quarta-feira, 30 de abril de 2025

A ESTRADA DE VILA RICA A CAMPOS DOS GOYTACAZES

 Arthur Soffiati

Antes da ferrovia e da rodovia, como eram feitas as viagens para fins comerciais, científicos e pessoais no Brasil? As distâncias eram percorridas a pé ou em montarias por estradas de terra. Em grande parte, trilhas abertas por povos indígenas foram aproveitadas pelos portugueses na abertura dessas estradas. No século XIX, tornaram-se frequentes as hidrovias interiores, ou seja, os canais de navegação.

No norte-noroeste fluminense o major Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde arrola as seguintes estradas: São João da Barra a Niterói pela costa; Campos a Niterói pelo interior; Campos a Cantagalo pela margem direita do Paraíba do Sul; Campos a Minas Gerais pelo rio Pomba e Campos a Minas Gerais pelo rio Muriaé (Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I.F. da Costa, 1837).

Quanto aos canais de navegação, quatro foram abertos no século XIX para fins comerciais, principalmente. O mais conhecido e estudado dos quatro é o canal Campos-Macaé, que promovia também o transporte de passageiros. Os canais de Cacimbas, da Onça e do Nogueira destinavam-se mais ao transporte de recursos de São João da Barra e do Sertão da Onça, sendo que o do Nogueira não foi concluído e não chegou a funcionar (SOFFIATI, Arthur. Os canais de navegação do século XIX no Norte Fluminense Boletim do Observatório Ambiental Alberto Ribeiro Lamego nº 2 (Edição Especial). Campos dos Goytacazes: CEFET- Campos, jul-dez 2007).

Recentemente, Lucas da Silva Machado, em dissertação de mestrado, estudou o porto fluvial do rio Itapemirim, em sua foz. Embora se dedicando a um único porto, ele demonstrou a grande importância da navegação de cabotagem e a relação de Itapemirim com São João da Barra, Campos, Rio de Janeiro e Vitória, principalmente (“No caminho das águas: a trajetória histórica da Vila de Itapemirim e de seu porto (1800-1850)”. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, 2021).

            Também recentemente, foi publicado o livro “A estrada geral de Minas a Campos dos Goytacazes”, de autoria de Maria Joana Neto Capella, Angelo Alves Carrara e José Flávio Morais Castro (Juiz de Fora: Editora UFJF, 2021). Seria possível aos autores, formados em história, restringir-se aos documentos encontrados em arquivo, sem examinar a paisagem em que se estendeu essa estrada. Normalmente, historiadores têm preguiça de ir a campo ou mesmo ojeriza de sair do conforto dos gabinetes. No entanto, os três autores trabalharam com documentos de arquivo e tomaram a paisagem também como documento, fazendo três viagens pelas atuais estradas asfaltadas que se aproveitaram do traçado da estrada geral de Minas a Campos, que, por sua vez, valeu-se muito das trilhas abertas pelos povos indígenas da região.

            O prefácio de Carlos Eduardo Villa chama a atenção para o desprezo devotado ao espaço pelos historiadores. Num estudo clássico de história, o território cortado pela estrada Minas-Campos seria ignorado, como se a estrada se estendesse sobre o nada. No máximo, seria uma variável, o pano de fundo, segundo o autor. Seria palco, nunca personagem. O estudo dos três historiadores, contudo, tem como resultado um mapa georreferenciado da estrada, produto só possível com o concurso de geógrafos. Trata-se, enfim de um trabalho de história tradicional, ou seja, que se vale apenas de documentos de arquivo? Não. Ele vai além, ao considerar o espaço. Seria um estudo de geografia? Também não, embora recorra a ela. No máximo, o estudo se aproxima da história ambiental, mas não de forma incisiva. Os autores não situam a estrada em seu contexto geológico, fluvial e florestal. 

            Já existia uma estrada entre Vila Rica (atual Ouro Preto) e Presídio São João Batista (atual Visconde de Rio Branco). Em 1809, 84 moradores do arraial de São João Batista assinaram uma petição à coroa portuguesa manifestando o desejo de ligar a estrada existente a Campos dos Goytacazes. Já existia uma ligação entre a Zona da Mata Central e Campos, embora muito precária. A referência mais antiga sobre esse caminho encontrada pelos autores é um requerimento dos moradores de Mariana, Turvo, Tapera e Calambau enviada ao Visconde de Barbacena em 16 de dezembro de 1790. Em 1797, José de Deus Lopes, militar encarregado pelo governo de Minas de uma expedição de Presídio de São João Batista a São João da Praia do Mar, hoje São João da Barra.

A ligação de Minas a Campos é forte indicativo de um comércio potencial ou real entre as capitanias de Minas Gerais e Rio de Janeiro, principalmente com Campos, importante polo econômico do Rio de Janeiro. Em 1815, o príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied escreveu que Campos era o mais próspero núcleo urbano entre Rio de Janeiro e Salvador. Além de adquirir produtos de Minas, Campos exportava muitos artigos e constituía um ponto de acesso ao porto marítimo de São João da Barra. Em fevereiro de 1800, o padre Francisco da Silva Campos (Presídio de S. João Batista) encaminhou um requerimento a D. João propondo a abertura de uma estrada do Porto das Canoas do rio Pomba até Campos.

            Contudo, havia um problema. As riquezas minerais de Minas eram rigidamente controladas pela Coroa portuguesa. Havia, na capitania das Minas Gerais, várias áreas proibidas. “... as restrições ao povoamento e abertura de picadas no leste mineiro foram uma medida localizada, dirigida ao Sertão da Mantiqueira, na tentativa de inibir um processo de ocupação em curso e que pode ter atendido a interesses particulares”, escrevem os autores. Era natural que houvesse vozes a favor e contra a uma estrada geral que franqueasse riquezas ao Rio de Janeiro e ao Espírito Santo, sobretudo riquezas minerais. Luís Antônio Furtado de Mendonça, Visconde de Barbacena e ex-governador de Minas, era contra a estrada. Ele escreveu, em 9 de julho de1801 a D. Rodrigo de Souza Coutinho, então Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, um alerta quanto aos perigos dela: “A abertura da estrada para Campos dos Goytacazes é contrária ao sistema antigo do governo, havendo repetidas ordens para se acautelar e vedar coma maior exação e vigilância toda a comunicação por aquela parte, a fim de reduzir a mesma comunicação aos dois únicos caminhos que eram permitidos para a capitania do Rio de Janeiro por causa do extravio do ouro, dos diamantes e dos direitos das entradas que se devem pagar (...) nos registros; porém eu entendo (...) que sendo oportunamente aberta a estrada de que se trata, de modo que possa ser facilmente guardada, e posto em lugar conveniente o mesmo registro, que esta será uma providência útil aos povos de ambas as capitanias e à Real Fazenda, promovendo-se a cultura e povoação de um vasto território, aproveitando-se talvez algumas madeiras e as drogas que se produzem nos matos, provendo-se de gados os moradores dos referidos campos.” Além do mais, a estrada funcionou como poderoso elemento de ocidentalização das nações indígenas e de povoamento. A Coroa portuguesa tinha interesse nela, apesar dos riscos.

            A estrada Vila Rica-São João Batista, na barra do rio Bacalhau (os rios tinham mais importância no século XIX do que hoje), tornou-se um tronco de ramificação viária. Dali, partiam a estrada para Campos, seguindo o rio Pomba pela margem esquerda; a estrada para Abre Campo e para a Vila do Itapemirim, no Espírito Santo, que os autores confundem com Cachoeiro do Itapemirim. Trata-se de um erro tosco, pois, na segunda década do século XIX, Cachoeiro ainda não existia. Os autores também coroam D. João, Príncipe Regente, a rei anos antes de ele se tornar D. João VI, também outro erro elementar.

            Aberta entre 1809 (provavelmente) e 1811 (o que sugere a existência do aproveitamento de caminhos já existentes), vários viajantes passaram por parte dela ou a percorreram em seu todo, deixando relatos e mapas, como João de Deus Lopes (1797), Eschwege (1815), Spix e Martius (1817), João do Monte da Fonseca (1812 e 1815), Langsdorff e Rugendas (1824), Silva Pontes (1833), João José da Silva Teodoro (1847) e Burmeister (1853).

 Mapa de Hermann Burmeister, com o caminho por ele percorrido entre 1850 e 1852, nas Províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais

            Ela começava, como já dito, em Vila Rica, passava pelo Presídio de São João Batista, descia pela margem esquerda do rio Pomba, seguia pela margem esquerda do rio Paraíba do Sul até a foz do rio Boihé (Muriaé). A ligação entre a freguesia do Pomba a essa estrada foi autorizada por D. João em 1814. O legendário Guido Marlière desempenhou papel fundamental no processo de abertura da estrada e de ocidentalização de indígenas. A orientação do francês em Minas Gerais era integrar o índio sem violência. Nas proximidades da divisa de Minas e Rio de Janeiro, ergueu-se um posto de controle das pessoas e dos produtos transportados. Ficou conhecido como Registro do Pomba. Os autores situaram esse posto no atual município de Cambuci, pois há documentos sugerindo que ele se localizava no interior do curato confiado ao Pe. Antônio Martins Vieira, junto ao valão de nome Padre Antônio. Trata-se do valão D’Antas. Como o curato tinha grande extensão, parece que o Registro do Pomba se localizava na atual Aperibé.

            Em 1815, Maximiliano de Wied-Neuwied voltou de São Fidélis por essa estrada, como descreve em “Viagem ao Brasil”: “penetramos [...] numa sombria e majestosa floresta, onde voejavam lindíssimas borboletas. Nesse lugar, vimos no rio, junto à margem, uma ilhota toda cercada de rochas escarpadas, na qual havia algumas velhas árvores, repletas de ninhos em forma de saco, de guache. Canaviais, arrozais, cafezais (estes raramente) e algumas plantações de milho sucediam-se. A corrente do Paraíba era recortada de encantadoras ilhas, umas cultivadas, outras cobertas de mato. À tarde, chegamos a uma planura perto do rio, onde havia importante fazenda entre verdes pastagens [...] Do outro lado do vale se elevam altaneiras montanhas, entre elas o morro da Sapateira, alta cadeia de vários picos [...] Na manhã seguinte, depois que nossos cavalos foram reunidos no campo, continuamos a viagem, e alcançamos, pelo meio dia, o Muriaé, que não é largo, mas profundo e rápido, e se diz causar grandes estragos nas estações das chuvas [..] Uma pequena canoa levou-nos pela corrente, e, à tarde, atingimos um lugar donde se vê, graciosamente situada, estendendo-se na margem oposta, a vila de S. Salvador.” (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/edUsp, 1989).

 

            Em 1818, o naturalista alemão George Wilhelm Freyress percorreu a estrada geral de Vila Rica até o Presídio de São João Batista. O relato deixado por ele recebeu o título de “Diário da viagem à tribo dos índios coroados, de G. W. Freyress, de 22 de dezembro de 1818, apenso a minhas anotações”. Ele foi inserido em “Jornal do Brasil: 1811-1817” de Wilhelm Ludwig von Eschwege (Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 2002).

Com o subtítulo de “Novo caminho de Minas”, José Carneiro da Silva a descreve de forma resumida em livro de 1819: “Em junho de 1811 saiu em Campos o caminho que por ordem de Sua Alteza Real abriu-se de Minas, tendo de largura 40 palmos; nesse serviço andaram 80 homens comandados por um furriel. Perto de saírem em Campos faltou o mantimento, veio o dito furriel pedi-lo ao coronel Manoel dos Santos, este requereu à Câmara para o dar, esta não quis, então vários indivíduos ofereceram-se para concorrerem com a despesa que com efeito fizeram. Dizem que da 1ª povoação de Minas no rio Pomba tem 18 léguas e deste rio até onde saiu 14.” (Memória topográfica e histórica sobre os Campos dos Goytacazes. Campos: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2010).

Em 1837, a estrada já requeria reformas. Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde anota: “Acha-se esta estrada, se estrada se lhe pode chamar, em péssimo estado: pertence ela a nossa Província e a Seção a meu cargo desde o ribeirão de Sto. Antonio (porque aquela parte marca provisoriamente os limites entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro, na forma do Decreto de 8 de Novembro de 1831, e Portaria da Secretaria de Estado da Justiça dirigida à Câmara de Campos em 24 de maio de 1833), e nesta percorre uma extensão de 19 léguas até a foz do Paraíba, onde os mineiros levam seus numerosos e variados produtos à exportação marítima; até a confluência do rio da Pomba com o mencionado Paraíba, segue a estrada, tendo com pequenos intervalos de uma parte o primeiro rio, acima de nível do qual chega a erguer-se até 400 palmos, e de outra as alcantiladas e medonhas montanhas das Frecheiras.” O ribeirão Santo Antônio chama-se hoje valão D’Antas.

A estrada geral de Minas a Campos dos Goytacazes favoreceu o desmatamento, a ocidentalização dos indígenas e mesmo o seu extermínio. Ela intensificou o processo de ocupação das terras em suas vizinhanças. Ao todo, foram concedidas 84 sesmarias entre 1812 e 1821 em que a estrada aparece como a principal referência. As primeiras sesmarias situavam-se a montante da barra do rio Pomba, dentro de Minas Gerais. No Rio de Janeiro, a estrada promoveu o desenvolvimento de núcleos urbanos como Miracema, Santo Antônio de Pádua (originalmente aldeamento indígena) e Cambuci. Por ela, Campos importava gado, muares, carne de porco, toucinho, queijos, couro para solas, curtidos e crus. De Campos para Minas, principalmente para freguesias e arraiais da margem esquerda do Pomba, eram exportados vinho, sal, molhados, bacalhau, aguardente do reino, secos, farinha de trigo, fazenda seca, chumbo, cobre, aço, enxadas, louça, frasqueiras, pau-brasil, escravos e animais (bois, cavalos, éguas e potros). O comércio tinha por principal destino a vila de Campos, seguindo pequena parte para a Aldeia da Pedra (Itaocara), Cantagalo e cidade do Rio de Janeiro. Um produto muito procurado era a poaia cinzenta, usada no tratamento de disenteria, febre de mau caráter, coqueluche e bronquite.

Os autores informam, muito baseados em documentos produzidos em Minas Gerais, que a última notícia da estrada Minas-Campos é de 1838, quando a câmara da vila da Pomba pediu sua reforma. Da parte deles ainda, há muita hesitação em colocar Campos na capitania/província do Rio de Janeiro ou do Espírito Santo. A cartografia do século XVIII mostra que a capitania do Rio de Janeiro se estendia de Parati ao rio Itabapoana. Por um acordo de 1742, a justiça no Distrito de Campos dos Goytacazes passou a ser administrada pelo Espírito Santo. Rui Barbosa teve essa clareza: a vila de Campos não foi subordinada administrativamente à capitania do Espírito Santo, e sim à ouvidoria capixaba, divisão judiciária equivalente a comarca.

Os documentos fundamentais para o conhecimento da ligação de Minas com Campos, segundo os autores, são: 1- Relato do capitão Manuel José Pires da Silva Pontes (1833) e o mapa de Teodoro (1847). Este, de fato, é monumental. Ainda eles afirmam que não mais é possível percorrer de veículos o trecho entre Barra do Pomba a foz do Muriaé. Sim, é possível. A antiga estrada geral foi aproveitada pela RJ-194, de Aperibé a BR-356. Talvez seja possível ainda chegar-se até a foz do Muriaé. Carecemos agora de um estudo mais acurado da estrada no trecho fluminense e da estrada ligando Presídio de São João Batista a Itapemirim.

 

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