sexta-feira, 30 de abril de 2021

SOBRE O PARQUE TERMELÉTRICO A GÁS NATURAL DE SÃO FRANCISCO DE ITABAPOANA - RJ

 Arthur Soffiati

Historiador ambiental; professor associado 1 aposentado da Universidade Federal Fluminense


As mudanças de perspectiva nos projetos de desenvolvimento

    A crença num crescimento ilimitado com base em recursos naturais finitos – que prosperou com a Revolução Industrial do século XVIII – chegou ao fim em 1972, na Conferência Mundial de Estocolmo. O alerta ficou muito claro no livro Limites do crescimento (MEADOWS, D. L. Limites do crescimento. São Paulo: Perspectiva, 1973). Mesmo assim, a economia antiga não acreditou que houvesse limites e continuou a apostar no antigo paradigma. Na Conferência Rio-92, de 1992, consagrou-se o princípio do desenvolvimento sustentável baseado no relatório Nosso futuro comum (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso futuro comum. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1988). Todos passaram, então, a falar em sustentabilidade como se fosse uma expressão mágica. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), grupo de cientistas reunidos pela ONU, começou a demonstrar, em seus relatórios, que emanações derivadas das atividades humanas, notadamente de uma economia globalizada com base em combustíveis fósseis, estão alterando as condições climáticas que permitiram o próprio desenvolvimento de tal economia.

    Trata-se de um contrassenso: uma economia que se desenvolveu graças a condições climáticas apropriadas destruir essas mesmas condições com a queima de carvão mineral, petróleo e gás natural, além da queima de biomassa, inviabilizando assim a própria economia à base de carbono. A conversão para uma nova economia baseada em energia renovável tem sido lenta. Mais que a hidroeletricidade, cumpre valer-se cada vez mais da energia eólica, solar, das correntes marinhas, das ondas do mar e da biomassa. Cumpre agora que cada empreendimento empresarial reflita demoradamente se vai se valer das fontes fósseis de energia ou das fontes renováveis. A Conferência de Paris e a recente Cúpula do Clima alertam quanto à necessidade de converter uma economia suja em economia limpa. Sabe-se que não é possível desativar todo o sistema econômico de forma imediata e total. Nesse sentido, um novo empreendimento que opta pelo emprego de energia limpa contribui sobremaneira para a proteção das condições naturais favoráveis a uma vida confortável para a humanidade e para a natureza. Em vez de belas palavras, valem mais exemplos concretos.

 

A área escolhida para a instalação do Parque

    O Porto Norte Fluminense anuncia a implantação de um parque termoelétrico “composto por duas UTEs de ciclo combinado, a gás natural com potência de 1,7GW cada unidade, denominadas UTE Porto Norte Fluminense I e UTE Porto Norte Fluminense II; uma Estação de Regaseificação, compressão e descompressão de gás natural offshore; Unidade Processadora de Gás Natural - UPGE; Parque de Tancagem de Petróleo; um Gasoduto marítimo de 7km; um Duto de combustível marítimo de 7 km; Sistema de ancoragem sem cais para atracação de embarcações; Gasoduto terrestre de 7 km e Tubulação de abastecimento de água, e, por outro, para a proposição da execução de ações conducentes a caracterizar COMPROMISSOS com a SOCIEDADE de São Francisco de Itabapoana, no que respeita ao crescimento econômico em bases racionais, considerando as premissas de MINIMIZAÇÃO dos impactos ambientais advindos de sua implantação, ao tempo em que MAXIMIZASSE os benefícios oriundos da implantação do PARQUE TERMOELÉTRICO.”

    A área escolhida situa-se no município de São Francisco de Itabapoana em terreno fronteiriço às praias de Santo Antônio, Barrinha e Samambaia por ser ela deserta, ou seja, por não contar com habitações humanas e atividade pesqueira. A empresa de consultoria que elaborou o EIA-RIMA para o empreendimento parece não ter se detido muito na caracterização ambiental do município em geral e da área escolhida em particular.

    A zona costeira de São Francisco de Itabapoana é constituída por dois terrenos bastante distintos. O mais antigo é a Formação Barreiras, que se estende do fim da praia de Guaxindiba ao rio Itabapoana, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, mas que continua até o rio Itapemirim, no Espírito Santo. O mais novo é a restinga de Paraíba do Sul, que se estende da sua ponta setentrional na praia de Guaxindiba ao Cabo de São Tomé, já no município de Campos dos Goytacazes. Na parte interiorana de São Francisco de Itabapoana, encontram-se ainda terrenos do embasamento cristalino. A área escolhida para a instalação do empreendimento situa-se nos tabuleiros da Formação Barreiras. Embora plana e sem falésias, como se verifica a partir de Guriri, ela não é arenosa e porosa. Ao contrário, trata-se de terreno compacto que acumula água de chuva. A areia existe na parte da praia, como acontece em quase todas as praias.

 Aspecto do terreno em que se pretende instalar o empreendimento

    É equivocado entender que o território de São Francisco de Itabapoana é drenado apenas pelos rios Itabapoana, Guaxindiba e Paraíba do Sul. Entre o Itabapoana e o Guaxindiba, chegam ou chegavam ao mar os seguintes cursos d’água de norte para sul: lagoa Salgada, lagoa Doce (córregos barrados), Guriri, Tatagiba-Açu, Tatagiba-Mirim, Buena, Barrinha, curso sem nome, Manguinhos e Guaxindiba.

 

Território de São Francisco de Itabapoana. Legenda: restinga (amarelo); tabuleiros (ocre); cursos d’água: 1- rio Itabapoana, 2- lagoa Salgada, 3- lagoa Doce, 4- Guriri, 5- Tatagiba-Açu, 6- Tatagiba-Mirim, 7- Buena, 8- Barrinha; 9- sem nome, 10- Manguinhos, 11- Guaxindiba, 12- canal Engenheiro Antônio Resende, 13 a 17- córregos barrados naturalmente pela restinga de Paraíba do Sul

Córregos de Barrinha (no alto) e sem nome (embaixo) ampliados em imagem do Google Earth capturadas em 20/04/2021

 O de Barrinha drena exatamente a área escolhida. Ele é pequeno, tendo nascente na própria Formação Barreiras, assim como outros, e desembocava no mar. As atividades rurais separaram sua foz do corpo de seu curso. Não se pode caracterizá-lo como um canal aberto por ação humana para drenar terras destinadas à agropecuária. Seus meandros revelam tratar-se de um curso d’água natural. 

Detalhe do córrego de Barrinha em período de estiagem. Notar os meandros

     Inclusive, a pouca água que circula nele é aproveitada para abastecer um reservatório escavado no terreno onde se pretende erguer o empreendimento, embora a água do lençol freático também contribua para ele. 

 Reservatório de água no interior da fazenda Canaã

    Mesmo adulterado, com baixa vazão e com parte de sua água usada para reservação, as chuvas mais volumosas alagam o terreno, provocam seu transbordamento, forçam a sua barra e chegam ao mar, como aconteceu em 2007, 2008-09 e 2020. 

Abertura natural do córrego de Barrinha nas chuvas de 2020

    É de se perguntar como os técnicos experientes da empresa que formulou o EIA/RIMA não percebeu a existência desse córrego. Bastava procurá-lo no Google Earth. Existe, portanto, uma Área de Preservação Permanente dentro do terreno escolhido para o empreendimento por ser “vazio”. Examinando as formações vegetais nativas potenciais do município em questão, a APP se reforça.

    A vegetação nativa que recobria o território de São Francisco de Itabapoana no tempo da chegada dos portugueses eram a Mata Atlântica e a zonação de restinga. Acompanhando Veloso et alii, a Mata Atlântica assumia a feição de mata estacional semidecidual de terras baixas (VELOSO, Henrique Pimenta; RANGEL FILHO, Antonio Lourenço Rosa e LIMA, Jorge Carlos Alves. Classificação da vegetação brasileira, adaptada a um sistema universal. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1991). Ela recobria a embasamento cristalino, de baixa altitude, e os tabuleiros. A restinga era revestida pela formação pioneira de influência marinha, que alcançava aspecto arbóreo nas partes mais largas (Ibidem). Nos estuários, crescia a formação pioneira de influência fluviomarinha, popularmente conhecida por manguezal ou mangue (Ibidem).

    Os naturalistas europeus Maximiliano de Wied-Neuwied (WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: EDUSP, 1989) (1815), Auguste de Saint-Hilaire (SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1974) (1818) e Jacob Tschudi (TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980) (1858) deixaram preciosas informações sobre a cobertura vegetal nativa do Sertão das Cacimbas, antigo nome do território de São Francisco de Itabapoana. Os dois primeiros seguiram o mesmo caminho, atravessando o rio Paraíba do Sul da margem direita para a esquerda. Caminharam pela restinga, anotando a ocorrência de espécies vegetais nativas, sobretudo o botânico Saint-Hilaire. Chegando à praia de Manguinhos, havia uma trilha saindo da restinga e cruzando toda a mata estacional até a fazenda de Muribeca, nas margens do rio Itabapoana. Essa fazenda pertenceu aos jesuítas até sua expulsão do império colonial português, em 1759.

    Particularmente, a descrição de Maximiliano é notável a respeito da biodiversidade, sobretudo da avifauna. Dessa floresta toda, restou apenas a mancha florestal protegida pela Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba (EEEG). Existe ainda uma amostra residual significativa de vegetação de restinga nas proximidades de Gargaú. O manguezal se mostra mais expressivo na foz dos rios Itabapoana e Paraíba do Sul, mas em proporção menor nos córregos de Guriri, Buena, Manguinhos e Guaxindiba. Nesse último, ele assume dimensões maiores.

    Nas lagoas Salgada e Doce, nos córregos de Tatagiba-Açu e Tatagiba-Mirim e Barrinha, os manguezais desapareceram por barramento do estuário. Contudo, sempre que a água do mar ou do curso d’água rompe esse barramento e ambos se comunicam, propágulos de mangue encontram ambiente propício e fixam-se. Na foz do córrego de Barrinha, é comum encontrar-se plântulas de mangue tentando crescer. O fechamento da barra e o revolvimento do solo, contudo, não permitem a reconstituição do manguezal. Já foi registrada na foz de Barrinha um desenvolvido tronco de mangue branco (Laguncularia racemosa), posteriormente desarraigado.

    Atualmente, plântulas de mangue branco tentando crescer são habitualmente encontradas na foz semidesativada do córrego de Barrinha, reforçando a sua condição de Área de Preservação Permanente potencial.    

Exemplar de mangue branco em fase jovem na foz do córrego de Barrinha


 Propostas alternativas

Parque eólico e solar

    O Rima do empreendimento observa: “Merece destaque o fato de que o Município de São Francisco de Itabapoana oferece condições de produção elétrica eólica, visto que próximo ao empreendimento encontra-se maior parque eólico do Sudeste: o Parque Eólico de Gargaú, administrado pela empresa privada GESA – Gargaú energética S/A, que gera 28 megawats por dia, o que daria para abastecer uma cidade com cerca de 80 mil habitantes”. Por que o(s) empreendedor(es) não seguem o exemplo da GESA, deixando de lado a geração de energia a partir do gás natural para gerar energia a partir do potencial eólico? Estar-se-ia mudando o paradigma empresarial dos últimos 250 anos por um novo paradigma. Por um paradigma que se utiliza de uma fonte renovável de energia. A zona costeira do Norte Fluminense é plana, baixa e uma das mais aquinhoadas em potencial eólico do Estado do Rio de Janeiro. Nas águas rasas do mar em frente à área em que se pretende construir duas termelétrica a gás natural, várias torres para geração de energia a partir dos ventos poderiam ser instaladas, contando com área maior que no continente. Essas torres poderiam situar-se em ponto que não afetasse a possível atividade pesqueira entre elas e o continente e depois delas.

    A área da Fazenda Canaã seria destinada à instalação de placas para coleta de energia solar em ambas as margens do córrego de Barrinha com outras instalações necessárias e compatíveis com o ambiente. Não haveria problema com a captação de água no rio Itabapoana e com o duto de condução desde que não afetasse a Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba e sua zona de amortecimento.

    Não haveria também impedimento para a desova de tartarugas marinhas nas praias.

Restauração de sistemas hídricos

    Tanto o córrego de Barrinha quanto o córrego sem nome seriam restaurados, procurando-se restabelecer a ligação com o mar de ambos, a ligação do segundo com um manancial lênticos, de acordo com a figura do Google Earth mostrada acima, o restabelecimento dos meandros, o fechamento dos reservatórios abertos e o plantio de espécies nativas em suas margens, de acordo com o que preceitua o Código Florestal para Áreas de Preservação Permanente e com espécies nativas da região. A Estação Ecológica de Guaxindiba forneceria sementes de tais espécies.

 Restauração de manguezal

  Uma vez restabelecidas a foz de ambos os cursos d´água, os manguezais voltariam a se desenvolver nelas, mas a ajuda humana permitiria que eles se desenvolvesse mais rapidamente. A fonte de sementes (propágulos) seria os rios Itabapoana e Paraíba do Sul, onde se encontram as quatro espécies de manguezal que medram entre a Flórida e o rio das Ostras.

 Geração de emprego e renda

  Se os parques eólico e solar requerem pouca e especializada mão de obra, as pessoas do Quilombo de Barrinha poderiam perfeitamente ser preparadas para organizar um pequeno viveiro de mudas, para o plantio de espécies ao longo dos dois cursos d’água do terreno e em sua foz, para o trato necessário das mudas, garantindo seu crescimento e para os cuidados que devem ser dispensados aos bosques formados.

 Enriquecimento da biodiversidade

O desenvolvimento de bosques às margens dos dois córregos atrairia aves e pequenos mamíferos, além de peixes, que voltariam a povoar suas águas naturalmente ou serem introduzidos. Tudo de forma compatível com as placas coletoras de radiação solar, pois elas não afugentam a fauna. Os peixes poderiam ser uma fonte complementar de alimentação par os moradores locais. Quanto ao manguezal, sabe-se que se trata de um ecossistema produtor de alimentos a serem exportados para o mar e para montante do curso d’água. Ele é também o habitat de crustáceos que podem ser capturados para alimentação desde que respeitados os limites de sustentabilidade. O caranguejo-uçá (Ucides cordatus) é o principal deles.

Promoção social

Além da geração de empregos locais, atendendo preferencialmente os moradores do Quilombo de Barrinha, já reconhecido oficialmente (SIQUEIRA, João. Relatório antropológico da Comunidade de Barrinha. São Francisco de Itabapoana/RJ. Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 2009), o empreendimento daria preferência para a geração destinada ao município de São Francisco de Itabapoana e seria um exemplo do novo paradigma, que vem sendo proposto desde 1972: uso de energia limpa e renovável, melhoramento das condições ambientais e sociais, além de atendimento às necessidades locais e regionais.  

 

2 comentários:

  1. Obrigado Aristides, mantenha sempre seus textos publicados para, quem sabe um dia, possamos ser coisinhas também. Abração e bom final de semana. Paulo Marinho

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  2. Obrigado Aristides, mantenha sempre seus textos publicados para, quem sabe um dia, possamos ser coisinhas também. Abração e bom final de semana. Paulo Marinho

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