sexta-feira, 16 de julho de 2021

REGIÃO DOS LAGOS: MINIATURA DO CENTRO-SUDESTE DO BRASIL

Arthur Soffiati

Ainda hoje, a geopolítica de cada país é usar a população como fator de segurança nacional. A Amazônia, por exemplo, é o calcanhar-de-aquiles do governo brasileiro. Ela tem 5 milhões de quilômetros quadrados para uma população de 20,3 milhões de moradores. Considerando-se que 68,9% desse número vive em cidades, a Amazônia é um imenso vazio demográfico desprotegido diante da cobiça internacional. Para as forças armadas e para os governos, ela pode ser invadida a qualquer momento. O conceito de segurança nacional mudou. Não é preciso mais superlotar o espaço para conhecê-lo e garantir sua segurança. Os satélites hoje são capazes de detectar uma pulga do espaço. O grande perigo é a leniência com a invasão interna de ruralistas, desmatadores e garimpeiros.

  Pulando para a Região dos Lagos fluminense, constaremos que ela tem muita água e pouca terra. A água está contida, em sua maior parte, em lagoas hipersalinas e salinas que se comunicam com o mar. Os rios são pequenos porque descem do divisor de águas entre a região e a bacia do rio São João. Os rios que correm para sul não chegam ao mar diretamente porque encontram logo uma lagoa a sua frente. Portanto, alcançam o mar indiretamente. O maior rio é o Una, que corre de oeste para leste.

A Região dos Lagos, conhecida no plano turístico como Costa do Sol, tem uma área de 2.004 km² com uma população estimada em 538. 650 habitantes distribuída em sete municípios: Araruama, Armação de Búzios, Arraial do Cabo, Cabo Frio, Iguaba Grande, São Pedro da Aldeia e Saquarema. A rigor, Maricá faz parte da Região dos Lagos, mas as divisões administrativas não levam em consideração fatores naturais.

Vivendo do sal, que está em declínio, a região encontrou no turismo sua “redenção”. As lagoas e as praias eram maravilhosas nas descrições de Maximiliano de Wied-Neuwied (1815) e de Auguste de Saint-Hilaire (1818). A vegetação nativa era constituída desde florestas até campos herbáceos na orla marítima, passando por matas arbustivas e manguezais. Mas a beleza de uma região num mundo dominado pela economia de mercado pode ser uma maldição. A Região dos Lagos encontrou no turismo uma caverna de Ali-Babá. Aquelas praias de águas cristalinas encantaram turistas brasileiros e estrangeiros. A população fixa cresceu e, juntamente com a população móvel em alta temporada, tornou-se muito pesada para a região. No verão, é comum ver-se transatlânticos transportando turistas para seus municípios costeiros.

O espaço está saturado de ambiente urbano. Isso significa cimento e asfalto impermeabilizando o solo, o que dificulta a infiltração de águas pluviais. O calor fica concentrado em prédios e pisos. Ar ainda não falta para as pessoas respirarem, mas água já falta. Não há, na região, uma fonte para garantir o abastecimento. Então, é preciso transpor um divisor de águas e recorrer à bacia do rio São João, especificamente à lagoa de Juturnaíba, que foi profundamente alterada para a captação de água de duas concessionárias que atendem aos sete municípios. A lagoa é hoje um reservatório que guarda pouco de sua fisionomia original. Água que entra é água que sai. Só que na forma de esgoto. Ele não pode ser lançado na hipersalina lagoa de Araruama porque altera sua salinidade e a polui, afetando a economia pesqueira e turística. Conheci a lagoa antes da grande poluição e quando estava muito poluída. Informa-se agora que ela está sendo progressivamente despoluída.

Os alimentos podem e devem vir de fora, pois a agricultura praticada na região não atende ao consumo na alta e na baixa estações. Onde jogar o esgoto e o lixo? Para o lixo, recorre-se a aterros sanitários, que não é a solução adequada para a Costa do Sol. Eles ocupam espaço, sem contar que têm prazo de vida útil. O ideal seria reduzir, reutilizar e reciclar. Mas ainda estamos longe dessa economia circular.

E o esgoto? As soluções estão longe do ideal. Uma delas é o tratamento em lagoas de depuração, conhecidas pelo nome esnobe de wetlands. Outra é promover o tratamento terciário, como a concessionaria Prolagos propala fazer. Mas resta o efluente final. Fazer o que com ele? Lançá-lo nas lagoas não é a melhor solução porque a salinidade delas é alterada. Usá-lo para limpeza de logradouros e rega de jardins não basta porque é muita água para poucas ruas e jardins. A solução que vem sendo mais cogitada é lançá-lo na bacia do Una, em três afluentes seus.

Simplificando, essa bacia passou por três momentos nos últimos 6 mil anos. No primeiro momento, o nível do mar subiu e invadiu o Una a partir de sua foz, criando uma extensa área úmida e salgada. Ao descer, depois de 5.000 anos antes do presente, muitos registros fósseis restaram na área que ficou submersa. A bacia do Una foi, então, se estabilizando em novo equilíbrio. Enormes banhados se formaram ao longo do seu curso e nas áreas de inundação. A água doce foi substituindo a água salgada. Então, veio o terceiro momento. A Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense e o Departamento Nacional de Obras e Saneamento, a partir de 1935 até 1990, canalizaram os rios da bacia e drenaram as grandes área embrejadas. O desmatamento também foi brutal. A umidade reduziu-se drasticamente. A bacia do Una adquiriu um novo equilíbrio, esse mais pobre que os anteriores.

Agora, a Prolagos quer inaugurar um quarto momento, lançando esgoto de três estações de tratamento nos afluentes Papicu, Flecheiras e Malhada. O esgoto, tratado em nível terciário ou não, aumentará oito vezes a vazão  do sistema. O aporte de água poluída poluirá mais ainda a bacia do Una. Se tratada em nível terciário, haverá aporte de sedimentos para a praia Rasa, principalmente, mas a pluma do rio alcança uma grande área, atingindo o lado de mar aberto de Búzios. Além do mais, a redução da salinidade no mar alterará a qualidade da água, a flora, a fauna e a economia pesqueira e turística.

Assim como não se pode lançar água doce de esgoto - tratado ou não - na lagoa de Araruama, não se pode também lançá-la na bacia do Una, pois ela alterará as condições físicas, químicas e biológicas dela e também do mar a partir do ponto em que o rio desemboca. Regiões turísticas, como a dos Lagos, Guarapari e Sul Fluminense costumam ter um destino: serem destruídas pela própria atividade turística que propiciam e serem abandonadas. Trata-se de um dos três traços da economia de mercado: o consumismo. Os outros dois são o imediatismo e o individualismo. Quem tem dinheiro para praticar turismo pensa em si e na sua família aqui e agora. Não vem ao caso o dia de ontem nem o de amanhã. Essas pessoas querem conforto. Então, a iniciativa pública e particular cria infraestrutura de turismo que destrói mais ainda o atrativo. A poluição completa o quadro, mas não completamente. Existe a questão da moda. Se a Região dos Lagos sair de moda, os consumidores vão procurar outra e destruí-la também. Não faço profecia, mas previsão.

Se alguém ler este artigo, não dará importância a ele. A discussão entre Búzios e Cabo Frio continuará, como se fossem dois países inimigos. A melhor solução mais ou menos imediata para o esgoto é a separação absoluta de esgoto e águas pluviais, o tratamento terciário e o lançamento de grande parte do efluente no mar, longe da costa, por um emissário submarino. Lançá-lo na bacia do Una é transformá-la num emissário sobremarino que despejará água tratada ou poluída também no mar, porém na linha de costa.

A Região dos Lagos pode continuar a usar o nome de Costa do Sol porque o sol não vai acabar, mas ela perderá sua capacidade de suporte, assim como o Centro-Sudeste do Brasil, onde as florestas foram derrubada, os rios foram represados para geração de energia e fornecimento de água às cidades que cresceram muito além da capacidade dos ecossistemas. Na Região dos Lagos, vai se viver com uma espada afiada pendurada sempre prestes a cair no pescoço das pessoas e matá-las.


Bacia do rio Una

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