Arthur Soffiati
Unidade
do homem. Os defensores da supremacia branca não contam com a mínima base
científica. Se um deles recuar 500 anos na sua árvore genealógica, encontrará
fatalmente um amarelo e um negro como antepassado. A rigor, a humanidade é
negra. O branco é um negro disfarçado. O asiático é negro em seu genoma. Aliás,
a genômica demonstra claramente que todos nós somos negros. Trata-se de uma
conclusão óbvia. Se a origem da humanidade está na África, toda ele tem um
fundo negro. Tolice organizar uma árvore genealógica em busca de um negro, pois
ele estará em algum galho. Mas, como os supremacistas brancos desprezam a
ciência, continuarão a alimentar a farsa da raça pura.
Pré-história
e história. Já escrevi a respeito dessa divisão da trajetória da humanidade
para argumentar que ela não se sustenta. O que marca o fim da pré-história e o
início da história? A divisão territorial e social do trabalho? A emergência do
Estado? A invenção da escrita? Cabe lembrar que nenhuma dessas emergências
originou-se como milagre. Sem o que se chama de pré-história não haveria
história. Conclui-se, portanto que tudo é história.
Apliquemos essa conclusão à história
do Brasil. Acaso a história da Índia começa com a chegada dos europeus a ela em
1498 e com a elevação de Goa como sede do império colonial luso na Ásia e na
África? Ou, antes da chegada de nossos bravos avozinhos, já havia uma longa
história na Índia? Acaso a história da China começa com a fundação de Macau
pelos portugueses na foz do rio das Pérolas? Ou com as Guerras do Ópio movidas
pelos interesses comerciais da Companhia da Índias Orientais? Acaso a história
do Japão começa com a Revolução Meiji, em 1868,
abrindo o país para o ocidente?
Nos três casos, os livros didáticos
e especializados produzidos nos três países e no ocidente consideram que havia
história neles antes da chegada dos europeus. A história da China e da Índia
remonta a 1500 anos antes de Cristo. A dominação europeia em ambos
acrescenta-se à história anterior das duas civilizações.
Pergunta-se então por que a história
na América começa apenas com a chegada de Colombo e de Cabral? Por que se
divide a história da América e de cada um de seus países em pré-história (até a
chegada dos europeus) e em história (com a invasão, conquista e colonização
europeia)? Por que não reconhecemos uma história pré-ocidental nas Américas
como o fazemos em relação à Índia, China e Japão? Se só as civilizações merecem
o estatuto de história, lembremos os casos dos Incas, Maias e Astecas.
Lembremos que os chamados povos sem história têm história. Então, o certo seria
admitir que a chegada dos europeus à América não inaugura a história do continente
e sim inicia nova fase de um processo histórico milenar já existente.
Multiculturalismo
e multinaturalismo. As culturas asiáticas e europeias foram muito marcadas pela
agricultura e, principalmente, pelo pastoreio. Nelas, a imagem do bom pastor,
aquele ser superior aos animais e mesmo superior aos demais humanos. A
filosofia ocidental foi profundamente marcada por essa concepção. O filósofo é
o bom pastor de humanos. Portanto, é superior ao rebanho. Pastor e rebanho são
superiores a outros povos. Essa convicção moveu a dominação de povos não
europeus pelos europeus. Todos os povos têm cultura, mas uma delas é superior
às outras. A cultura ocidental é superior às demais culturas do mundo.
Já na Sibéria, na Oceania, na África
e na América, desenvolveu-se outra concepção de mundo, que tem por base a caça.
A agricultura e o pastoreio não foram tão marcantes em regiões geladas porque,
nelas, as condições climáticas não permitiram o desenvolvimento da agricultura.
O pastoreio não teve pleno desenvolvimento. Daí o modo de vida dos siberianos
depender, em boa medida, da caça. Na Austrália, o ambiente repleto de animais
também favorecia a caça. Na Oceania, o mar imenso era um convite à pesca. Na
África subsaariana, a diversidade faunística reduziu a agricultura e o
pastoreio, o mesmo acontecendo com a América.
A caça como base da economia, em vez
de o pastoreio, propiciou a formação de uma concepção de mundo diametralmente
diferente da ocidental. Em vez de multiculturalismo, um multinaturalismo. Como
explica o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, na visão multinaturalista,
existe uma só cultura compartilhada pelos humanos e pelos animais. Mas cada um
vê a natureza conforme sua anatomia. Assim, a natureza não é una, como para o
ocidente, mas múltipla. O humano constrói sua natureza e a onça constrói outra.
O sangue é o cauim para a onça, assim como o cauim é o sangue para o humano.
Cada animal tem a sua natureza de acordo com sua perspectiva. Apenas o xamã tem
acesso a essa diversidade de naturezas a aos espíritos. Daí o perspectivismo e
o xamanismo.
Essa concepção de mundo está se
extinguindo com a assimilação, a integração e o extermínio dos povos pioneiros.
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