segunda-feira, 19 de abril de 2021

MEU DESCONFORTO NO DIA DO ÍNDIO (FINAL)

Arthur Soffiati

Unidade do homem. Os defensores da supremacia branca não contam com a mínima base científica. Se um deles recuar 500 anos na sua árvore genealógica, encontrará fatalmente um amarelo e um negro como antepassado. A rigor, a humanidade é negra. O branco é um negro disfarçado. O asiático é negro em seu genoma. Aliás, a genômica demonstra claramente que todos nós somos negros. Trata-se de uma conclusão óbvia. Se a origem da humanidade está na África, toda ele tem um fundo negro. Tolice organizar uma árvore genealógica em busca de um negro, pois ele estará em algum galho. Mas, como os supremacistas brancos desprezam a ciência, continuarão a alimentar a farsa da raça pura.

Pré-história e história. Já escrevi a respeito dessa divisão da trajetória da humanidade para argumentar que ela não se sustenta. O que marca o fim da pré-história e o início da história? A divisão territorial e social do trabalho? A emergência do Estado? A invenção da escrita? Cabe lembrar que nenhuma dessas emergências originou-se como milagre. Sem o que se chama de pré-história não haveria história. Conclui-se, portanto que tudo é história.

            Apliquemos essa conclusão à história do Brasil. Acaso a história da Índia começa com a chegada dos europeus a ela em 1498 e com a elevação de Goa como sede do império colonial luso na Ásia e na África? Ou, antes da chegada de nossos bravos avozinhos, já havia uma longa história na Índia? Acaso a história da China começa com a fundação de Macau pelos portugueses na foz do rio das Pérolas? Ou com as Guerras do Ópio movidas pelos interesses comerciais da Companhia da Índias Orientais? Acaso a história do Japão começa com a Revolução Meiji, em  1868, abrindo o país para o ocidente?

            Nos três casos, os livros didáticos e especializados produzidos nos três países e no ocidente consideram que havia história neles antes da chegada dos europeus. A história da China e da Índia remonta a 1500 anos antes de Cristo. A dominação europeia em ambos acrescenta-se à história anterior das duas civilizações.

            Pergunta-se então por que a história na América começa apenas com a chegada de Colombo e de Cabral? Por que se divide a história da América e de cada um de seus países em pré-história (até a chegada dos europeus) e em história (com a invasão, conquista e colonização europeia)? Por que não reconhecemos uma história pré-ocidental nas Américas como o fazemos em relação à Índia, China e Japão? Se só as civilizações merecem o estatuto de história, lembremos os casos dos Incas, Maias e Astecas. Lembremos que os chamados povos sem história têm história. Então, o certo seria admitir que a chegada dos europeus à América não inaugura a história do continente e sim inicia nova fase de um processo histórico milenar já existente.  

Multiculturalismo e multinaturalismo. As culturas asiáticas e europeias foram muito marcadas pela agricultura e, principalmente, pelo pastoreio. Nelas, a imagem do bom pastor, aquele ser superior aos animais e mesmo superior aos demais humanos. A filosofia ocidental foi profundamente marcada por essa concepção. O filósofo é o bom pastor de humanos. Portanto, é superior ao rebanho. Pastor e rebanho são superiores a outros povos. Essa convicção moveu a dominação de povos não europeus pelos europeus. Todos os povos têm cultura, mas uma delas é superior às outras. A cultura ocidental é superior às demais culturas do mundo.

            Já na Sibéria, na Oceania, na África e na América, desenvolveu-se outra concepção de mundo, que tem por base a caça. A agricultura e o pastoreio não foram tão marcantes em regiões geladas porque, nelas, as condições climáticas não permitiram o desenvolvimento da agricultura. O pastoreio não teve pleno desenvolvimento. Daí o modo de vida dos siberianos depender, em boa medida, da caça. Na Austrália, o ambiente repleto de animais também favorecia a caça. Na Oceania, o mar imenso era um convite à pesca. Na África subsaariana, a diversidade faunística reduziu a agricultura e o pastoreio, o mesmo acontecendo com a América.

            A caça como base da economia, em vez de o pastoreio, propiciou a formação de uma concepção de mundo diametralmente diferente da ocidental. Em vez de multiculturalismo, um multinaturalismo. Como explica o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, na visão multinaturalista, existe uma só cultura compartilhada pelos humanos e pelos animais. Mas cada um vê a natureza conforme sua anatomia. Assim, a natureza não é una, como para o ocidente, mas múltipla. O humano constrói sua natureza e a onça constrói outra. O sangue é o cauim para a onça, assim como o cauim é o sangue para o humano. Cada animal tem a sua natureza de acordo com sua perspectiva. Apenas o xamã tem acesso a essa diversidade de naturezas a aos espíritos. Daí o perspectivismo e o xamanismo.

            Essa concepção de mundo está se extinguindo com a assimilação, a integração e o extermínio dos povos pioneiros.   










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