quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

LAGOAS DA RESTINGA DE PARAÍBA DO SUL NA MARGEM DIREITA (I)

 Folha da Manhã, Campos dos Goytacaes, 8 de fevereiro de 2023

Arthur Soffiati

A parte mais antiga da planície fluviomarinha de Paraíba do Sul é aluvial. Ela é formada por sedimentos transportados da zona serrana e dos tabuleiros pelo grande rio (ARGENTO, Mauro Sergio Fernandes. A contribuição dos sistemas cristalino e barreira na formação da planície deltaica do Paraíba do Sul. Rio Claro: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 1987 - tese de doutorado). A parte que confina com o mar é formada por sedimentos arenosos depositados pelas correntes marinhas interceptadas pelo jato do rio (LAMEGO, Alberto Ribeiro. Geologia das quadrículas de Campos, São Tomé, Lagoa Feia e Xexé. Boletim nº 154 da Divisão de Geologia e Mineralogia. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1955 e MARTIN, Louis; SUGUIO, Kenitiro; DOMINGUEZ, José M. L.; FLEXOR, Jean-Marie. Geologia do Quaternário costeiro do litoral norte do estado do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Belo Horizonte: CPRM, 1997). Tanto a orientação do rio quanto a de uma forte corrente marinha têm a direção oeste-leste. No interior da planície, os fluxos d’água na margem direita do rio corriam de norte para sul e de oeste para leste. O nível médio do rio, na planície fluviomarinha, é mais baixo que sua margem esquerda e mais alto que sua margem direita. Assim, por ocasião das cheias, os transbordamentos pela margem esquerda corriam por drenos naturais e engordavam lagoas. Cessada a cheia, as águas excedentes voltavam ao rio. Pela margem direita, os transbordamentos ativavam drenos que alimentavam lagoas e buscavam o mar pelo grande delta do rio Paraíba do Sul, formado pelos dois braços do rio, lagoas de Gruçaí e Iquipari e rio Iguaçu (hoje lagoa do Açu).

No âmbito da restinga, corriam dois grandes defluentes ligando os rios Paraíba do Sul e Iguaçu. Um defluente apresenta fluxo inverso ao do afluente. Enquanto o afluente corre para um rio maior até alcançar o rio principal da bacia, o defluente sai de um rio em suas cheias. Os defluentes do rio Paraíba do Sul corriam para os rios Ururaí e Iguaçu, ambos integrantes de um grande sistema hídrico, com a lagoa Feia no centro.

O defluente mais interior na restinga formava cursos d’água e lagoas. Na verdade, ele se constituía de um cordão de grandes lagoas, sendo principais as lagoas do Taí Pequeno, dos Jacarés, de Bananeiras e do Pau Grande. Daí, por um fluxo, alcançava o rio Iguaçu. O defluente mais próximo do mar ainda hoje é conhecido como rio Água Preta ou Doce. Ele formava as lagoas do Taí Grande, Quitingute, Salgada e o grande banhado da Boa Vista, alcançando também o rio Iguaçu. Desse defluente, partiam canais naturais que formavam as lagoas de Gruçaí e Iquipari, como mostra o mapa de Alberto Ribeiro Lamego produzido em 1954.

Mapa da Planície dos Goytacazes produzido por Alberto Ribeiro Lamego e integrante de Geologia das quadrículas de Campos, São Tomé, Lagoa Feia e Xexé. Boletim nº 154 da Divisão de Geologia e Mineralogia. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1955. Legenda: A- rio Paraíba do Sul; B- rio Iguaçu; C- Defluente interno da restinga; D- Defluente externo da restinga; E- lagoa de Gruçaí; F- Lagoa de Iquipari


As obras de drenagem executadas pela Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense e pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento entre 1935 e 1990 mudaram radicalmente essa feição natural da planície. O sentido oeste-leste do fluxo hídrico foi alterado para leste-oeste, correndo as águas pelos defluentes naturais, agora transformados em canais regularizados, para o grande canal da Flecha, entre a lagoa Feia e o mar. O defluente C foi transformado no canal São Bento e o defluente D hoje é o longo canal do Quitingute. A maior parte das lagoas foi drenada ou perdeu o contato regular com o rio Paraíba do Sul e o mar. Restaram, como testemunhas combalidas do quadro geográfico original, as lagoas do Taí, Gruçaí, Iquipari e Açu. Eis algumas informações a respeito de cada uma.


Lagoa do Taí

Vem a ser um remanescente do complexo formado pelas lagoas do Taí Grande e do Taí Pequeno. Ambas se comunicavam por um canal na parte inferior. A lagoa do Taí Pequeno foi drenada pelo canal de São Bento. Da lagoa do Taí Grande, saía um canal natural que se engrossava nas imediações costeiras e recebia o nome de lagoa de Iquipari. Esse canal foi seccionado pela transformação do antigo rio Água Preta ou Doce no canal do Quitingute. Hoje, ela é conhecida como lagoa do Taí da Praia. Seus remanescentes estão teoricamente protegidos por uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, denominada Refúgio de Vida Silvestre da Lagoa do Taí (Revitaí).

Lagoa de Gruç

Tal qual as lagoas de Iquipari e Açu, a lagoa de Gruçaí é um braço do delta do rio Paraíba do Sul formado na progradação (avanço) deste no interior de uma semilaguna, a partir de 5 mil anos antes do presente. Como as outras duas lagoas, seu curso parece a resultante da luta entre as forças do rio e do mar. A Carta Geológica do Brasil, organizada por Alberto Ribeiro Lamego em 1954, mostra seu curso paralelo ao do rio Paraíba do Sul, descrevendo um percurso de sul para norte, como o do rio do qual era auxiliar, talvez indício do predomínio das correntes marinhas nesta direção. Na carta, que expressa uma ecofisionomia não mais existente quando de sua formulação, a lagoa de Gruçaí conecta-se à lagoa do Taí Grande, que, nascendo no Paraíba do Sul e correndo perpendicularmente a ele, ligava-se às lagoas do Quitingute e Camará até chegar ao brejo do Riscado, também coletor de outro sistema linear e paralelo a esse constituído pelas lagoas do Taí Pequeno, dos Jacarés, de Bananeiras e do Pau Grande. Daí em diante, unificadas, de alguma forma essas águas copiosas chegavam à lagoa do Açu, até hoje ainda conhecida por rio Iguaçu ou do Açu. Na altura da localidade de Pipeiras, havia uma comunicação natural entre os dois sistemas.

Além desse grande alimentador da lagoa de Gruçaí, ela também recebia água do Paraíba do Sul por meio de um canal menor, também perpendicular a ambos, formado pelas lagoas do Barreiro e de Curralinho. Esse morria nela. Com tamanha adução de água, a lagoa mais parecia um rio e, mesmo que sua barra não se mantivesse permanente aberta, rompimentos naturais da barra por acúmulo de água doce em seu interior deveriam ocorrer com frequência. Criaram-se, assim, condições para a formação de um manguezal da foz até o ponto alcançado pela intrusão da língua salina.

A regulamentação da pesca na lagoa é mais antiga do que se pensa. Fernando José Martins, que teve acesso aos livros da Câmara Municipal de São João Barra, hoje em grande parte desaparecidos ou destruídos, informa que, no início do século XVIII, ato de vereança proibiu a pesca na lagoa de Gruçaí (Goroçaí), quando a barra estivesse aberta, veto extensivo aos habitantes de Campos (MARTINS Fernando José. História do descobrimento e povoação da cidade de S. João da Barra e dos Campos dos Goitacazes, antiga Capitania da Paraíba do Sul. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2019). Pela proibição, toma-se conhecimento de uma prática que até hoje vigora quando da abertura da barra, momento em que se torna mais fácil a pesca pelo esforço do peixe em entrar na lagoa. Basta, então, lançar tarrafas ou estender redes de espera. Devido à carência de documentação, podemos supor que a abertura natural ou antrópica da barra da lagoa de Gruçaí era frequente e que, por haver equilíbrio entre as massas líquidas doce e salgada, os impactos eram bem menores que os causados hoje.

O primeiro grande golpe desferido contra a lagoa de Gruçaí foi a abertura do canal do Quitingute pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento, aproveitando a sequência de sistemas lagunares formada pelas lagoas do Taí Grande, do Quitingute, do Pau Grande, do Riscado, do Capim, do Mulaco, do Ciprião, do Caboclo e outras menores. Assim, as águas que vertiam do rio Paraíba do Sul para o rio Iguaçu ou Açu passaram a correr para o canal da Flecha, centralizador dos defluentes da lagoa Feia construído entre 1942 e 1949, que passou a lançar suas águas no mar. Por um lado, foi cortada a conexão da lagoa de Gruçaí com a lagoa do Taí Grande e, por outro, com a lagoa do Barreiro, que a abasteciam com águas excedentes do rio Paraíba do Sul. Privada dessa fonte a montante, a lagoa de Gruçaí passou a alimentar-se exclusivamente de águas pluviais e do lençol freático. O balanço hídrico entre a massa líquida da lagoa com o mar foi sendo rompido pouco a pouco e ela perdeu a capacidade de abrir naturalmente sua barra, exceto em eventos excepcionais. Assim, a lagoa tendeu para a estabilização vertical da lâmina d’água e para a dulcificação progressiva de suas águas.

Nas partes alta e média da lagoa, a atividade agropecuária a invadiu com um longo aterro no sentido longitudinal. Esse aterro sai da margem esquerda em forma de estrada e retorna a ela 2,5 quilômetros adiante. Em ambas as margens, a vegetação nativa foi suprimida primeiro pela agricultura e posteriormente pela pecuária. O solo ficou sujeito à erosão e a lagoa ao assoreamento. Fertilizantes químicos e agrotóxicos carreados para sua bacia causam eutrofização e contaminação.

Atualmente, sua barra passa por um acelerado processo de urbanização, com casas  a envolvê-la de tal forma que não se pode mais avistar seu espelho em vários pontos. Esse processo está subindo as margens da lagoa e acarretando o principal problema que a afeta: a poluição causada por esgoto doméstico e lixo. Apesar de sua alta capacidade de autodepuração, o grande adensamento urbano em sua barra, o lançamento de esgoto in natura e a contaminação do lençol freático pelas fossas, junto com o despejo de lixo, inibem os mecanismos de recuperação do ecossistema. Uma pesquisadora da Universidade Estadual do Norte Fluminense informou que a lagoa manifesta sinais de estresse. Um deles são crises distróficas. Segundo ela, “No caso da lagoa de Grussaí, a crise distrófica provavelmente foi resultado da ação sinergística de fatores macroclimáticos (brusca alteração de temperatura, devido à entrada de uma frente fria) e da ação das toxinas produzidas pelas cianofíceas, uma vez que não foi constatada anoxia durante o período (...) As alterações hidroquímicas e biológicas resultantes da crise distrófica, observadas na estação VI, não foram verificadas na estação III, sugerindo que esta região (central da lagoa) não se encontra sob tão forte impacto ambiental quanto a porção norte da lagoa (...) A ocorrência de crise distrófica na lagoa de Grussaí somente na região onde se observa o lançamento de esgoto doméstico não tratado corrobora a hipótese que esta região do sistema se encontra em estágio acelerado de eutrofização artificial.” 

No que tange ao estado sanitário da lagoa, ela adverte que “Os elevados valores de coliformes totais e fecais indicam que o lançamento de esgotos ultrapassa a capacidade de autodepuração do sistema, mesmo quando os valores de salinidade estão em torno de 8 u.s.” (Abertura da barra na lagoa de Grussaí, São João da Barra, RJ. Aspectos hidroquímicos, dinâmica da comunidade fitoplanctônica e metabolismo. Campos dos Goytacazes: Universidade Estadual do Norte Fluminense, 1997 - tese de doutorado).

Além da estabilização vertical periódica, o sistema hídrico vem sendo progressivamente dulcificado. A substituição de água salobra por água doce cria condições para que espécies menos tolerantes à salinidade prosperem no sistema.

Interesses sociais e técnicos conflitantes têm desembocado na frequência cada vez maior das aberturas de barra da lagoa de Gruçaí. Os proprietários e usuários de casas nas margens da lagoa, que passa por um rápido e desregrado processo de ocupação e adensamento urbanos, comandam tais aberturas. Durante dez meses do ano, poucos são os moradores das casas erguidas junto à barra da lagoa. Nos dois meses de veraneio – janeiro e fevereiro –, o afluxo de turistas proprietários e locatários das habitações aumenta a produção de lixo e de esgoto lançados no interior do sistema. Como estes meses coincidem com a estação das chuvas, as águas da lagoa se avolumam e, pelo efeito de vasos comunicantes, as fossas transbordam. Os veranistas, então, exercem pressão sobre a prefeitura para que ela abra a barra da lagoa a fim de que as águas poluídas não apenas escoem para o mar, como também o lençol freático seja rebaixado de modo que as fossas retornem a níveis toleráveis. Nos momentos de abertura, costuma ocorrer a captura predatória de peixes que tentam entrar no sistema.

Lagoa de Gruçaí com a barra aberta e as margens urbanizadas

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