domingo, 5 de fevereiro de 2023

BARRA DO FURADO

                                                                                      


                                 Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 4 de fevereiro de 2023

Barra do Furado

Arthur Soffiati

Poderia ser qualquer outro lugar situado na restinga de Paraíba do Sul ou de Jurubatiba. Mundéus, São João da Barra, Atafona, Gruçaí, Açu, Quixaba, Gargaú, Quissamã, Carapebus. Nenhum desses lugares já foi devidamente estudado. Sobre eles, existem artigos jornalísticos, artigos acadêmicos e livros. Os jornais noticiam o momento. Os livros são poucos e quase todos antigos. Os artigos acadêmicos enfocam temas pontuais e fazem recortes espaciais e temporais de maneira artificial. A noção de que existe uma grande e nova restinga ainda não se constituiu. Ao contrário, a unidade da Restinga de Paraíba do Sul foi esquartejada em várias restingas: Santa Clara, Gargaú, Atafona, Gruçaí, Iquipari e Açu. Entre a barra da lagoa do Açu e a barra da vala do Furado, hoje canal da Flecha, a restinga se estreita e se transforma numa praia com crista alta e areia grossa. Podemos considerar essa praia como parte da restinga de Paraíba do Sul ou da restinga de Jurubatiba, situada ao sul?

Os processos geológicos se associam. Embora com formações e idades distintas, as duas restingas acabaram ligadas por essa praia de 28 quilômetros de extensão que me motivou a publicar o livro “De barra a barra” (Rio de Janeiro: Autografia, 2020). Os textos reunidos nele se concentram nessa praia bravia que se estende da Barra do Açu à Barra do Furado. Trata-se do trecho costeiro do município de Campos dos Goytacazes, temido desde o século XVI pelos perigos representados para os navegadores que começavam a construir o conhecimento sobre a costa do Brasil.

No mencionado livro, a localidade de Barra do Furado, já no município de Quissamã, está contemplada. Decidi voltar a ela pontualmente pela sua singularidade natural e pelo seu significado histórico, econômico e cultural em livro a ser lançado em breve. Embora ainda carente de pesquisas, Barra do Furado tornou-se um dos pontos mais icônicos da instalação da economia de mercado na futura região norte fluminense. Ela foi aberta num delta intrincado (e fantástico) que não conseguia contato com o mar por ser barrado pelo alto cordão arenoso da praia. Assim acumulada, a água desviava-se para leste e corria lentamente até encontrar uma saída para o mar na barra do rio Iguaçu (hoje lagoa do Açu).

Coube a José de Barcelos Machado, herdeiro colateral de um dos pioneiros da colonização contínua do norte fluminense, abrir uma vala na poderosa barreira representada pelo cordão arenoso da praia, em 1688. Ele inaugurava, assim, a drenagem artificial da planície fluviomarinha do norte fluminense. Foi nos arredores dessa vala, batizada como Furado, que Machado ergueu a primeira sede do seu morgado. Ela vem sendo considerada a origem de Quissamã.

Mas já nos primeiros tempos dessa vala, dessa sangria, desse furo para que a água doce acumulada no continente fosse expedida para o mar mais rapidamente, os colonos de origem europeia perceberam que a economia de mercado - ainda que em feição muito rudimentar - enfrentaria a forte resistência da natureza. Escoada a água retida no continente, o mar voltava ao comando e vedava a foz da vala do Furado. Com as chuvas do ano seguinte, os escravos do senhor de terra e dos jesuítas voltavam a abrir a vala para que o mar a fechasse novamente após o escoamento do volume acumulado. Esse processo se repetiu até a abertura do canal da Flecha no século XX, mesmo assim não neutralizando totalmente a força do mar e ainda acarretando novos problemas.

Passei quarenta anos da minha vida fazendo anotações, escrevendo artigos acadêmicos e jornalísticos e planejando livros para concluir depois da aposentadoria. Acreditei que depois dela os livros planejados poderiam ser concluídos. Mas dois outros limites emergiram com clareza: envelhecimento e morte. Além deles, os planos davam origem a outros. Entendi, então, que deveria reunir o que já escrevera ou que escreveria em livros resultantes de coletâneas. Como este e vários outros. Geralmente, os livros decorrem da coletânea de textos sobre um mesmo assunto redigidos ao longo do tempo.

Desejo, assim, contribuir, ainda que minimamente, para o conhecimento sistemático de questões regionais e, proximamente, sobre Barra do Furado em seus aspectos naturais, culturais e históricos, pois se trata, talvez, de um dos locais mais importantes, ao lado de Campos e São João da Barra, na integração da região norte fluminense a uma uma economia-mundo. Redigi já vários textos sobre a localidade em tempos diferentes. Sempre que retorno ao tema, há a necessidade de repetir informações para situar o leitor. Antes assim do que nada. Antes uma pequena contribuição ao conhecimento que um enfoque ambicioso sempre adiando e nunca lavado à conclusão.

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