segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A COZINHA DA MINHA AVÓ

 Arthur Soffiati

Minhas duas avós eram muito diferentes. Djanira Perlingeiro Gonçalves, minha avó materna, nasceu em berço de ouro e continuou nele depois do casamento. Quando tinha ajudante, exigia dela serviço à francesa. Por não saberem bem do que se tratava, as pobres moças eram despedidas e nós voltávamos à cozinha dela, que consistia em alimentos preparado de forma improvisada. Ela gostava de ir à feira e um dos netos era escalado para acompanhá-la. A escolha costumava recair em mim. Mas, solteira, casada e viúva, ela raramente precisou ir para a cozinha.

Minha avó paterna, Felicidade Teixeira Soffiati, carinhosamente chamada de Dadinha, nasceu em Curitiba e lá se casou. Filha de índia e de português, sua vida exigia que trabalhasse. Não fora de casa, já que esse costume era raro para uma mulher nascida em 1903. Ela se dedicou ao lar e, nele, principalmente à cozinha. Era uma excelente cozinheira. Se fosse necessário, ela fazia tudo em casa, do café da manhã à ceia.

Meus avós transferiram-se par o Rio de Janeiro, mas seus corações e suas almas nunca deixaram Curitiba. Creio que minha avó aprendeu seus segredos culinários no Paraná e os desenvolveu no Rio. Quando comecei a estudar, aos nove anos de idade, meu colégio ficava perto da casa dos meus avós. Então, antes de ir para minha casa no Cosme Velho (Nasci e morei no bairro de Machado de Assis), eu passava na casa dos meus avós para fazer um lanchinho. Eles moravam na rua Visconde de Baependi, 117, no térreo. Uma porta dava acesso a uma saleta escura. Dela, passava-se à grande sala da casa. Tomava-se um corredor, passando-se pelas portas da cozinha e de dois quartos, para chegar a um quarto no fim dele transformado em saleta de refeições.

A mesa servida alimentava primeiramente os olhos. Era pão feito em casa, leite (de vaca, nada de desnatado), café de três tipos que só ela sabia fazer, manteiga, queijo e doces. Geralmente bolo de chocolate. Minha avó não era gulosa, mas estimulava os netos a serem. Ela dizia com seu forte sotaque paranaense que sei imitar até hoje: “Coma bastante, meu filho, para ficar grande, forte, gordo e bonito”. Para ela, uma criança gorda era uma criança saudável. E continuava: “tome café com leite e bolo de chocolate”, com os “es” bem pronunciados e de forma bem diferente do carioca. Falou assim até o fim da vida. Mesmo morando no Rio e em Campos, seus “es” nunca foram pronunciados como “is”.

Passar fim de semana com meus avós era algo maravilhoso. Meu avô falava pouco e minha avó falava muito. Para ela, tudo era perigoso para a saúde. “Coloque casaco, meu filho. Homem pega doença pelas costas. Mulher pega pelo pé.” “Não abra guarda-chuva dentro de casa nem deixe chinelo virado para cima” “Por que, vó?” “Faz mal” “Qual mal” “Não sei, meu filho. Só sei que faz.” Manga com leite matava.

Minha alegria era poder acompanhar minha avó ao Mercadinho Azul, na rua das Laranjeiras. Ali começava a arte culinária dela. Todos os “géneros”, como falava, eram cuidadosamente examinados. Olhava, apertava, cheirava e, se preciso, botava na boca. Eu tinha prazer em empurrar o carrinho cheio de compras de volta para casa.

Com 20 anos, prestando serviço militar, morei um ano com meus avós paternos. Ao dar baixa, ofereci meu certificado a ela, pois minha avó cuidava de mim com todo o carinho. Acordava cedo para fazer um espetacular café e preparava um farnel variado para que eu evitasse a comida do quartel, que era horrível. Na hora do rancho, eu me escondia para me deliciar com aquilo que minha avó tinha preparado para mim. Quando acampei na Barra da Tijuca por 15 dias, podendo voltar para casa só no final de semana, minha avó preparou muitos quitutes para eu sobreviver no mato. Casada com um militar, ela conhecia a vida de soldado. “Coitado do meu neto, vai passar muito mal nesse acampamento.” E chorava. Com muita facilidade, minha avó chorava. “Meu neto é tão bão e vai pra aquele acampamento.”

Sobrevivi para continuar saboreando os pratos da minha avó. As saladas eram sempre muito variadas e apetitosas. Os pratos principais engordavam só de serem olhados. E as sobremesas? Meu Deus, os doces da minha avó! Eram obras de arte e, ao mesmo tempo, artesanais. Nunca mais encontrei na minha vida um doce de abóbora como o feito pela minha avó. Abóbora com coco num ponto jamais alcançado por qualquer outra pessoa no mundo. Se ela fosse cozinheira e doceira profissional, ficaria famosa e rica. Mas minha avó era um espírito simples e iluminado.

Com muita emoção, encontrei hoje um livro de receitas dela. Na última capa, aparece escrito o seu nome. Trata-se de Novas receitas, de Rosa Maria, 1ª edição, de 1939. Como observou Gilberto Freyre em Assucar, livro também lançado em 1939 (do qual tenho um exemplar da primeira edição), a culinária portuguesa transformada no Brasil começou a sofrer influência inglesa e francesa a partir do século XIX. Muito emocionado, vou encadernar esse livro e incorporá-lo à minha biblioteca. Mas fico me perguntando qual seria a utilidade dele para minha avó. Como ela lidou com aqueles pratos franceses, como caviar à la russe, velouté colombine, sole au gratin, pintade Montmoreney, fonds d’artichaut garnis d’asperges, tomate farcies au foie-gras, pêches à la royale? Ela não precisava aprender nada, pois era capaz de ensinar tudo.

Meus avós voltaram a morar em Curitiba onde os visitei duas vezes, mas acabaram em Campos, lugar do qual não gostavam. Queriam ficar perto de seus parentes. Ela e meu avô estão sepultados no Cemitério do Caju. Sinto muita falta dos dois.



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