quarta-feira, 14 de julho de 2021

UM NATURALISTA AMADOR NA ILHA DO MEL (II)

 Arthur Soffiati

Admitimos, alguns com tristeza, outros com resignação e outros com alegria, que os seres vivos nascem, crescem e morrem. A morte pode acontecer no nascimento, durante o crescimento e fatalmente na velhice. Quanto aos não-vivos, o conhecimento leigo acredita que eles sempre existiram. A montanha que está diante de mim, o grande oceano Atlântico e a Ilha do Mel sempre existiram. O que pode acontecer é esburacarmos a montanha para obter pedra, poluir o Atlântico com plástico e modificar a estrutura rochosa da Ilha do Mel com obras. Mas eles continuaram fundamentalmente os mesmos.

A natureza em si é capaz de fazer obras praticamente impossíveis para a ação humana. Hoje, moro numa cidade que se ergueu sobre um grande planície formada por rios e pelo mar. É a maior do estado do Rio de Janeiro. Ela se formou depois que o mar subiu e avançou sobre terras existentes até cerca de dez mil anos antes do presente. Esse avanço, chamado pelos geólogos de transgressão marinha, dissolveu o continente anterior e formou uma enorme laguna. O nível máximo foi alcançado em torno de 5.100 anos antes do presente. A partir de então, o mar começou a recuar, no processo chamado de regressão marinha. Então, os rios foram sedimentando aquela lagoa rasa e formando uma planície aluvial que foi arrematada por uma grande restinga. A partir de 2 mil anos antes do presente, o nível do mar e a formação da planície se estabilizaram de forma dinâmica, pois o movimento do mar e da terra sempre ocorre, por mais que não notemos.

Como sou um naturalista amador, aprendi esses rudimentos (espero que tenha sido razoável esse aprendizado), na leitura de Louis Martin, Kenitiro Suguiu, José Maria Landim Dominguez e Jean-Marie Flexor no livro “Geologia do Quaternário costeiro do litoral norte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo (Belo Horizonte: CPRM, 1997).

Esse processo de avanço e recuo do mar e de recuou e avanço do continente aconteceu em praticamente em dos os continentes e oceanos. A Ilha do Mel é produto dele. Nem sempre ela existiu como a conhecemos e não existirá da mesma maneira no futuro, assim como a Terra, que um dia deixará se ser habitável pela humanidade e todas as outras formas de vida que tiverem resistido à agressão humana. Creio ter aprendido algo sobre a origem da Ilha do Mel na leitura do capítulo referente à geologia e geomorfologia redigido por Rodolfo José Angulo e Maria Cristina de Souza que integra o livro “História natural e conservação da ilha do Mel”, organizado por Márcia C. M. Marques e Ricardo Miranda de Britez (Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2005).

O terreno mais sólido e longevo da ilha são os morros formados por rochas cristalinas pré-cambrianas, anteriores a 600 milhões de anos. As planícies arenosas são bastante novas, com idade menor que 5 mil anos. Creio ser bastante examinarmos quatro momentos geológicos da Ilha do Mel.

1º Aproximadamente há 120 mil anos passados, entre duas glaciações (Pleistoceno Tardio), o nível do mar elevou-se cerca de 8 metros acima do nível atual, com 2 metros para mais ou para menos, como nas pesquisas de opinião pública. Nesse período, a Ilha do Mel foi reduzida a um pequeno arquipélago de ilhas rochosas correspondentes aos morros atuais. Se o mar se elevasse nesse nível hoje, a ilha seria separada em duas pelo menos.

2° Regressão durante a última glaciação: com novo resfriamento do planeta, o mar baixou de nível entre 21.500 e 18.000 anos antes do presente, chegando a 130 m. abaixo do atual. A Ilha deixou de existir. Aliás, muitas áreas hoje tomadas pelo mar ficaram emersas e formaram uma extensa planície que se estendia até a serra do mar e atual borda da plataforma continental. Seria possível ir de Morretes à Ilha do Mel por terra a pé, a cavalo ou de veículo motorizado.

3º Do fim da última glaciação até cerca de 6.000 anos antes do presente, o mar subiu novamente. O máximo foi alcançado entre 5.400 e 5.000 a. p., alcançando nível em torno de 3,5 m, mais um ou menos, acima do atual. Vivemos provisoriamente esse período. Nele, podemos identificar cinco feições além dos morros pedregosos: 1- praias; 2- dunas frontais ao mar; 3- planícies de maré, onde se desenvolvem manguezais, marismas; 4- deltas de maré; e 5- variações da linha de costa e erosão costeira. Marisma é um ecossistema com vegetação herbácea dominado pela gramínea praturá (Spartina alterniflora); e 5- variações da linha de costa e erosão costeira.

4° O quarto momento vincula-se ao fenômeno da erosão costeira, que começou a se manifestar na década de 1980, e se acentuou nos anos de 1990. A linha costeira é sempre dinâmica, podendo ser construída. Nesse caso, o continente se amplia. Se destruída, o continente diminui. Caso equilibrada, a destruição é compensada pela construção.

Estaremos vivendo um novo período de elevação do mar que pode mudar a fisionomia da Ilha do Mel. Com nível do mar mais alto, o istmo que liga as duas ilhas do passado recente pode desaparecer novamente. E a pergunta que não quer calar para um naturalista amador não-negacionista: o aquecimento global provocado pelo acúmulo de gases do efeito-estufa, fenômeno relacionado às atividades humanas, tem alguma responsabilidade nos processos erosivos que estão ocorrendo na Ilha do Mel?






Cinco estágios da formação da Ilha do Mel em sua fisionomia atual segundo Angulo e Souza (2005)

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