terça-feira, 17 de janeiro de 2023

CERCADA DE CARNE E SANGUE POR TODOS OS LADOS

Arthur Soffiati

Ieda Magri publicou “Uma exposição” (Belo Horizonte: Relicário, 2021), livro de ficção intermediária. Não é um romance, onde a realidade é recriada de forma fictícia, por mais que exista um fundo de verdade. Não é também autobiografia em que, por mais fiel que a autora seja com relação a uma realidade vivida, uma vida é narrada em sua trajetória. É mais um acontecimento autobiográfico. Melhor, é mais um relato do contexto real em que a autora se movimentou quando criança e adolescente e que impregnou sua vida.

Não direi que o livro é dos melhores publicados em 2021, ano em que poucos títulos sustentáveis vieram à lume. O contexto é a pequena cidade catarinense de Águas Frias, onde ela nasceu a viveu parte de sua vida antes de se transferir para o Rio de Janeiro. O lugar parece uma ilha cercada de carne e sangue. Seus moradores são carnívoros sem qualquer sentimento de culpa.

Os animais frequentam vários livros publicados em 2021 no Brasil, embora vários já tivessem sido lançados em anos anteriores no passado. Os animais ganham cada vez mais espaço na literatura, geralmente defendidos pelos autores e até mesmo como personagens. De Donna Haraway, foi publicado “O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa” (Rio de Janeiro; Bazar do Tempo). Originalmente, o livro data de 2016. De John Berger, saiu “Por que olhar para os animais?” (São Paulo: Fósforo), coletânea de ensaios do pensador e fotógrafo. “A extinção das abelhas”, de Natalia Borges Polesso (São Paulo: Companhia das Letras), insere, numa distopia atual, a morte de abelhas como indicador da crise ambiental. “Contos morais”, de J. M. Coetzee (São Paulo: Companhia das Letras) não é de hoje. Foi lançado a mais tempo e traz de volta Elizabeth Costello, a defensora dos animais, agora velha. Adriana Lisboa publicou “O vivo” (Belo Horizonte: Relicário), coletânea de poemas inspirados na diversidade biológica. Por fim, mas não por último, foi publicado o famoso relato “Escute as feras”, de Nastassja Martin (São Paulo: Editora 34).

Em “Uma exposição”, Ieda Magri destoa de todos os autores mencionados acima. Ela nasceu, viveu sua infância e parte da juventude em Águas Frias, pequena cidade em que havia uma guerra real declarada aos animais. A bem dizer, a região sul do Brasil é mais carnívora que as demais do Brasil. Assim parece. O pai de Ieda chorava com o sofrimento dos animais. Contudo, não deixava de matá-los de forma violenta para transformá-los em comida. A mãe, os filhos e os parentes também encaravam a morte dos animais com naturalidade. Era e é um mundo cercado de sangue e carne. A autora sofre mais pela morte de um pé de alface que pela morte cruel de um boi.

Mas ela reflete sobre uma possível consciência da morte nos animais: “O mais terrível era não saber se os animais sabiam ou não que iriam morrer, se eles sentiam ou não com antecedência. Na hora em que estavam sendo mortos, eles sabiam, eles sentiam não só a dor, mas também a angústia. Porque, do contrário, por que se recusavam à corda e à faca? Por que tentavam fugir? Mesmo as galinhas, quando íamos buscá-las no galinheiro - era nossa tarefa -, por que fugiam? E por que cacarejavam desesperadas quando nossa mãe estava prestes a torcer-lhes o pescoço?” Mas, depois de morta, observa a autora, “Nenhum de nós se solidariza com uma galinha.”

Havia, da parte dela, a desconfiança de que os bois pensavam e interagiam com os humanos. “Eles chegavam muito perto de nós e era como se entendessem o que estávamos falando. O que nunca nos impediu de comer o coração deles.” Ela percebia o sofrimento dos peixes: “Nunca pensei nos sentimentos de um peixe, se bem que sempre tive certeza de que sofriam quando os via se debaterem ao serem lançados na grama presos pelo anzol.”

Já adulta, voltando a sua cidade natal, ela foi a uma fazenda em que os bois eram escolhidos e mortos friamente, como se fossem uma fruta escolhida no balcão de um supermercado. O matador perguntava, em seguida, se o comprador queria as vísceras. Não era apenas um por dia, mas quantos os fregueses desejassem. Tudo com bastante naturalidade, revelando a cultura reinante na cidade quanto à relação com os animais. Quem assiste a “Sangue das bestas”, curta-metragem de Georges Franju (1948), precisa ter frieza. O diretor mostra que os abatedores preferidos eram criminosos violentos que já haviam cumprido suas penas. Embora em preto-e-branco, o filme abala pessoas sensíveis. Algo parecido talvez ainda aconteça em Águas Frias e outras cidades do sul.

Por outro lado, o abate asséptico dos frigoríficos industriais é hipócrita. Matar sem dor, com toda a higiene, como se se tratasse de máquinas e não de seres vivos. “Nossos animais são abatidos de forma humana”, é mais ou menos o que propala a indústria da morte animal, desde o nascimento criado para o sacrifício e para o consumo.

É comum crianças gostarem de animais domésticos ou silvestres e se compadecerem deles se sofrem maus tratos. Não, porém, com Ieda Magri e sua família. Por sua descrição, a mãe era bastante fria com animais e filhos. Era cruel com seus filhos e impiedosa com animais, notadamente com galinhas. Presenciei a degolação de uma galinha quando criança e fiquei chocado para sempre. No entanto, escreve Magri: “Quando eu era criança, o dia de matar porco era dos mais felizes. Lembro de acordar cedo, acompanhar meus pais ao chiqueiro -o porco já estava escolhido no dia anterior e estava separado dos outros. Com o nascer do sol, ele era levado pra fora, no piquete, e ganhava um belo banho de mangueira. Era tocado apenas com gritos e gestos para o porão da casa velha, lugar limpo pra matança, com mesa, fogo, tanque, água corrente, chão de concreto. Meu pai se aproximava do porco, de cócoras, pra ficar na sua altura, o abraçava com o braço esquerdo e dava a facada com a direita. Meu irmão e eu olhávamos de fora, pelas janelas baixas. Era triste, mas era rápido. O porco gritava, o porco chorava, meu pai repetia as facadas quantas vezes fossem necessárias, nunca muitas. O porco morto no chão e a água forte da mangueira empurrava o sangue pra vala na entrada do porão. Toda vez que quero escrever porco escrevo corpo e, antes de corrigir, dá tempo de imaginar seu corpo no chão da sala de modo que o porco e o corpo ficam confundidos e me dói pensar que tantas vezes comi seu coração. Lembro bem do cheiro da merda, do cheiro da lama, do cheiro dos torresmos e da banha e do maravilhoso e duradouro cheiro do salame. Não lembro do cheiro do sangue. Nem de nenhuma dor. A morte do porco era a alegria, a festa, os pés molhados, a suspensão das regras, dos horários, das boas maneiras.” Há apenas uma ponta de compaixão, compensada com os prazeres da carne.

Mais uma vez, a piedade com as plantas: “Minha mãe colhia um pé de alface na horta e eu sofria muito mais aquela vida arrancada do que a do porco.” A matança de animais era generalizada. Passarinhos abatidos para tornar a polenta mais saborosa era algo corriqueiro. “Depois que intuímos que era errado matar passarinhos pra comer - ou depois que proibiram essa prática? - nunca mais teve polenta consa na nossa casa. Meu irmão e eu caçávamos rãs no poço.” Lembro que, na minha infância, a criançada pescava rã nos terrenos baldios depois de chuvas fortes. Eu também fazia isso, mas apenas usando isca. Nunca anzol. E soltava a rã em seguida.

Matava-se para comer ou simplesmente matava-se. “Meu pai pegou a espingarda de pressão e disse: - Venham, meninos, vamos matar gatos. Só uma espingarda, três assassinos convencidos de que eram eles ou nós. Nunca sofri por termos matado aqueles gatos.” A ojeriza a gatos acompanhou Ieda Magri depois de adulta. Ela declara que tratava gatos de estimação dos outros com certa repulsa: “Deixo ela lamber a minha mão, mesmo que isso produza um arrepio quase insuportável nos meus pés e me lembre o prazer que sinto quando você morde as pontas dos meus dedos.”

E a autora declara: “Eu não era uma criança louca! Só sensível demais. Uma sensibilidade curiosa, em todo caso, uma sensibilidade que me permitia cortar a orelha de um gato, matar um, sentir raiva da vaca que mijava enquanto eu tirava o leite, matar ratos com ratoeira ou pedra, torcer o pescoço de uma galinha, caçar rã, odiar o cachorro que latia quando eu queria dormir, o maldito galo de manhã e amar um pé de alface.” Estranha sensibilidade. E nenhum remorso ficou nela depois de adulta: “... Não senti saudades de nenhum dos animais da minha infância, nem mesmo da vaquinha que seria minha quando casasse - a Bonita - e que acabou virando carne pra um ano quando me recusei a casar, quando minha vida não comportava mais uma vaca, mas senti falta (e ainda sinto, inconformada) da amoreira de tronco largo onde eu deitava, ouvia a água do riacho correr devagar, sentia o cheiro dos beijos - a planta que cresce na água - e comia amoras maduras e doces; assim como sinto falta do pessegueiro de pêssegos brancos que procuro todo ano no supermercado e nunca têm aquele sabor, ou do pé de figo bem em frente à janela da cozinha. Sinto falta dos pés de alface, claro.”  

A relação dos habitantes de Águas Frias, da família de Ieda e dela própria é de guerra contra a natureza animal: “Talvez nossa relação com os animais maiores fosse esta mesma: antes eles do que nós. Pouca compaixão, muita disputa. Pela vida.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário

TEMPESTADE NO DESERTO

Arthur Soffiati             Não me refiro ao filme “Tempestade no deserto”, dirigido por Shimon Dotal e lançado em 1992. O filme trata da ...