parte inferior da perna.

Manchas vermelhas, pontos doloridos, facilidade para formação de bolhas e calosidades, joanetes. Não tenho pé chato. Posso muito bem constatar isso. Mas eu estava notando baixa pulsação nos pés. Sem a irrigação de sangue necessário, eles ficavam frios, a pele fina, arroxeada, seca, brilhosa. Corri ao médico várias vezes. Nunca me descuidei, mas perdi o pé esquerdo. Meu pobre pé. Agora, temo pelo pé direito.

Tudo começou com uma pequena úlcera na sola do pé. Procurei o médico. Ele tentou antibióticos para combater bactérias. Depois que ele me alertou para o risco do pé diabético, passei a usar sapatos fechados. Sabemos que os pés transpiram. Em meio fechado, a transpiração facilita a proliferação de bactérias. Elas agravaram a úlcera. Não desconfio do meu médico. Acho que ele fez o possível para evitar a amputação, mas não foi possível.

Sei que é ilegal manter um membro amputado em casa. Ele deve ser incinerado ou sepultado em caixões especiais. O destino de um membro amputado é semelhante ao destino de uma pessoa morta. Tudo bem. Acho acertado. Mas antes que meu pé fosse para o cemitério, dei um jeitinho bem brasileiro para me despedir dele.

Meu pé, meu pobre pé, hoje separado de mim... Agora, ele está nas minhas mãos. Estranho minhas mãos segurando meu pé fora de mim. O pé vem a ser um grande engenho da natureza. Ele já está presente, de maneira latente, em varias espécies de peixe. Estudei esse assunto como pude, embora não seja especialista. Sou fascinado pelas extremidades humanas por entender que elas contrariam a simetria bilateral externa do nosso corpo. Se traçarmos uma linha passando pelo nariz, pelo externo e pelo púbis, pela vulva notaremos que o corpo tem duas partes iguais: dois olhos, duas orelhas, duas glândulas mamárias em homens e mulheres, dois braços, duas mãos, duas pernas, dois pés, dois testículos, dois lábios da vulva. Por dentro, também há alguma simetria bilateral: dois pulmões, dois rins... A linha central divide o único nariz em duas narinas e a boca em dois lados iguais. Sei que há ligeiras diferenças entre um lado e outro, mas elas são praticamente imperceptíveis aos olhos.

Agora, examinemos a mão. Ela tem cinco dedos diferentes entre si. Para acompanhar a simetria, o dedo médio devia separar dois dedos de mesmo tamanho à direita e à esquerda. O mesmo com o pé. O que se considera um pé harmônico tem dedos que decrescem como uma escadinha ou como uma flauta de Pã. Da minha parte, vejo mão e pé como ferramentas altamente sofisticadas e, ao mesmo tempo, reminiscências primitivas da natureza. Eles se aproximam mais da estrela-do-mar, com sua simetria radial, do que dos mamíferos. Delírio meu.

As extremidades animais sempre me fascinaram. Elas não existem nos peixes. Talvez exista um projeto delas nos peixes. Dizem que o primeiro peixe a sair da água (que nome os cientistas lhe deram? Creio que foi Tiktaalik. Não tenho certeza. Não tenho como fazer essa consulta agora no Google) já tinha extremidades articuladas, com protótipo de pulsos e de dedos. Ele passeava na terra para obter alimento e voltava pra água. Genial invenção e também muito perigosa. Segundo os paleontólogos, os primeiros anfíbios tinham oito, sete dedos nas extremidades. Depois, esse número fixou-se em cinco. Por quê? Não sei. Um deles diz, com gracejo, que foi para tocar piano e usar teclado de máquina de escrever e computador.

As primeiras cobras tinham patas articuladas. Elas foram abandonadas. Algumas embutiram as patas e passarem a se arrastar ou a movimentá-las por dentro do corpo, como se as patas estivessem calçadas com luvas e sapatos. As aves transformaram as mãos em asas. Algumas, como a cigana, ainda guardam vestígios de mãos nas extremidades das asas. Alguns mamíferos aquáticos abandonaram parcial ou totalmente as extremidades. As focas transformaram os pés em nadadeiras, e as mãos têm os dedos ligados por membranas. Também as lontras. Mas as baleias e os golfinhos transformaram tudo em nadadeiras. Os morcegos fizeram como as aves: as mãos sustentam asas. Tudo isso é muito estranho.

Muito estranho também é eu estar sentindo coceira na sola do pé amputado. Estou coçando agora o local, mas não está adiantando. O pé não está mais no meu corpo. À noite, também sinto pulsações nas pontas dos dedos e nos calcanhares. Parece que o coração bate nestes pontos. Seriam neurônios? Neurocientistas dizem que o cérebro continua a reconhecer o membro amputado por algum tempo. Meu lado esquerdo sempre foi problemático. Caí de uma altura considerável e quebrei a fíbula esquerda (antigamente, era perônio. Foi preciso quebrar esse osso para aprender seu novo nome) bem perto do pé. Depois, tive um AVC isquêmico que me afetou o lado esquerdo. Ele me deixou sequelas da boca ao pé. Recuperei-me e estava disfarçando bem minhas dificuldades quando tive de amputar o pé. Também do lado esquerdo. Hoje, nem mesmo uma prótese vai disfarçar a ausência do pé.

Foi uma perda muito grande para mim. Há quem se conforme com a perda de um membro, como aquele jogador da Chapecoense. Ele agradece a Deus por ter levado só a sua perna. Não posso agradecer por ter conservado meu corpo sem o pé esquerdo. As extremidades humanas são, para mim, uma obra colossal que custou milhões de anos para ser construída. Não houve pressa da natureza para construí-la. Se houvesse, elas se pareceriam com os nossos prédios, que caem com facilidade. Não assim com mãos e pés, com todo o corpo humano. Houve muitos testes, muitos ajustes, muita paciência para se chegar a essa perfeição. Mas também há defeitos. Por causa do meu pâncreas defeituoso, perdi o pé esquerdo com todos aqueles ossinhos miraculosos.

Um tio me ensinou seus nomes. Tarso, metatarso e dedo. Depois, falange, falanginha e falangeta. Hoje, a arquitetura do pé é bem mais complexa. Na verdade, sempre foi. A gente é que aprendia de forma simplificada na escola. Agora, o nome certo é falange distal em lugar de dedos. São cinco falanges distais com tuberosidades, bases e cabeça, falanges médias também com cabeça e base, falanges proximais com corpo, base e cabeça. Cada osso parece um corpo humano. Tem cabeça, corpo de base. Existe o osso sesamoide medial e lateral  com o metatarso atrás, também ele com cabeça, corpo e base, o cuneiforme médio, intermédio e lateral, o osso navicular, o tarso, cuboide, o tálus e o calcâneo. Já estamos perto da perna, da tíbia e fíbula, osso que quebrei e que ficou em mim depois da amputação.

Meu pé, meu pobre pé será arrancado das minhas mãos daqui há pouco. Dizem que cabelos e unhas continuam a crescer depois que a gente morre. Será que as unhas do meu pé morto estão crescendo ainda? Não dá pra perceber. Elas crescem muito lentamente. Os pelos que nascem nos dedos e em cima do pé não estão mais aqui. Meu médico disse que eles pararam de crescer antes mesmo da amputação porque não havia mais a devida irrigação sanguínea.

Estranho as pessoas dizerem minha cabeça, minhas orelhas, minha boca, meu braço, minhas mãos, meus pés. Num livro que li do chileno Juan Emar, ele diz que sofreu um procedimento cirúrgico para descolar o telefone de sua orelha. Antes da cirurgia, ele cortou o fio do telefone para se libertar do aparelho. O corte fez verter sangue do fio. Embora o autor tenha desenvolvido uma literatura do absurdo, o que ele escreveu sobre o fone grudado na sua orelha com o fio sangrando faz sentido. Ou o telefone é um animal ou a orelha é um objeto inanimado.

A orelha não pode ser minha, pois não é um objeto que exista fora de mim. Não posso cortar minha orelha para dar ou vender. Dar até posso. Van Gogh cortou sua orelha e a enviou para a namorada. Mas certamente vão considerar este gesto doentio e macabro. As orelhas que estão em mim sou eu. Meu pé é eu. Não uma parte desatarrachável do corpo que posso tirar, dar e vender. Ao ser amputado, meu pé vai como uma parte minha. Morri alguns avos quando separam o pé de mim. Serei sepultado alguns avos quando o pé for sepultado. Este engenho fabuloso que está presente nas pessoas e em muitos animais vai virar esqueleto antes de mim. Os muitos ossos da sua estrutura vão aflorar quando os tecidos, os músculos, os nervos, a pele se deteriorarem. Será que meu pé resistirá sofrendo algum processo de mumificação natural?

Lembrei de uma múmia que existia no Museu Nacional do Rio de Janeiro cujo corpo não foi enrolado por inteiro, como um bloco. Tratava-se da múmia de uma moça. Os braços, as pernas, os dedos das mãos e dos pés foram envolvidos separadamente. Dava pra ver até os seios dela. Conheci um professor que era apaixonado por ela. Chamava-se Victor Stawiarski. Perdi-o de vista. Era muito alegre e engraçado. Deve ter morrido com os dois pés.

Certa vez, quando eu ainda estava na Universidade, deram-me a disciplina antropologia para ministrar. Argumentei que eu não tinha formação. Não consegui me livrar. Que eu me virasse, foi a resposta do coordenador. Estudei os fundamentos da ciência e escolhi alguns temas. Moda foi um deles. As alunas prevaleciam nas turmas. Não estou afirmando que mulher só gosta de moda. Mas eu precisava me sentir mais seguro numa área de conhecimento que eu não dominava. Foi um sucesso. As moças participaram ativamente, opinando sobre o que eu apresentava no PowerPoint. Eu queria mostrar como nossa cultura de massa impõe o tipo físico para ser modelo, sobretudo feminino. A mulher deve ter magreza anoréxica, com pouco busto, pernas finas, rosto pálido semelhante a de um zumbi.

De vez em quando, eu introduzia uma artista de cinema ou televisão para elas fazerem o contraste. Uma vez, exibi uma foto de Camila Pitanga com os seios nus e descalça. Os homens logo adoraram. Percorri seu corpo em detalhes, da cabeça aos pés. Gostei dos pés femininos, delicados, pequenos. Externei minhas sensações. Uma moça ponderou que pé de homem é muito feio e que pé de moça é mimoso. Ela usou este adjetivo. Concordei. Mas lembrei de pés femininos calejados, sofridos, maltratados pelo tempo e pelo trabalho.

Certa vez, num barbeiro que era salão de beleza popular também, uma mulher aparentemente pobre, de rosto enrugado, corpo arredondado, pernas arqueadas, de meia idade entrou e perguntou se era possível fazer as unhas. Uma das duas moças presentes respondeu que tinha uma cliente para as quatro horas, mas que, até lá, seria possível tratar das unhas da senhora. Com toda a naturalidade que há de existir neste mundo, a manicure perguntou: “pé e mão?”. “É”, respondeu a outra. Mais que depressa, a manicure encheu uma bacia de água quente com espuma e mergulhou aqueles pés encarquilhados de sua cliente nela. Enquanto tratava das unhas das mãos, aqueles horríveis pés ficavam de molho. Depois de certo tempo, tomou um a cada vez e os raspou com um ralo, com uma fisionomia de quem iria assobiar descontraidamente uma canção. Em seguida, enfiou entre os dedos chumaços de algodão para afastá-los e passou a pintar as unhas com esmalte vermelho. De vez em quando, eu olhava de esguelha aquela cena patética com medo de envergonhar a ambas. No entanto, nenhuma das duas conferia a mim a menor importância. Parecia-lhes fazer a operação mais natural que possa existir. A manicurada com aqueles dedos arreganhados. A manicure segurando aqueles pés sem qualquer pejo. Fiquei a me perguntar, mais uma vez em muitas na minha vida, como as pessoas podem considerar natural ter pés e exibi-los sem qualquer cerimônia.

            Mas, no geral, reparo e admiro a delicadeza dos pés femininos. Acho estranho ter as extremidades das extremidades do corpo, mãos e pés, pintadas. Sou de uma geração em que homem não pintava unhas, nem mesmo com base. Hoje, existem homens que frequentam salão de beleza, pintam mãos e pés sem nenhum constrangimento.

            Eu tinha tanta vergonha dos meus pés quando criança que, nem na praia, eu os exibia. Acompanhava meus pais calçando sandálias, que mostravam apenas os dedos e os calcanhares. Todos diriam que é tolice. Hoje, também digo, mas não sei de onde nasceu aquela vergonha. Parece até que meus pés desnudos mostravam a nudez de todo meu corpo.

            Eu queria ficar mais tempo com meu pé amputado. Ainda tenho várias reflexões a fazer, mas o enfermeiro chegou para levá-lo. Ele vai ser colocado numa urna para natimortos e sepultado no túmulo da minha família. Quanta ironia. Um pé desgarrado do corpo sendo tratado como criança falecida. Num último arroubo, beijei a sola dele. Nunca pensei que chegaria a fazer isso um dia. Restou-me apenas um pé que devo proteger. Adeus, meu pé, meu pobre pé.

domingo, 16 de março de 2025

BODAS DE PRATA

                              Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 15 de março de 2025

 Arthur Soffiati

            Entre 1997 e 2001, vivi em vários arquivos públicos e no campo para colher subsídios que permitissem redigir minha tese de doutorado. Escrevo a palavra sem vaidade e orgulho. Está no meu currículo como minha primeira publicação, em 1974. O tema escolhido para a tese foi a relação das sociedades humanas em seus diversos níveis com os manguezais do trecho costeiro que se estende do rio Itapemirim, no Espírito Santo e ao rio Macaé, no Rio de Janeiro. Pensei no processo erosivo que assola o noroeste fluminense, mas minha orientadora entendeu que o tema poderia não ser bem aceito por historiadores limitados a seres humanos. Trocar erosão por manguezal trouxe o mesmo resultado.

Examinando o litoral existente entre os dois rios mencionados, percebi que ele não conta com nenhuma formação pedregosa natural. As que existem resultam de intervenções humanas. Não havia novidade em tal descoberta. Em 1848, José Saturnino da Costa Pereira teve a mesma percepção e a registrou em “Apontamentos para a formação de um roteiro das costas do Brasil com algumas reflexões sobre o interior das províncias do litoral e suas produções” (Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1848).

            Se José Saturnino se deteve em mapas da época para perceber a peculiaridade de uma costa que estendeu até o rio Benevente, além de mapas, eu percorri toda essa extensão costeira a pé. Evidentemente que por etapas. De rio a rio, de vila a vila, de cidade a cidade. Ao mesmo tempo que tomava registros fotográficos, também entrevistava pessoas que dependiam dos manguezais para viver. Pessoas que moravam em suas adjacências. Pessoas que viviam distantes desse ecossistema e o ignorava ou desprezava e estudiosos acadêmicos que o pesquisavam.

Nos arquivos, eu encontrava jornais com informações sobre a destruição dessas florestas à beira-mar ou com medidas governamentais para sua proteção, geralmente ignoradas. Levantava também mapas antigos, documentos raros, livros esquecidos. Com a devida seleção, as informações contribuíam para minha investigação.

            Ao chegar a meu limite meridional, no rio Macaé, entendi que cabia examinar a faixa costeira até o rio São João e a incluí na tese. Enfrentei dificuldades com uma pesquisa de história ambiental no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Minha investigação ficaria melhor num curso de biologia ou de geografia, diziam os professores. Atualmente, eu não encontraria essas dificuldades, pois a instituição se abriu a este ramo da história.

            Relendo a tese um quarto de século depois da sua defesa, senti aquele misto de emoções que um pesquisador dedicado sente ao examinar sua vida. Trata-se de um trabalho pioneiro que não perdeu de todo a atualidade. Alguns outros foram elaborados posteriormente, mas sempre de forma pontual. E, preferencialmente, na área das ciências biológicas. Não houve muito interesse sobre o assunto da parte de cientistas sociais.

            Entendi que, além de conservar alguma atualidade, a tese transformou-se – ela mesma – num documento. Vários trabalhos meus publicados ulteriormente não pretenderam alcançar sua consistência em termos de pesquisa. Ela não se concentra apenas nas relações de sociedades humanas com manguezais, senão que também faz referências à colonização da costa por povoados, vilas e cidades. Todos cresceram nesses 25 anos. Os manguezais, por sua vez, perderam terreno.

            A tese passa de 500 páginas em dois volumes. Voltando a ela, concordo que o resultado de cinco anos de pesquisa é meio intragável até para cientistas interessados. A parte que, porventura, pode mais interessar aos pesquisadores das instituições acadêmicas de municípios costeiros, como Campos, São João da Barra e Quissamã corresponde à restinga formada pelo rio Paraíba do Sul, entre o rio Guaxindiba e o canal da Flecha. Essa restinga forma uma meia-lua entre o rio Guaxindiba e a lagoa do Açu. A partir de então estreita-se num cordão arenoso de 28 quilômetros resultante da luta entre o rio Paraíba do Sul e o mar.

            Em quase todos os manguezais que se formaram nessa restinga, contei com a colaboração da bióloga Norma Crud de corpo presente. Não apenas passei a atentar para os detalhes que ela me apontava, como também ela pareceu ter prazer em, mais uma vez, percorrer a extensão da restinga e além dela, como eu passei a atentar para detalhes que me passariam despercebidos. Ela não está mais entre nós, mas sua memória acompanha muitas pessoas que a conheceram pessoalmente ou a respeitam pelo legado de compromisso ético e pelo profissionalismo que se traduzia em paixão pelo conhecimento.


domingo, 2 de março de 2025

RUIM DA CABEÇA E DOENTE DO PÉ

 Arthur Soffiati

Nunca gostei de carnaval. Só participei desta festa duas vezes na vida, mesmo assim contra minha vontade. Na primeira vez, eu era criança e morava em Campinas. Não lembro do que aconteceu. Só sei que me fantasiaram de turco e me levaram a um baile carnavalesco infantil. Minha tia Nina, que me levou à festa com minha mãe, conta que fui muito elogiado, mas que fiquei como estátua num canto da sala, com a cara amarrada. Quando me jogavam confete, eu o recolhia do chão e o atirava de volta na pessoa que brincou comigo.

        Na segunda vez, eu já era adulto e tinha uma namorada. Por insistência dela, acabei aceitando acompanhá-la a um baile de carnaval à fantasia. Não fomos fantasiados. Era demais para mim. Lá, fiquei num canto, meio sem graça, até que apareceu uma moça baixinha, com fantasia sumária para a época, e me sorriu discreta. Na segunda vez em que passou por mim, ela esboçou uns passinhos de samba. Retribuí simulando um mestre-sala. Com um objeto de papelão, improvisei um leque e ajoelhei-me diante dela, levando-a a considerar-se porta-bandeira. Parece que ela gostou da brincadeira.

Nós dois, a moça e eu, não respeitamos as regras em vigor até hoje. Claro que eu apenas brincava e até satirizava um pouco a situação. Com razão, minha namorada não gostou, mas não fez escândalo. Deixamos o salão. Do lado de fora é que ela externou seu desagrado. Minha segunda experiência com carnaval foi um completo desastre. Daí em diante, voltei ao meu recolhimento durante a festa de Momo.

Por que não gosto de carnaval? Desde criança, sou tímido e melancólico. Agora, adulto e idoso, atento à realidade do mundo, não vejo motivo para alegria. De certa forma, tenho inveja das pessoas que mergulham na festa sorridentes e felizes. É uma inveja benigna. Não quero que os carnavalescos se sintam tristes e desanimados como eu. Apenas gostaria de ser como eles. De ter motivo para rir e dançar. Evocando a letra do "Samba da Minha Terra", de Dorival Caymmi, sou ruim da cabeça e doente do pé.

Eu fantasiado de turco, em 1949.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

POVOADOS MEDITERRÂNICOS

 Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 01 de fevereiro de 2025

Povoados mediterrânicos

Arthur Soffiati

            Em Faro, sul de Portugal, embarquei num autocarro (ônibus) rumo a Beja, onde eu seguiria para Barrancos, fronteira com a Espanha. Entraram atrás de mim, uma mãe e três filhos menores. Eram duas meninas e um menino com idades próximas. Talvez 8, 7 e 6 anos. Ela era branca e os filhos pardos. A presença de negros e asiáticos aumenta na Europa. Os casamentos inter-raciais também. Devia ser o caso da mãe.

            Eles ocuparam quatro poltronas no autocarro. Uma menina dormia. Logo, o menino pediu seu telemóvel (celular). A mãe respondeu que não era o momento de usar o aparelho e lhe ofereceu uma banana. Ele respondeu que banana não. Queria seu telemóvel. Começou a chorar. A mãe lhe ofereceu laranja. “Quero meu telemóvel”, insistiu ele chorando. A mãe ameaçou lhe dar palmadas, mas se conteve. Ela estava sob os olhares de outros passageiros. Não resistindo ao choro do menino, ela se deu por vencida e entregou o telemóvel ao filho.

            As duas meninas sentaram-se à minha frente e começaram a olhar para mim pelo intervalo entre as duas poltronas. Olhavam, riam e voltavam ao normal. Repetiram o gesto várias vezes. Uma delas se pôs de joelho na poltrona, olhou para mim por cima dela e perguntou meu nome. Respondi “Arthur”. Ela disse que tinha um primo com esse nome e puxou conversa me tratando de “você”. A mãe lhe chamou atenção, observando que a filha devia me chamar de “senhor” por conta da minha idade e por eu ser um rei. Agora, as duas conversavam comigo. “Você é rei?”. A mãe atalhava: “você não. Senhor”.

            Expliquei que a mãe delas não disse que eu era rei, mas tinha nome de um rei antigo. Elas ponderaram que o primo também se chamava Arthur e não era rei. Finalmente, sossegaram e dormiram.

            A viagem prosseguia. O ônibus entrava em tudo que era povoado para deixar ou apanhar passageiros. Chelote, Almodôvar, Rosário, Castro Verde (com maior porte), Albernoa, Santa Clara de Louredo... Eram pequenos lugares com casas baixas pintadas de branco, bem ao estilo mediterrânico, ruas estreitas e tortuosas. Eu tinha a impressão de que o ônibus (autocarro) iria trombar com alguma casa ou raspar numa. Mas o motorista, com grande habilidade em volante, fazia malabarismos e chegava ao ponto, geralmente uma pracinha.

            Finalmente, chegamos a Beja, de onde embarquei, no dia seguinte, para Barrancos. E novamente entramos em povoados com o mesmo traço urbanístico dos outros. Ou seja: nenhum. As mesmas ruas tortuosas, as mesmas casas antigas, baixas e brancas. Baleizão, Pias, Moura (este maior que os outros). Daí até Barrancos, também um povoado no alto de um morro, passamos por Safara. Na periferia desses povoados, até podem se erguer grandes fábricas. Parece que elas não podem descaracterizar os núcleos urbanos. Mais afastados, ficam as lavouras e os pastos.

            De volta a Beja, segui para Évora, a bela cidade do Alentejo. E mais povoados, sempre com nomes sonoros: Vidigueira, Alvito, Viana do Alentejo, Aguiar. Meu desejo era passar um dia em cada lugar daqueles. Eu via muitos idosos: homens e mulheres. Eles encurvados, barba áspera, cabelos curtos e desalinhados. Elas de roupas escuras. O preto é muito comum em mulheres idosas e jovens.

            Algumas vendas e bares. Grupos de pessoas conversando, falando alto. As paradas eram rápidas para que eu entendesse o que diziam. Conversavam nos falares alentejano e algarvio? Português do povo, como no Brasil. Eram pessoas nascidas naqueles povoados. Pessoas que sempre viveram neles. Pessoas nem pobres nem ricas, a julgar pelas vestimentas. Pessoas que trabalharam no campo, no pequeno comércio, em serviços e em outras atividades. Pessoas que dever ter saído pouco dos lugares em que vivem. Pessoas que não pensavam na vida e que se conformavam com o que tinham. Pessoas que não se preocupavam com a morte e que conviviam bem com ela. Pessoas religiosas que frequentavam igrejas e acompanhavam missas. Pessoas com devoção a algum santo. Enfim, pessoas que acompanhavam enterros de vizinhos e amigos, conformando-se com a morte e com seu sepultamento nos pequenos cemitérios locais, todos eles simpáticos e acolhedores sem causar espanto em ninguém.

            Particularmente, um habitante de um desses povoados secos me chamou a atenção. Ele ainda era jovem, mas tinha a aparência de envelhecido. Curvo, ele caminhava por uma das ruas estreitas. Parecia afetado por alguma anomalia cerebral. Talvez não tivesse consciência de existir. Talvez não conseguisse refletir sobre a vida. No final, morreria e seria sepultado num cemitério católico. Nós outros, que refletimos sobre a existência, podemos repudiar a morte, mas se trata de uma luta de antemão perdida. Melhor mesmo não poder pensar sobre o sentido da vida.



domingo, 26 de janeiro de 2025

SERTÃO DO QUIMBIRA

 Folha da Manhã, 25 de janeiro de 2025

Sertão de Quimbira

Arthur Soffiati

            No século XIX, a área entre o rio Ururaí e o rio Macabu, ao sul da lagoa de Cima, passou a figurar nos mapas com o nome de Sertão do Quimbira. No mapa de Manoel Martins do Couto Reis (1785), todo esse terreno integra o grande Sertão do Imbé, todo ele coberto por florestas e, nos mapas do século XVIII, contando com a advertência “sertão de índios brabos”. No terreno correspondente a ele, Couto Reis mostra que as terras já tinham dono. Aparecem os nomes do capitão Diogo Vieira, Pedro Rocha, Jacintho Barbosa, João Rodrigues, Antonio Monteiro e alguns outros não legíveis.

            Essa parte do Sertão do Imbé, em 1785, já era atravessada por uma estrada que cruzava o rio Ururaí e se bifurcava num local onde já existia a Capela do Carmo. A convenção usada por Couto Reis informa que a área era coberta por matas. Pode-se aventar que a estrada bifurcada permitia o acesso para o corte de árvores. Elas abriam caminho à colonização em moldes europeus e favoreciam o desbravamento do sertão para que se levasse a ele a “civilização”. 

            A geóloga Maria da Glória Alves informa que esse terreno é muito antigo, com idade de 635 milhões de anos. A serra do Imbé tem 550 milhões de anos, enquanto o maciço do Itaoca conta com 480 milhões de anos. Até mesmo um leigo interessado como eu nota, no antigo Sertão do Quimbira, a antiguidade do terreno. Ele é formado por colinas baixas, algumas ainda com vestígios pedregosos muito erodidos pelo tempo. Essas colinas são intercaladas por vales longos, quase todos sem saída para algum rio. Em tempo de chuvas, as águas se acumulam neles, formando ambientes semelhantes a lagoas. Nas estiagens, eles apresentam aspecto de brejos. Nos pontos altos (colinas) existem ainda hoje vestígios de antigas florestas estacionais (que sofrem influência das estações do ano) semideciduais (que perdem entre 20% a 50% de folhas na estação seca).

Relevo suave colinoso do Sertão de Quimbira. Ao fundo, Serra do Imbé. Foto: Maria da Glória Alves 

A rede hídrica não é tão complexa quanto a da planície formada pelo rio Paraíba do Sul. Os principais sistemas hídricos que irrigam o Sertão do Quimbira são os rios Macabu (que depositou sedimentos carreados da zona serrana em suas margens), Imbé, Urubu e lagoa de Cima. No mais, córregos pequenos descem da serra do Imbé como afluentes do rio Imbé. Em 1785, Couto Reis não conheceu o rio Urubu diretamente nem lhe deu nome. Ele também era conhecido, no século XIX, com o nome de Quimbira palavra de origem africana associada a cemitério.

Como já assinalado, a vegetação nativa era constituída por florestas nas colinas e vegetação adaptada a grande umidade nos brejos. Entre as árvores adaptadas a ambientes muito úmidos, figurava a caxeta, árvore da família bignoniaceae, integrada pelas diversas espécies de ipê. O nome científico da caxeta é “Tabebuia cassinoides”. Ela é também conhecida como tamanqueira e pau-de-tamanco e foi muito usada para fazer caixotes em que se embalava açúcar. Daí sua grande exploração. Hoje, é considerada uma espécie ameaçada. Ainda hoje, encontram-se exemplares de caixeta ou caxeta nos brejos do antigo Sertão do Quimbira. Existe até um núcleo habitacional com esse nome na área. Pelo prisma da história ambiental, a influência da caxeta na economia do sertão e regional merecia um estudo.

Os povos nativos que habitavam a área deveriam ser os mesmos que habitavam a planície e a serra. Grupos falantes das línguas macro-jê, como goitacases e puris. Esses povos estavam bem adaptados ao ambiente colinoso-embrejado do Sertão por viverem numa economia de subsistência. Tanto nos ambientes úmidos quanto nos secos, os recursos eram explorados dentro do seu limite de regeneração.

A colonização portuguesa mudou o aspecto do Sertão de Quimbira. As vastas e contínuas florestas foram removidas e substituídas por lavouras e pastagens. Desenvolvia-se nele, agora, uma economia mercantil que não respeitava os limites da natureza. Pelas características topográficas (não geológicas), poderíamos delimitar o antigo sertão entre os rios Preto e o norte da lagoa Feia, tendo a lagoa de Cima como centro. A urbanização dessa área não foi tão intensa quanto na planície e na serra. Na margem meridional da lagoa de Cima, foi criada a famosa freguesia de Santa Rita, da qual resta hoje apenas o nome da santa. A segunda localidade a aparecer nos mapas é Itaoca, que ganhou depois o nome de Ibitioca. Na margem norte da lagoa de Cima, registrem-se a vila de Morangaba e as localidades de São Benedito e Sossego do Imbé.

Retornando ao setor sul, ergueu-se aí a localidade de Paciência, hoje vila de Serrinha. De volta a Campos, passa-se por Caxeta, nome que alude à árvore muito comum nessa área. Cabe registrar ainda a localidade de Pernambuca. Nenhuma ferrovia atravessou o sertão. Ele é hoje cortado pela BR-101. Quem passa por ele de ônibus ou de automóvel não presta atenção em suas singularidades. Esperemos que os pesquisadores voltem seus olhos para o sertão.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

MORTO QUE VIVE

 Edgar Vianna de Andrade

Michael Curtiz nasceu em Budapeste, numa família judaica, com o nome de Manó Kertész Kaminer. Assim como Ernst Lubitsch, ele se transferiu para os Estados Unidos e se tornou um grande diretor de cinema. Embora tenha dirigido cerca de 50 filmes na Europa e cem filmes no Estados Unidos, para o grande público, ele se tornou popular com “As aventuras de Robin Hood”. Para os cinéfilos, “Casablanca” é um dos melhores filmes de todos os tempos.

Curtiz tinha um temperamento difícil, mas se ajustou às regras do cinema estadunidense. Não questionar muito o que os estúdios desejavam, dirigir filmes de aceitação popular (filmes que garantissem retorno), trabalhar com artistas designados, topar qualquer gênero. Ele dirigiu dramas, filmes de aventura, faroeste e até um filme cujo gênero seria classificado apressadamente como terror. Artistas renomados atuavam em seus filmes, mas ele dirigiu também artistas menores, como Boris Karloff, que tinha já uma longa filmografia e se destacou em “Frankenstein”. Com Curtiz, ele filmou “O morto ambulante” (The Walking Dead), de 1936.

Curtiz podia ser convencional num filme que visava um público em busca de susto e fadado ao esquecimento. Tanto que “O morto ambulante” raramente figura em sua filmografia. Mas artista não consegue deixar de ser artista mesmo quando lhe pedem um trabalho “menor”. Num filme de 65 minutos para a Warner Bros, Curtiz não esquece o expressionismo alemão e a arte cinematográfica. O roteiro é palatável. A atuação dos artistas não exige muito. Mas a câmara faz jus ao cinema como arte. A trama mistura ficção científica e gangsterismo. Advogados e promotores fazem apostas sobre as sentenças de um juiz durão que condenou Karloff, um pianista, a dez anos de prisão. Quando ele é libertado, a quadrilha o envolve numa trama para matar o juiz. No tribunal novamente, o julgamento começa com o fechamento das portas para o público. Pelos vidros foscos, aparece a silhueta de funcionários, sugerindo um julgamento também fosco. Na sala do júri, Karloff aparece ladeado de sombras longas e horizontais, antecipando o destino que o aguarda: as grades de uma prisão.

Paralelamente, um cientista assessorado por um jovem casal acaba ocupando papel relevante. Esse casal (sempre com aquelas moças bonitinhas, mas esquecíveis) testemunha a morte do juiz, mas teme represálias dos assassinos. A culpa recai sobre Karloff, que é condenado à cadeira elétrica. Ele se revolta, mas aceita a injustiça, e seu último pedido é morrer ao som de sua música predileta tocada por um violoncelista. Este ensaia sob um ventilador de teto que gira lento. A câmara enfoca o músico a partir do alto, numa cena típica de filme noir. Karloff caminha para a morte num plano inclinado sugestivo entre sombras de grades. A execução não é mostrada.

Pouco antes da morte do condenado, o casal decide testemunhar a favor dele. Quase tarde demais. Karloff morre, mas o cientista tenta, com sucesso, ressuscitá-lo. O clima do laboratório evoca “Frankenstein”. Não é um gráfico de batimentos cardíacos que assinala a ressurreição, mas luzes piscando mais forte progressivamente. O velho cientista não nega o espírito, acreditando que ele voltou ao corpo do morto. Ele quer saber o que aconteceu no pouco tempo em que o músico esteve morto, mas ele não se lembra.

Quando a mocinha executa sua música predileta ao piano, Karloff começa a se lembrar do que lhe aconteceu. Parece que voltou com o poder de vidência. Ele reconhece os verdadeiros criminosos. Curtiz recorre muito aos espelhos a partir de então. Um corte com a câmara fechando no plano horizontal e rapidamente abrindo sobre os verdadeiros assassinos é magistral. Karloff ressuscitado caminha como o monstro criado pelo Dr. Frankenstein. Ele adquiriu o poder de levar os assassinos à morte entre sombras e neblina. Karloff termina num cemitério numa noite soturna. É expressionismo alemão puro. Baleado pelos dois últimos assassinos, que morrerão num acidente de automóvel, Karloff não conseguirá revelar para o cientista o que viu após a morte. O natural tangencia o sobrenatural.

Curtiz mostra num filme curto e barato que cinema não é apenas roteiro e atuação. É fotografia em movimento. É efeito de luz. Mas o espectador assiste ao filme e nada nota além da história nesta pequena aula de cinema com um filme esquecido.



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