sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A TENSÃO SUPERFICIAL DO TEMPO

Arthur Soffiati

Um casal adota uma criança. O pai adotivo morre antes que o menino desenvolva memória. Ele cresce com a mãe adotiva e se apega muito a ela. A mulher gosta de filmes, e o filho aprende com mestria lidar com os recursos da informática. Ele pirateia filmes para ela e para os amigos. Ele cresce e se forma em química, tornando-se um professor bastante admirado num cursinho pré-vestibular. Casa-se e se separa. Conversa com um amigo sobre suas intimidades. No cursinho, tem colegas pró e anti-Bolsonaro. Aproxima-se de uma aluna que o apresenta a seu pai e a sua madrasta. O pai é Procurador Federal. Ele fica fascinado pela madrasta. Parece que ela também sente atração por ele. No final, ambos vivem um amor tórrido por dois dias na ausência do marido. Ela termina logo com ele, que fica completamente desnorteado. Do jeito que eu narrei, a história é simples e linear. Não nas mãos de Cristóvão Tezza, um dos grandes ficcionistas da atualidade. Ele corta a linha dessa história em fatias e faz uma montagem em que o passado se intromete no presente e um recorte espacial se liga a outro. Sua narrativa prima pelo simultaneísmo. Até mesmo algo que vai acontecer, na verdade, já aconteceu.

Tezza se tornou conhecido pelo livro “O filho eterno”, de 2007. A partir de então, sua escrita foi se tornando complexa, com a superposição de tempo e espaço, de realidade e imaginação, de sonho e vigília. O marco inicial dessa fase, embora ela já se anunciasse em livros anteriores, é o romance “O professor”, de 2014. Sucederam-se “A tradutora” (2016), “A tirania do amor” (2018) e, em 2020, “A tensão superficial do tempo” (São Paulo: Todavia, 2020). Em seus romances, entram personagens de outros que ele escreveu, como é o caso de Beatriz, quase onipresente. E eles sempre riem. Não gargalhadas, que só ocorrem ocasionalmente, mas sorrisos discretos que, muitas vezes, não requerem a abertura da boca, e risos perceptíveis ou interiores. O riso é sempre uma forma de achar graça de si mesmo, dos outros e do mundo. O universo de Tezza é interior, embora exteriorizado. Sua ficção sempre exige pesquisa, como nos primeiros livros de Rubem Fonseca.

E a narrativa complexa exige uma verdadeira ginástica. Trata-se de recorrer a travessões, itálicos, parênteses. Passa-se do narrador onisciente, para a fala explícita de um personagem e para o pensamento. A vida de uma pessoa não é linear como se pensa. Ao acordar, lavar-se, tomar café, trabalhar, voltar para casa, amar, conversar, a fala interior, o inconsciente, a imaginação estão presentes. E elas não estão exteriorizadas, como calçar sapatos, por exemplo. Tezza se afirma como um grande escritor. Depois de “O filho eterno”, em que relata sua relação com o filho down, o público parece não mais conseguir acompanhá-lo em sua prosa complexa.

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