terça-feira, 19 de outubro de 2021

RIO ITIBERÊ

Arthur Soffiati

Um dos meus encantamentos, na baía de Paranaguá, era contemplar o rio Itiberê das sacadas da minha casa, na margem direita dele. Para mim, entre quatro e oito anos de idade, o rio era um mundo. A margem oposta ficava na ilha dos Valadares, que, para mim, não era ilha, mas continente. Eu me perguntava por que chamar o outro lado de ilha, se havia uma comprida extensão de terra coberta de pujante vegetação, cujas plantas ainda eram desconhecidas para mim.

Das sacadas, eu acompanhava o movimento das marés. Ora o fluxo era bem intenso em direção à nascente. Ora a água toda voltava. De onde vinha e para onde ia eram mistérios para mim. Meu pai gostava de pescar. De vez em quando, ele subia o Itiberê e voltava com peixes e histórias. Essas histórias envolviam mais ainda o rio em mistérios. Eu imagina lugares inacessíveis e mágicos. Deviam ser perigosos e povoados por entes míticos.

Rio Itiberê visto da ponte 

Era uma alegria aos meus olhos de criança ver a movimentação de barcos saindo e chegando bem perto de onde eu morava. Canoas, lanchas a motor e barcos de médio calado. Falava-se que iam para a ilha dos Valadares, para a praia da Cotinga, para a ilha do Mel, para Antonina, para Guaraqueçaba, para lugares misteriosos.

O grande espetáculo para as crianças, e creio que também para os adultos, era ver Mário Peixe nadando todos os dias contra a maré. Nunca o vi de perto. Dizem que era fortíssimo e que se tornava mais musculoso quanto mais nadava. Nós o víamos subindo o rio a nado contra a maré que baixava formando uma forte corrente. Ao lado da ilha dos Valadares e das embarcações, Mário Peixe era a grande atração.

Antes de retornar a Paranaguá na viagem de 2016, examinei a baía pelo Google Earth. O rio Itiberê não era a baía de Paranaguá, mas parte dela. O corpo central da baía ficava distante de onde eu morava. Distante para um criança. Adulto, percorri a cidade da rua Beira-Rio, onde eu morava, até o porto, às margens da baía. Examinando o Itiberê mais de perto, nem se trata de um rio verdadeiro, mas de um canal de maré que se ramifica. Com o rio dos Correias, outro canal de maré, forma a ilha dos Valadares. Na verdade, a baía de Paranaguá forma um aranhol de canais de maré e de ilhas. Daí a força das marés enchentes e vazantes.

Ao retornar a Paranaguá, em 2016, tudo parecia menor. A estação ferroviária, que parecia longe de onde eu morava, pôde ser alcançada a pé rapidamente, assim como o porto. O Rocio não era mais um mundo distante e misterioso. Então, o adulto começa a diluir as fantasias da criança. A ilha dos Valadares se aproximou dos olhos da criança que se tornou adulto e velho. Foi construída uma ponte ligando Paranaguá a ela. Eu a atravessei, cruzando o rio Itiberê, algo que, na minha infância, parecia acessível apenas para barcos. Quando criança, eu julgava que ninguém morava nela. 

Portal na cabeceira da ponte Paranaguá-ilha dos Valadares 

O movimento de pessoas na ponte é intenso. É um vai-vem permanente pelo menos durante o dia. No meio da ponte, foi difícil parar para tirar fotos do rio. Pus o pé na ilha pela primeira vez em 2016, experiência que desejei desde minha infância. A urbanização tomou conta dela. A vegetação que eu via à distância é constituída basicamente de mangue. Há exemplares de mangue nos quintais. Nas muitas ruas, havia casas de madeira bem ao estilo do Paraná. Conheci muitas casas nesse estilo em Curitiba.

Fotografei aspectos da ilha. O curioso é que, no meio da ponte, vi embarcações que se dirigiam à ilha e mergulhavam no meio do bosque de mangue, em que predomina o mangue vermelho (Rhizophora mangue). Parecia uma cena amazônica em que os barcos mergulham em igarapés escondidos na mata. Examinando a ilha pelo Google Earth, o manguezal parece formar apenas uma casca que esconde o núcleo urbano dos olhos. Apenas nas confluências dos rios Itiberê com o dos Correias, aparecem manchas mais expressivas dessa tão notável vegetação. Entre o rio dos Correias, dos Almeidas e Caraguaçu, em ilhas ainda não urbanizadas, os manguezais dominam soberanos. Não conheço a consistência do substrato para vaticinar a urbanização dela. Mas uma ocupação humana intensa parece caminhar para lá. A menos que esse mundo de ilhas seja protegido por unidade de conservação. Na verdade, nem esse tipo de proteção garante a preservação dos manguezais. 

Bosque de mangue vermelho na franja da ilha dos Valadares 

Antes de deixar a Nova Paranaguá, expressão que me pareceu adequada para a ilha dos Valadares, parei num bar para comprar uma garrafa de água mineral. O dono me ofereceu um copinho de cachaça local, segundo ele uma das melhores. Bebi de um gole só. Atravessei a ponte rumo a Paranaguá. Na cabeceira dela, ocorria um festival da cachaça. Varia moças me ofereciam provas gratuitas. A da ilha dos Valadares bastava.  

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