domingo, 1 de agosto de 2021

RIBEIRÃO DE TATAGIBA

 Arthur Soffiati

Como todos os outros sistemas hídricos com leitos embutidos no tabuleiro, o ribeirão do Largo era flanqueado e guarnecido por densas florestas estacionais. Um mapa da Capitania do Rio de Janeiro, de autor desconhecido, datado de 1747, já mostra o Sertão das Cacimbas ornado de matas (Publicado em LAMEGO. Alberto Ribeiro. O Homem e o Brejo, 1ª e 2ª eds. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1945; Lidador, 1974). Pelos rastros deixados no terreno, o Tatagiba é a segunda bacia em área no interior da unidade setentrional de tabuleiro, entre os rios Itabapoana e Paraíba do Sul exclusive, como mostra a Carta do Brasil IBGE (IBGE. Carta do Brasil: folhas Barra Seca (SF-24-G-II-4) e Itabapoana (SF-24-H-I-3). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1967).

Seu curso alto recebe o nome de córrego Baixa do Arroz e a bacia como um todo era alimentada por vários afluentes. Assim, o ribeirão de Tatagiba desembocava na praia de mesmo nome (IBGE. Carta do Brasil: Folhas SF-24-H-I-3 (Itabapoana) e SF-24-G-II-4 (Barra Seca). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1967).

Um exame minucioso do sistema hídrico mostra que ele foi seccionado pela rodovia RJ-196 e por uma estrada municipal sem passagens adequadas para o fluxo d’água, como pontes e bueiros celulares devidamente dimensionados. Além do mais, os trabalhos de lavra da INB barraram sua foz. O ribeirão se transformou numa pujante lagoa alongada com águas fortemente eutrofizadas por matéria orgânica vegetal. Nutrientes associados à intensa insolação promoveram o desenvolvimento de plantas herbáceas e mesmo arbustivas (macrófitas). Com as chuvas mais fortes e demoradas, o sistema transborda sobre lavouras, pastos, estradas e prédios. A solução encontrada pelos moradores de Tatagiba e pelo poder público municipal foi abrir uma vala junta a RJ-196 ligando o ribeirão ao mar no ponto em que eles mais se aproximam. A vazão é muito forte, denotando o grande volume de água represado. A vala permanece aberta durante todo o ano, segundo informações dos moradores, com maior ou menor vazão. Nela, pescadores amadoristas lançam anzóis e tarrafas. Na desembocadura, pratica-se um turismo de baixa renda.

  A vala fazia uma curva em direção à praia de Tatagiba, correndo paralelamente a ela, até se dirigir para o mar. As marés criaram, no trecho final da vala, um pequeno estuário propício ao enraizamento de plantas de mangue. Em 1999, foram detectadas plântulas de Laguncularia racemosa, Avicennia germinans e Rhizophora mangle em crescimento. Havia um manguezal em formação. Até nas partes mais altas, que a maré não alcança, abunda o inimbói (Guilandina bonduc) planta de restinga ou de apicum (SOFFIATI, Arthur. Entre Câncer e Capricórnio: Argumentos em Defesa dos Manguezais do Norte do Estado do Rio de Janeiro – Brasil. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil, 1999). 

 Plântulas de L. racemosa, A. germinans e R. mangle. Foz da vala que conecta o ribeirão de Tatagiba ao mar. Foto do autor (04/06/1999)

O manguezal infantil era a evidência de que uma faixa deste ecossistema deveria revestir toda a orla entre os rios Itabapoana e Guaxindiba nas desembocaduras dos inúmeros córregos que se lançavam permanente ou periodicamente ao mar. Permanecendo aberta a vala que sangra o ribeirão de Tatagiba, é de se esperar que um manguezal ressurja, primeiro alimentado por propágulos transportados do rio Itabapoana pela corrente marinha norte-sul, predominante naquele trecho da costa, segundo Muehe e Valentini (MUEHE, Dieter e VALENTINI, Enise. O Litoral do Estado do Rio de Janeiro: uma Caracterização Físico-Ambiental. Rio de Janeiro: Fundação de Estudos do Mar, 1998).

Depois, por auto-alimentação, nas dimensões permitidas pelo ambiente, ali onde suas águas se encontram com o oceano. Entretanto, o pisoteio de frequentadores da praia não permitiu que as plantas do pequeno manguezal sobrevivessem no corpo principal da vala. Mesmo assim, deve-se sempre apostar na capacidade que o manguezal apresenta de se desenvolver em condições adversas. Por ventura, por força de vazão maior na vala, esta se bifurcou. O braço principal continuou a desembocar no mar depois de se curvar em direção a ele. O braço secundário alongou-se paralelamente à praia e criou um canal sem saída para as água. Sofrendo influência das marés altas, formaram-se ali condições para o desenvolvimento de um pequeno bosque de mangue protegido do pisoteio de turistas. Pelo menos, propágulos de Laguncularia  racemosa e de  Avicennia germinans fixaram-se nessa bifurcação da vala e cresceram junto a plantas de restinga, como Dalbergia ecastaphyllum e guaxuma ou algodoeiro-da-praia (Talipariti pernambucense) 

O Departamento Nacional de Obras e Saneamento, nascido da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense e que viveu entre 1940 e 1989, pulou a região entre os rios Guaxindiba e Itabapoana. Embora não sofrendo a ação do órgão federal, pegadas humanas de outras atividades produziram transformações profundas no território. É possível acompanhar o ribeirão de Tatagiba em suas linhas sinuosas, mas quem o percorre da nascente à foz não mais encontrará em seu vale senão um ou outro fragmento da ancestral e vigorosa floresta estacional. Hoje, o espaço está ocupado por lavouras de cana, mandioca, abacaxi, maracujá e por pastos. A erosão decorrente da supressão florestal deve ter contribuído sobremodo para empantanar os leitos da bacia. Em vários pontos, o curso foi bloqueado por barragens com o fim de represar água para as atividades agropecuárias (SOFFIATI, Arthur. “A pressão de atividades rurais e urbanas sobre os manguezais situados entre os rios Itapemirim (ES) e São João (RJ)”. Anais do X Congresso Mundial de Sociologia Rural. Rio de Janeiro: Unicamp/Irsa/Sober, 30/07-05/08/2000). No entanto, as interferências mais danosas ao ecossistema foram a lavra de terras raras e construção da rodovia RJ-196, que, se não interrompeu de todo o fluxo hídrico de uma para outra seção do sistema, estreitou seu leito com bueiros e retardou o deslocamento das águas, já de si com volume reduzido por outras atividades.

Não há outro caminho para confirmar ou infirmar a presença de um manguezal na foz do ribeirão de Tatagiba quando de sua vedação pelos trabalhos da INB senão o recurso à sedimentologia e à palinologia. Por inferência, pode-se aventar que, assim como um manguezal começou a se formar após a abertura recente da barra da vala, um manguezal deveria existir na foz primitiva.

A partir dessas observações, pode-se concluir que a resposta do antigo manguezal porventura existente na foz do ribeirão de Tatagiba sucumbiu por falta das condições necessárias a sua existência. Ao perder as matas ciliares, o ecossistema aquático continental perdeu também uma rica fonte de nutrientes constituída por matéria orgânica vegetal. Ao perder a manta florestal, o solo ficou exposto às intempéries e tornou-se mais vulnerável às forças erosivas, como a chuva e o vento. Ao sofrer erosão em suas margens, a bacia deve ter sofrido intenso processo de assoreamento, agravado pela pequena circulação das águas em seu interior por ação de barragens. Ao perder água por aumento de evaporação e por drenagem, a vazão diminuiu e debilitou-se. Assim, a vedação da foz provocada por ação humana transformou um rio numa volumosa lagoa.

Talvez, antes que as condições necessárias mínimas à existência de um manguezal desaparecessem, tenha ocorrido a estabilização vertical da lâmina d’água, como se pode verificar ainda hoje a montante da passagem sob a estrada RJ-196; a dulcificação do sistema, propiciando a invasão de plantas aquáticas de nenhuma ou de baixa tolerância ao sal, como também se pode observar no brejo; o enriquecimento térmico das águas estagnadas ou semi-estagnadas, criando dificuldades para as espécies exclusivas de manguezal; a eutrofização da bacia pelo aporte de matéria orgânica e de fertilizantes químicos. Estes fatores atuando sinergicamente levaram o manguezal a finalmente perecer. Agora, a recriação involuntária de alguns destes fatores está permitindo o seu retorno. O bosque formado na bifurcação da vala auxiliar merece proteção do poder público. 

Novo manguezal na vala de Tatagiba. Foto do autor (24/07/2021)

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