domingo, 15 de janeiro de 2023

A PRIMEIRA FASE DO MODERNISMO E A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA (FINAL)

     


                                                                         Arthur Soffiati

Flávia Camargo Toni, estudiosa da dimensão musical de Mário de Andrade, debruçou-se sobre o acervo discográfico do intelectual. Sua coleção de discos parecerá pequena perto de um acervo particular atual, mas era grande em sua época. O total da discoteca atinge 544 unidades, sendo que 161 referem-se à música popular urbana. 184  contêm música folclórica da Argentina, Cuba, Portugal, Estados Unidos, Haiti, Espanha, Alemanha, Grécia e Paraguai. A coleção começa em 1927, quando se iniciou no Brasil a gravação elétrica, e se estende até 1945, ano da sua morte.

Flávia reuniu de forma crítica as anotações que Mário de Andrade fez quanto aos discos de música popular brasileira no livro “A música popular brasileira na vitrola de Mário de Andrade” (São Paulo: Senac, 2004). O livro remete a “Os cocos”, “Compêndio de história da música”, “Dicionário musical brasileiro”, “Ensaio sobre a música  brasileira”, “Música de feitiçaria no Brasil”, “Música, doce música”, “Aspectos da música brasileira”, “Taxi e crônicas no Diário Nacional: 1928-1932” e “Música final”, todos eles de Mário, seja publicados em vida quanto organizados por pesquisadores postumamente. José Ramos Tinhorão, conhecido crítico de música popular brasileira, redige a apresentação.

O musicólogo Mário de Andrade, sempre muito organizado, tinha o hábito de substituir a capa original do disco, ainda muito pobre em termos gráficos, por capas de cartolina. Ao fazer a barba pela manhã, ele colocava os discos para girar na sua vitrola a corda e registrava suas impressões na capa de cartolina. Camargo Toni observa que, quando Mário abria um tema de pesquisa em sua vida, alimentava-o constantemente com novas descobertas. Era um pesquisador de tempo integral. Contudo, não são muitas as notas que ele redigiu nas capas de cartolina. A organizadora e comentadora do livro mapeou as referências distribuídas em vários livros, adicionando-as às notas. Para Mário, a distinção entre rural e urbano era fundamental. O rural era o espaço da música folclórica e o urbano o domínio da música popular.

O não estudioso pensa que Mário de Andrade valorizava apenas a música erudita e folclórica, desinteressando-se da música popular urbana por considerá-la produto da industrial cultural e por ser contaminada pela indústria fonográfica. Está certo que ele não tenha dedicado nenhum livro seu a esse gênero nascente em sua época, mas ouviu e admirou muitos compositores e intérpretes, consagrados uns e esquecidos outros. Ele ouviu Almir Sampaio, Almirante, Antônio da Silva Calado, Araci de Almeida, Ari Barroso, Assis Valente, Ataulfo Alves, Augusto Calheiros, Baiano, Bando da Lua, Benedito Lacerda, Carmem Miranda, Cartola, Catulo da Paixão Cearense, Cornélio Pires, Dalva de Oliveira, Donga, Dorival Caymmi, Elsie Houston, Ernesto Nazareth, Francisco Alves, Garoto, Gastão Formenti, Grande Otelo, Haroldo Lobo, Heitor dos Prazeres, Hekel Tavares, J. Caramuru, Jararaca, João de Barro, João Felipe da Costa, Joraci Camargo, Josué de Barros, Joubert de Carvalho, Lamartine Babo, Lirio Panicali, Luperce (Miranda), Manezinho Araujo, Marcelo Tupinambá, Mário Reis, Moreira da Silva, Noel Rosa, Oduvaldo Vianna, Olegário de Godói, Pixinguinha, Príncipe Pretinho, Radamés Gnatalli, Silvio Caldas, Sinhô, Stefana Macedo, Tute, Turunas da Mauriceia, Valdemar Henrique, Wilson Batista, Zequinha de Abreu etc.

Mário externa grande admiração por alguns compositores e intérpretes. Um deles é Marcelo Tupinambá, ainda não tipicamente popular, mas um semierudito: “Nós temos hoje inegavelmente uma música nacional. Mas esta ainda se conserva no domínio do povo, anônima. Dois homens porém, de grande valor músico, tornaram-se notáveis na construção dela: Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá. São, com efeito, os músicos brasileiros por excelência (...) O que faz notável Tupinambá é a riqueza de invenção melódica brasileira, que nem mesmo Nazaré possui tão bela e tão patrícia. Aquela dolência caprichosa, lânguida; aquela sensualidade trescalante, opressiva, quase angustiosa; aquela melancolia das vastas paragens; desertas; aquele deserto, digamos assim, da linha melódica brasileira; e de quando em quando o arabesco inesperado; alerta, a vivacidade espiritual do caipira, a inteligência aguda, o burlesco repentino herdado dos negros, que tudo isso na cantiga nacional se revela; desapareceram das canções de Tupinambá. Deram lugar a uma melodia incolor. (Música, doce música).

Mário estava atento à dicção e à nasalação dos intérpretes. Ela detectava sotaque e o nasal português nos cantores e cantoras. Um comentário seu sobre Moreira da Silva: “O solista, sr. Moreira da Silva, apresenta uma voz de timbração deliciosa, profundamente nossa, carioca, um nasal quente, sensual, bem ‘de morro’. A dicção está cheia de defeitos ortográficos e na própria entonação, embora uma vez só, fere-nos um tãins (tens) aportuguesado, insuportável no meio de uma brasileirice de música e de timbre.” No seu entendimento, a dicção de Mário Reis é tipicamente brasileira, mais que a de Francisco Alves. Essas considerações sobre canções gravadas merecerão dois estudos que ele apresentará no Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada. Um deles é “Os compositores e a língua nacional”. O outro é “A pronúncia cantada e o problema do nasal pelos discos”. Ambos foram publicados nos anais do Congresso e ganharam separatas. Mais tarde, foram incluídos em “Aspectos da música brasileira”, o XI volume de suas obras completas (São Paulo: Martins, 1965).

Ele nota também que a música popular estava mudando para atender ao mercado fonográfico. Nascia, assim, uma música para discos e emissoras de rádio que desafiaria um crítico nacionalista como José Ramos Tinhorão. Músicas destinadas à dança estavam ganhando autonomia e adquiriam ritmo próprio: “Peças há, choronas, em que o movimento já não se coaduna mais com a dança, pelo menos com as danças brasileiras. A rapidez é cada vez maior, se percebendo que a peça é concebida exclusivamente para execução instrumental (até virtuosística...) sem que sirva para mais coisa nenhuma, nem pra se cantar nem pra se dançar.”

O chorinho, parece que nascido para ou estimulado pelo disco, encanta Mário, que o compara ao jazz elaborado: “Outro disco a citar é o Urubu, maravilhosamente executado por Pixinguinha, uma das excelências da discoteca brasileira (...) tais choros são a equivalência brasileira do hot-jazz, que também tantas vezes já é puro gozo instrumental, mesmo quando unido à voz, é duma violência de movimento, verdadeiramente dionisíaca, como é o caso do final do ‘Chinatown, my Chinatown’ e ‘I got rhytm’, foxtrots, o segundo de Gershwin, executados pelo hot-jazz e admirável Luis Armstrong.”

O interesse pela música popular urbana ou música popular brasileira ganhará estudiosos específicos a partir do fim da década de 1930, como Lúcio Rangel, José Ramos Tinhorão, Hermínio Belo de Carvalho e outros, todos admiradores de Mário de Andrade.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...