Folha da Manhã, 11 de fevereiro de 2023
Arthur Soffiati
“Eu saía daqui de madrugada e passava uma semana pescando. Peixe de qualidade. Pra não estragar, eu salgava tudo.” A voz de seu Totonho era máscula. Com 96 anos de idade, seu aperto de mão era firme. Alto, magro, braços dos quais saltavam músculos, bigodinho de morador da baixada. Seu Totonho residia em Pipeiras, na margem direita do canal de Quitingute, que resultou da canalização do rio Água Preta entre 1940 e 1950.
“Verdade que o senhor saía de Atafona e chegava ao mar sem cruzar a barra do Paraíba, seu Totonho?”, perguntei. “Foi sua sobrinha-neta quem me trouxe até o senhor”, expliquei, para que ele não estranhasse minhas perguntas. Sugeri-lhe um roteiro provocador, esperando a explicação que eu desejava. “O senhor saía de Atafona de canoa até a nascente do rio Água Preta e descia a pé até Xexé ou Quixaba e rumava para o mar?”
“Não senhor. Eu subia o Paraíba de canoa, entrava no Água Preta, chegava no rio Açu e saía pela barra dele até o mar. Tinha muita raça de peixe. Dali, eu podia pegar o rumo da lagoa Feia tamém. Rompia pelo rio Bragança e saía naquele mar de água doce. Podia pegar o rumo do rio do Gil tamém. Naquele tempo, quando a baixada engordava com a chuvarada de verão, a força d’água rompia a Barra Velha de vez em quando e botava água no mar. Mas eu não saía por ela. O mar batia forte e fechava a barra quando a água garrava enfraquecendo. Era perigoloso sair por ela. Eu seguia em frente até a barra do rio Açu.”
“O rio Água Preta e Iguaçu era fundo. No Açu, barco de pesca entrava por ele mió que no Paraíba.” “E o que o senhor pescava nele?” “Ah, muita qualidade de peixe! Robalo, tainha, cruvina, jundiá. Muita raça mesmo. Dava muito camarão na barra do Açu e na Barra do Furado.”
“Mas na água doce do rio?” “Era doce inté certo ponto. Quando a maré subia, a água ficava saloba. O rio passava adonde hoje é Quixaba e Açu. Naquele tempo, não inxistia tanta casa nesses lugar tudo. Os fiote subia o rio pra crescê. Os grande vinha atrás pra comê os pequeno. Atonce, a gente pescava os grandote. Pescava muito. Eu passava uma semana pescando. Por isso tinha de sargar a pesca.”
“Nunca pensei que antigamente era assim.” (mentira, eu sabia, mas só por livros). “Era um mundo de água, professor. Já falei que eu levava uma semana fora só pescando. Levava muito tempo fora de casa, mas vortava com muita fartura de peixe e camarão.” “E tinha caranguejo, seu Totonho?” “Muita coisa. Tinha de toda a qualidade. Era de dá com o pé. Tinha aquele que veve na lama e que o povo gosta mais. Tinha aquele vermelhinho que sobe em árve. Tinha o guaiamu, que num entra na lama, fica só na marge do rio, mas isso tudo só perto da barra do Açu. O Água Preta não inxeste mais.”
“Tumém pesquei na lagoa de Gruçaí e Quipari. O senhor sabia que elas nascia no rio Água Preta? Quando o Paraíba engordava com as chuva, saía muita água pelo rio Doce, entrava em Gruçaí e Quipari, rompia a barra e arcançava o mar. Era um mundão de água. Pesquei nelas tumém. Dava muito peixe.”
“De fato, seu Totonho. Nasci em 1947, quando essas obras todas estavam sendo feitas. O senhor conheceu um mundo que não existe mais.” “Tinha muita água, muito rio, muita lagoa, muito peixe. Agora acabou tudo. Já vivi e vi muita coisa, professor. Hoje, não saio mais de casa. Se pudesse, não saía mais pra nada. Meu mundo acabou. Acho que Jesus nosso Senhor quis me castigar me deixando vivo tanto tempo. Será que meu castigo foi esse: vê meu mundo morrê e me deixá vivo? Mió ficá no meu cantinho aqui em Pipeiras.”
“O senhor se considera um muxuango, seu Totonho?” “Sim, sinhô. Eu sou mixuango. Nasci na ilha da Convivença, que agora acabô. Vim prá cá faz vinte anos, mas vi isso tudo nascê. O lado dereito do rio Água Preta foi mais povoado que o lado esquerdo. Palacete, Pipeiras, Barra do Jacaré, Sabonete, Cazumbá, Córrego Fundo, Marreca, Quixaba. Vi isso tudo nascê e crescê. Agora, é na margem esquerda que está chegando o progresso. Era tudo de barro e paia, Agora, só tem casa de teia.
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