Arthur Soffiati
Antes da
ferrovia e da rodovia, como eram feitas as viagens para fins comerciais,
científicos e pessoais no Brasil? As distâncias eram percorridas a pé ou em
montarias por estradas de terra. Em grande parte, trilhas abertas por povos
indígenas foram aproveitadas pelos portugueses na abertura dessas estradas. No
século XIX, tornaram-se frequentes as hidrovias interiores, ou seja, os canais
de navegação.
No
norte-noroeste fluminense o major Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde arrola
as seguintes estradas: São João da Barra a Niterói pela costa; Campos a Niterói
pelo interior; Campos a Cantagalo pela margem direita do Paraíba do Sul; Campos
a Minas Gerais pelo rio Pomba e Campos a Minas Gerais pelo rio Muriaé
(Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Imprensa Americana de I.F. da Costa, 1837).
Quanto aos
canais de navegação, quatro foram abertos no século XIX para fins comerciais,
principalmente. O mais conhecido e estudado dos quatro é o canal Campos-Macaé,
que promovia também o transporte de passageiros. Os canais de Cacimbas, da Onça
e do Nogueira destinavam-se mais ao transporte de recursos de São João da Barra
e do Sertão da Onça, sendo que o do Nogueira não foi concluído e não chegou a
funcionar (SOFFIATI, Arthur. Os canais de navegação do século XIX no Norte Fluminense Boletim do Observatório Ambiental Alberto
Ribeiro Lamego nº 2 (Edição Especial). Campos dos Goytacazes: CEFET- Campos, jul-dez 2007).
Recentemente,
Lucas da Silva Machado, em dissertação de mestrado, estudou o porto fluvial do
rio Itapemirim, em sua foz. Embora se dedicando a um único porto, ele
demonstrou a grande importância da navegação de cabotagem e a relação de
Itapemirim com São João da Barra, Campos, Rio de Janeiro e Vitória,
principalmente (“No caminho das águas: a trajetória histórica da Vila de
Itapemirim e de seu porto (1800-1850)”. Vitória: Universidade Federal do
Espírito Santo, 2021).
Também
recentemente, foi publicado o livro “A estrada geral de Minas a Campos dos
Goytacazes”, de autoria de Maria Joana Neto Capella, Angelo Alves Carrara e
José Flávio Morais Castro (Juiz de Fora: Editora UFJF, 2021). Seria possível
aos autores, formados em história, restringir-se aos documentos encontrados em
arquivo, sem examinar a paisagem em que se estendeu essa estrada. Normalmente,
historiadores têm preguiça de ir a campo ou mesmo ojeriza de sair do conforto
dos gabinetes. No entanto, os três autores trabalharam com documentos de arquivo
e tomaram a paisagem também como documento, fazendo três viagens pelas atuais
estradas asfaltadas que se aproveitaram do traçado da estrada geral de Minas a
Campos, que, por sua vez, valeu-se muito das trilhas abertas pelos povos
indígenas da região.
O
prefácio de Carlos Eduardo Villa chama a atenção para o desprezo devotado ao
espaço pelos historiadores. Num estudo clássico de história, o território
cortado pela estrada Minas-Campos seria ignorado, como se a estrada se
estendesse sobre o nada. No máximo, seria uma variável, o pano de fundo,
segundo o autor. Seria palco, nunca personagem. O estudo dos três
historiadores, contudo, tem como resultado um mapa georreferenciado da estrada,
produto só possível com o concurso de geógrafos. Trata-se, enfim de um trabalho
de história tradicional, ou seja, que se vale apenas de documentos de arquivo?
Não. Ele vai além, ao considerar o espaço. Seria um estudo de geografia? Também
não, embora recorra a ela. No máximo, o estudo se aproxima da história
ambiental, mas não de forma incisiva. Os autores não situam a estrada em seu
contexto geológico, fluvial e florestal.
Já
existia uma estrada entre Vila Rica (atual Ouro Preto) e Presídio São João
Batista (atual Visconde de Rio Branco). Em 1809, 84 moradores do arraial de São
João Batista assinaram uma petição à coroa portuguesa manifestando o desejo de
ligar a estrada existente a Campos dos Goytacazes. Já existia uma ligação entre
a Zona da Mata Central e Campos, embora muito precária. A referência mais
antiga sobre esse caminho encontrada pelos autores é um requerimento dos
moradores de Mariana, Turvo, Tapera e Calambau enviada ao Visconde de Barbacena
em 16 de dezembro de 1790. Em 1797, José de Deus Lopes, militar encarregado
pelo governo de Minas de uma expedição de Presídio de São João Batista a São
João da Praia do Mar, hoje São João da Barra.
A ligação de
Minas a Campos é forte indicativo de um comércio potencial ou real entre as
capitanias de Minas Gerais e Rio de Janeiro, principalmente com Campos,
importante polo econômico do Rio de Janeiro. Em 1815, o príncipe alemão
Maximiliano de Wied-Neuwied escreveu que Campos era o mais próspero núcleo
urbano entre Rio de Janeiro e Salvador. Além de adquirir produtos de Minas,
Campos exportava muitos artigos e constituía um ponto de acesso ao porto
marítimo de São João da Barra. Em fevereiro de 1800, o padre Francisco da Silva
Campos (Presídio de S. João Batista) encaminhou um requerimento a D. João
propondo a abertura de uma estrada do Porto das Canoas do rio Pomba até Campos.
Contudo,
havia um problema. As riquezas minerais de Minas eram rigidamente controladas
pela Coroa portuguesa. Havia, na capitania das Minas Gerais, várias áreas
proibidas. “... as restrições ao povoamento e abertura de picadas no leste
mineiro foram uma medida localizada, dirigida ao Sertão da Mantiqueira, na
tentativa de inibir um processo de ocupação em curso e que pode ter atendido a
interesses particulares”, escrevem os autores. Era natural que houvesse vozes a
favor e contra a uma estrada geral que franqueasse riquezas ao Rio de Janeiro e
ao Espírito Santo, sobretudo riquezas minerais. Luís Antônio Furtado de
Mendonça, Visconde de Barbacena e ex-governador de Minas, era contra a estrada.
Ele escreveu, em 9 de julho de1801 a D. Rodrigo de Souza Coutinho, então
Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios
Ultramarinos, um alerta quanto aos perigos dela: “A abertura da estrada para
Campos dos Goytacazes é contrária ao sistema antigo do governo, havendo
repetidas ordens para se acautelar e vedar coma maior exação e vigilância toda
a comunicação por aquela parte, a fim de reduzir a mesma comunicação aos dois
únicos caminhos que eram permitidos para a capitania do Rio de Janeiro por
causa do extravio do ouro, dos diamantes e dos direitos das entradas que se
devem pagar (...) nos registros; porém eu entendo (...) que sendo oportunamente
aberta a estrada de que se trata, de modo que possa ser facilmente guardada, e
posto em lugar conveniente o mesmo registro, que esta será uma providência útil
aos povos de ambas as capitanias e à Real Fazenda, promovendo-se a cultura e
povoação de um vasto território, aproveitando-se talvez algumas madeiras e as
drogas que se produzem nos matos, provendo-se de gados os moradores dos
referidos campos.” Além do mais, a estrada funcionou como poderoso elemento de
ocidentalização das nações indígenas e de povoamento. A Coroa portuguesa tinha
interesse nela, apesar dos riscos.
A
estrada Vila Rica-São João Batista, na barra do rio Bacalhau (os rios tinham
mais importância no século XIX do que hoje), tornou-se um tronco de ramificação
viária. Dali, partiam a estrada para Campos, seguindo o rio Pomba pela margem
esquerda; a estrada para Abre Campo e para a Vila do Itapemirim, no Espírito
Santo, que os autores confundem com Cachoeiro do Itapemirim. Trata-se de um
erro tosco, pois, na segunda década do século XIX, Cachoeiro ainda não existia.
Os autores também coroam D. João, Príncipe Regente, a rei anos antes de ele se
tornar D. João VI, também outro erro elementar.
Aberta
entre 1809 (provavelmente) e 1811 (o que sugere a existência do aproveitamento
de caminhos já existentes), vários viajantes passaram por parte dela ou a
percorreram em seu todo, deixando relatos e mapas, como João de Deus Lopes
(1797), Eschwege (1815), Spix e Martius (1817), João do Monte da Fonseca (1812
e 1815), Langsdorff e Rugendas (1824), Silva Pontes (1833), João José da Silva
Teodoro (1847) e Burmeister (1853).
Ela
começava, como já dito, em Vila Rica, passava pelo Presídio de São João
Batista, descia pela margem esquerda do rio Pomba, seguia pela margem esquerda
do rio Paraíba do Sul até a foz do rio Boihé (Muriaé). A ligação entre a
freguesia do Pomba a essa estrada foi autorizada por D. João em 1814. O
legendário Guido Marlière desempenhou papel fundamental no processo de abertura
da estrada e de ocidentalização de indígenas. A orientação do francês em Minas Gerais
era integrar o índio sem violência. Nas proximidades da divisa de Minas e Rio
de Janeiro, ergueu-se um posto de controle das pessoas e dos produtos
transportados. Ficou conhecido como Registro do Pomba. Os autores situaram esse
posto no atual município de Cambuci, pois há documentos sugerindo que ele se
localizava no interior do curato confiado ao Pe. Antônio Martins Vieira, junto
ao valão de nome Padre Antônio. Trata-se do valão D’Antas. Como o curato tinha
grande extensão, parece que o Registro do Pomba se localizava na atual Aperibé.
Em
1815, Maximiliano de Wied-Neuwied voltou de São Fidélis por essa estrada, como
descreve em “Viagem ao Brasil”: “penetramos [...] numa sombria e majestosa
floresta, onde voejavam lindíssimas borboletas. Nesse lugar, vimos no rio,
junto à margem, uma ilhota toda cercada de rochas escarpadas, na qual havia
algumas velhas árvores, repletas de ninhos em forma de saco, de guache.
Canaviais, arrozais, cafezais (estes raramente) e algumas plantações de milho
sucediam-se. A corrente do Paraíba era recortada de encantadoras ilhas, umas
cultivadas, outras cobertas de mato. À tarde, chegamos a uma planura perto do
rio, onde havia importante fazenda entre verdes pastagens [...] Do outro lado
do vale se elevam altaneiras montanhas, entre elas o morro da Sapateira, alta
cadeia de vários picos [...] Na manhã seguinte, depois que nossos cavalos foram
reunidos no campo, continuamos a viagem, e alcançamos, pelo meio dia, o Muriaé,
que não é largo, mas profundo e rápido, e se diz causar grandes estragos nas
estações das chuvas [..] Uma pequena canoa levou-nos pela corrente, e, à tarde,
atingimos um lugar donde se vê, graciosamente situada, estendendo-se na margem
oposta, a vila de S. Salvador.” (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/edUsp, 1989).
Em
1818, o naturalista alemão George Wilhelm Freyress percorreu a estrada geral de
Vila Rica até o Presídio de São João Batista. O relato deixado por ele recebeu
o título de “Diário da viagem à tribo dos índios coroados, de G. W. Freyress,
de 22 de dezembro de 1818, apenso a minhas anotações”. Ele foi inserido em
“Jornal do Brasil: 1811-1817” de Wilhelm Ludwig von Eschwege (Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 2002).
Com o
subtítulo de “Novo caminho de Minas”, José Carneiro da Silva a descreve de
forma resumida em livro de 1819: “Em junho de 1811 saiu em Campos o caminho que
por ordem de Sua Alteza Real abriu-se de Minas, tendo de largura 40 palmos;
nesse serviço andaram 80 homens comandados por um furriel. Perto de saírem em
Campos faltou o mantimento, veio o dito furriel pedi-lo ao coronel Manoel dos
Santos, este requereu à Câmara para o dar, esta não quis, então vários
indivíduos ofereceram-se para concorrerem com a despesa que com efeito fizeram.
Dizem que da 1ª povoação de Minas no rio Pomba tem 18 léguas e deste rio até
onde saiu 14.” (Memória topográfica e histórica sobre os Campos dos Goytacazes.
Campos: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2010).
Em 1837, a
estrada já requeria reformas. Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde anota:
“Acha-se esta estrada, se estrada se lhe pode chamar, em péssimo estado:
pertence ela a nossa Província e a Seção a meu cargo desde o ribeirão de Sto.
Antonio (porque aquela parte marca provisoriamente os limites entre Minas
Gerais e o Rio de Janeiro, na forma do Decreto de 8 de Novembro de 1831, e
Portaria da Secretaria de Estado da Justiça dirigida à Câmara de Campos em 24
de maio de 1833), e nesta percorre uma extensão de 19 léguas até a foz do
Paraíba, onde os mineiros levam seus numerosos e variados produtos à exportação
marítima; até a confluência do rio da Pomba com o mencionado Paraíba, segue a
estrada, tendo com pequenos intervalos de uma parte o primeiro rio, acima de
nível do qual chega a erguer-se até 400 palmos, e de outra as alcantiladas e
medonhas montanhas das Frecheiras.” O ribeirão Santo Antônio chama-se hoje
valão D’Antas.
A estrada
geral de Minas a Campos dos Goytacazes favoreceu o desmatamento, a
ocidentalização dos indígenas e mesmo o seu extermínio. Ela intensificou o
processo de ocupação das terras em suas vizinhanças. Ao todo, foram concedidas
84 sesmarias entre 1812 e 1821 em que a estrada aparece como a principal
referência. As primeiras sesmarias situavam-se a montante da barra do rio
Pomba, dentro de Minas Gerais. No Rio de Janeiro, a estrada promoveu o
desenvolvimento de núcleos urbanos como Miracema, Santo Antônio de Pádua
(originalmente aldeamento indígena) e Cambuci. Por ela, Campos importava gado,
muares, carne de porco, toucinho, queijos, couro para solas, curtidos e crus.
De Campos para Minas, principalmente para freguesias e arraiais da margem
esquerda do Pomba, eram exportados vinho, sal, molhados, bacalhau, aguardente
do reino, secos, farinha de trigo, fazenda seca, chumbo, cobre, aço, enxadas,
louça, frasqueiras, pau-brasil, escravos e animais (bois, cavalos, éguas e
potros). O comércio tinha por principal destino a vila de Campos, seguindo
pequena parte para a Aldeia da Pedra (Itaocara), Cantagalo e cidade do Rio de
Janeiro. Um produto muito procurado era a poaia cinzenta, usada no tratamento
de disenteria, febre de mau caráter, coqueluche e bronquite.
Os autores
informam, muito baseados em documentos produzidos em Minas Gerais, que a última
notícia da estrada Minas-Campos é de 1838, quando a câmara da vila da Pomba
pediu sua reforma. Da parte deles ainda, há muita hesitação em colocar Campos
na capitania/província do Rio de Janeiro ou do Espírito Santo. A cartografia do
século XVIII mostra que a capitania do Rio de Janeiro se estendia de Parati ao
rio Itabapoana. Por um acordo de 1742, a justiça no Distrito de Campos dos
Goytacazes passou a ser administrada pelo Espírito Santo. Rui Barbosa teve essa
clareza: a vila de Campos não foi subordinada administrativamente à capitania
do Espírito Santo, e sim à ouvidoria capixaba, divisão judiciária equivalente a
comarca.
Os
documentos fundamentais para o conhecimento da ligação de Minas com Campos,
segundo os autores, são: 1- Relato do capitão Manuel José Pires da Silva Pontes
(1833) e o mapa de Teodoro (1847). Este, de fato, é monumental. Ainda eles
afirmam que não mais é possível percorrer de veículos o trecho entre Barra do
Pomba a foz do Muriaé. Sim, é possível. A antiga estrada geral foi aproveitada
pela RJ-194, de Aperibé a BR-356. Talvez seja possível ainda chegar-se até a
foz do Muriaé. Carecemos agora de um estudo mais acurado da estrada no trecho
fluminense e da estrada ligando Presídio de São João Batista a Itapemirim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário