quinta-feira, 15 de julho de 2021

ILHA DO MEL

Arthur Soffiati

Diante de mim, tenho o livro História natural e conservação da ilha do Mel (Márcia C. M. Marques e Ricardo Miranda (orgs.). Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2005..  Comprei por compulsão. Todos os capítulos são escritos por especialistas em ciências geológicas e biológicas. Só consegui ler os capítulos referentes a geologia, vegetação e alguma coisa sobre fauna. O livro deve ser bom para especialistas, mas não traz nada que evoque minhas memórias de infância nessa ilha, a não ser o mangue.

Em 1955, vivi lá o primeiro de dois momentos mais alegres da minha vida. Eu tinha oito anos. Morávamos em Paranaguá. Meu pai era militar do Exército e foi designado para comandar o forte Nossa Senhora dos Prazeres na Ilha do Mel durante as férias de um mês do seu comandante. Ele foi erguido entre 1767-69, dentro da política de fortalecimento do Império Português do Marquês de Pombal.

Aquele forte era o coração da ilha quando lá vivi por um mês. Eram poucas casas, em sua maioria de pescadores. O forte gerava energia para a ilha. Às 18 horas, um soldado ligava o gerador. Eu costuma acompanhá-lo para ver a máquina funcionar e levar uma luz fraca para a casa do forte e as outras casas. Creio que todas elas ficavam em torno do forte. A energia gerada permitia, no máximo, a luz bruxuleante e a sintonia de um rádio.

Eram quatro pessoas de fora: meu pai, minha mãe, eu e meu irmão. Parece que os soldados moravam lá. Eles cuidavam de uma bateria de canhões no alto do morro em cujo sopé ergue-se a fortaleza. Na sua entrada, havia calabouços para os prisioneiros. Era um lugar lúgubre atingido pelo mar com as marés cheias. As paredes eram desenhadas. Eu fantasiava os prisioneiros ali, com os pés dentro d’água, desenhando nas paredes. Os calabouços ficavam de ambos os lados da entrada. Um portão enorme dava acesso ao interior da fortaleza. A casa era pequena: uma sala central, creio que dois quartos de cada lado, uma cozinha e um banheiro.

Na parte da frente, havia canhões antigos apontados para o mar. Eles não funcionavam mais. Eu imaginava navios piratas ou estrangeiros se aproximando da ilha e sendo recebidos por bolas de ferros disparadas dos canhões. No alto do morro, que só visitei uma vez em companhia do meu pai, os canhões eram mais modernos. O calibre deles era de 155 milímetros. Vim a lidar com esses canhões doze anos depois, quando prestei serviço militar.

Cabia a mim levar uma marmita para trazer o almoço e o jantar do dia na casa de uma pescadora ou mulher de pescador não muito longe do forte. Eu descia uma escada de madeira pela lateral da fortaleza e passava por um riacho de água vermelha. Aquele sangue da natureza me espantava. O córrego saía de uma espécie de lagoa onde cresciam árvores estranhas. Elas tinham pernas compridas em sua lateral. Mais tarde, descobri que se tratava de exemplares de mangue vermelho, que vim a conhecer mais detalhadamente na foz do rio Paraíba do Sul, em 1980. 

Antigos canhões no Forte Nossa Senhora dos Prazeres, ilha do Mel.

Na volta, eu passava novamente pelo riacho, subia as escadas de madeira e as refeições do dia estavam garantidas. Na maior parte do tempo, eu vivia solto dentro e fora do forte. Eu me sentia feliz, mas não tinha consciência dessa felicidade. Só em 1956, fui matriculado numa escola. Até então, eu não sabia o que era estudar. Assim, passamos um mês naquele paraíso. Visitamos a gruta das Encantadas, mas não dei muita atenção a ela. O que muito me atraía era ficar largado dentro do forte ou ir à praia. Certa vez, assustado, vi uma aranha correr para o mar, ela sim, assustada comigo. Houve um dia em que meu irmão caiu de joelhos sobre uma pedra com cracas e se machucou todo. Lamentei o fim daquelas férias maravilhosas. De barco, voltamos a Paranaguá.

Em 1974, meu pai, minha mãe, minha namorada e eu fizemos uma visita aos meus avós em Curitiba. Eles haviam decidido voltar a morar lá depois de viverem anos no Rio de Janeiro e algum tempo em Campos, onde eu já havia me fixado. Aproveitamos a oportunidade para revermos Paranaguá. Um primo nos acompanhou. Chegamos ao ancoradouro e tiramos algumas fotos com uma câmara sem recursos. Meu primo enjoou muito com o balanço do barco. Não nos afastamos muito do ancoradouro para não perdermos a viagem de volta. Eu queria muito retornar ao forte da minha infância. Voltamos logo para Paranaguá e Curitiba.

Em julho de 2016, a namorada que me acompanhou na visita de 1973 estava casada comigo. Tomado por aquelas recordações que acometem os velhos, tomei a decisão de rever Curitiba, Paranaguá e a ilha do Mel. Ela me acompanhou. Descemos no ancoradouro e rumamos a pé para uma pousada na parte menor da ilha. Munidos de coragem, fomos de bicicleta ao forte pela areia dura da praia. O espaço parecia ter encolhido. O forte se transformou em museu. Seu diretor nos recebeu muito bem. Deu-nos um caderno com escritos de pessoas marcadas pela ilha. Subimos o morro até o ponto em que os canhões ficavam. Contemplei o mar na parte fronteira do forte buscando a atmosfera de 1955. Não estava mais lá. Respirei fundo pensando nesse fenômeno que é o tempo. O riacho continuava lá, mas as árvores de mangue vermelho não se erguiam mais de suas águas. Encontrei apenas uma muda dele. Bastou para confirmar as informações registradas na minha memória.

Visitamos as Encantadas e fizemos um passeio de barco até a ilha da Peças sem descer nela. Voltei contrariado por não ter feito tudo que desejava: caminhar ao redor da ilha e visitar com calma as ilhas das Peças e de Superagui. Ir a Guaraqueçaba, sempre muito mencionada por meu avô. Fui a Antonina e me encantei com a cidade. Meus avós falavam muito dela. Gostaria da ir a Guaratuba e Matinhos, lugares também mencionados por eles.

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